sexta-feira, 21 de julho de 2017

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS HQ ou: o ex-tipógrafo, o anatomista, o escritor de livros para crianças, o publicitário e o defunto que escrevia

Olá.
Hoje, as resenhas de livros e gibis estão finalmente retornando, depois de um longo período. Estive ocupado com uma série de projetos e problemas pessoais e... eu vou explicando mais tarde.
Para hoje, escolhi falar de uma adaptação de livro clássico brasileiro para HQ da qual eu já havia falado anteriormente – porém, desta vez, tive acesso a uma segunda versão. E vou comparar com a primeira da qual falei.
Hoje vou falar, de novo, de MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, de Machado de Assis; e a versão para HQ de hoje foi a feita por Luiz Antônio Aguiar e César Lobo.

PARA INÍCIO DE CONVERSA...
Meio que me pondo a reescrever a resenha anterior, vou também complementar algumas informações anteriormente dadas. Não se incomodem, por favor, pela repetição.
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, publicado pela primeira vez em 1881, é um dos romances mais famosos de Machado de Assis (1839 – 1908). Só não digo que é o mais famoso, porque disputa o título de obra-prima do “Bruxo do Cosme Velho” com Dom Casmurro (1899).
De todo modo, MEMÓRIAS PÓSTUMAS é um dos livros mais celebrados do mulato, ex-tipógrafo e co-fundador da Academia Brasileira de Letras, e exemplo maior de sua genialidade. A forma e o conteúdo, o uso da ironia e da metalinguagem, e a quebra dos clichês da literatura de seu tempo, já fazem daquele, que muitos consideram o romance mais “difícil” de Machado de Assis, a obra mais celebrada do autor. Embora não tenha sido um grande sucesso logo de saída, o tempo ajudou o romance a se firmar nos anais da literatura nacional.
Well. Existem três transposições do romance para as HQ disponíveis no mercado brasileiro. A primeira é de 2004, a da Escala Educacional, por Maria Sonia Barbosa e Sebastião Seabra – do qual já falei no blog. A segunda é de 2010, pela série Grandes Clássicos em Graphic Novel, da editora Desiderata, de Wellington Srbek (roteiro) e João Batista Melado (arte); e a mais recente, de 2013, saiu pela editora Ática, série Clássicos Brasileiros em HQ, por Luiz Antônio Aguiar e César Lobo (capa acima) – do qual vou falar agora.

OS AUTORES – VIDAS CRUZADAS...
Vamos, primeiramente, falar dos autores da nova adaptação.
O roteirista, Luiz Antônio Farah de Aguiar, e o artista, César Lobo, possuem vidas que ao mesmo tempo se cruzam e seguem em paralelo. A começar, ambos nasceram no Rio de Janeiro, em 1955. Quer dizer, Lobo esconde a sua idade, não a revela sequer em sua biografia “oficial” divulgada na web, mas a Enciclopédia dos Quadrinhos, de Goida e André Kleinert (L&PM, 2011), no verbete referente a Lobo, crava o ano de 1955 como o de seu nascimento. Se ele porventura estiver lendo esta resenha, espero que não se importe – se já está até mesmo justificada. Bem, seguimos em frente...

O ESCRITOR...
Luiz Antônio Aguiar é carioca, nasceu em 1955 (isso, ele deixa claro), é Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-RJ e possui uma longa e consolidada carreira como escritor de livros infanto-juvenis e roteirista de HQ. Sua obra infanto-juvenil é mais numerosa que a sua produção de HQ. E podemos dizer também que Aguiar é um grande especialista em Machado de Assis, logo não foi por acaso que ele foi escolhido para adaptar BRÁS CUBAS para HQ, do mesmo modo que ele fez com O Alienista.
Bem. A carreira de Aguiar começou mesmo como roteirista de HQ, a partir de 1977, conforme relato próprio. Ele escreveu roteiros, inicialmente, e a partir desse ano, para os gibis do Sítio do Picapau Amarelo, então publicados pela Rio Gráfica Editora (atual Editora Globo); e, em 1979, foi contratado como assistente e redator da editora. A partir de 1981, começou a escrever para outras editoras: para os gibis de terror da editora Vecchi; e para a Abril, onde roteirizou histórias para os estúdios Disney brasileiros, para as HQ nacionais de Luluzinha e Bolinha, para o gibi dos Trapalhões (a terceira versão dos personagens televisivos nos quadrinhos, a infantilizada com design de César Sandoval), e para outros gibis de personagens estrangeiros que tiveram histórias produzidas aqui, como He-Man, She-Ra, Bravestarr, e Spectreman (oh: este último era publicado pela editora Bloch; para essa editora, também roteirizou histórias para o gibi Mestre Kim). Ele também foi o roteirista dos gibis da série A Era dos Halley, também publicado pela editora Abril, um dos braços da iniciativa artístico-comercial da Halleymania, criada em 1984 pelo empresário Marcelo Diniz para aproveitar a comoção gerada pela passagem do cometa Halley, que ocorreria em 1986. Aguiar dividiu os roteiros dos seis números lançados com Ives de Monte Lima e Salete Brentan, e que foram desenhados por Roberto Kussumoto e Napoleão Figueiredo.
Em 1984, Aguiar publica, pela editora Marco Zero, com desenhos de Jorge Guidacci, seu primeiro álbum de HQ para o público adulto: Indecências e Desmandos do Herói Macunaíma em Sua Passagem pela História da Terra Brasilis, uma livre e politizada adaptação do romance Macunaíma, de Mário de Andrade. Este álbum foi a primeira parceria entre Aguiar e Guidacci, que ilustraria alguns de seus livros.
Em 1986, em álbum da mesma editora Marco Zero, Aguiar publica Nos Tempos de Madame Satã, primeira parceria com o desenhista Júlio Shimamoto, uma ficção politizada tendo como personagem principal o célebre travesti brasileiro. Em 2002, pela editora Opera Graphica, a dupla Aguiar e Shimamoto publica um segundo álbum do personagem: Madame Satã – Cassino. Esses três álbuns estão esgotados, e só são encontráveis em sebos ou nas mãos de colecionadores.
Em 1988, Aguiar roteiriza os três números do gibi Futebol e Raça, publicados pela Cedibra, e com desenhos de Mozart Couto.
Seus trabalhos com HQ mais recentes foram mesmo as adaptações de clássicos da literatura brasileira para HQ, todos pela série Clássicos Brasileiros em HQ da editora Ática, e todos com desenhos de César Lobo: Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto (2007), O Alienista de Machado de Assis (2008) e MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS (2013).
Mas é na literatura infanto-juvenil que sua obra é mais extensa e variada. Entre romances, livros de contos, poemas, participações em antologias e ensaios, foram mais de 90 livros. Seu primeiro livro infantil foi lançado em 1985, Tristão – As Aventuras de um Menino na Cidade Grande, pela editora Record. Para não nos estendermos muito, vamos enumerar só alguns de seus livros: O Poderoso Zé (1987); a trilogia Dundum, composta por Na Aldeia Fantástica dos Dunduns e Peixes (1987), O Dundum que Caiu do Céu (1990) e O Maior Segredo Dundum (1994); A Cidade Apontada para o Céu (1988); A Cosmoaventura do Mago Ork (1992); Confidências de Um Pai Pedindo Arrego (1993, vencedor do Prêmio Adolfo Aizen de 1994 e primeiro dos dois prêmios Jabuti ganhos pelo autor); Terra dos Tesouros (1994); Os Dados da Maldição (1994); Tudo por Causa Dela! (1995); A Hora das Sombras (1995); Cérbero, o Navio do Inferno (1996); A Garota e o Roqueiro (1995); A Múmia que Dançava Rock’n’Roll (1997); quatro livros para a coleção Vertentes, da Quinteto Editorial, todos de 1997: E Agora? Meu Irmão Não Está Querendo Nada, Urgente! Papai Precisa Casar, Socorro! Estou Comprando Tudo, e Perigo! Minha Irmã Está Namorando; Os Aventureiros da Terra Encantada (1997); Operação Nova York, seu único título para a Série Vaga-Lume da Editora Ática (1999); Uróboro – Novela Demoníaca (1999); Renata e Muriel – Uma História de Querer Viver (1999); O Goleiro e a Fada de Batom (2000); alguns títulos para a Coleção Descobrindo os Clássicos, da Editora Ática: Corações Partidos (2001), Era no Tempo do Rei (2004), O Mundo é dos Canários (2005), Uma Garota Bonita (2007), O Voo do Hipopótamo (2008), O Tempo que se Perde (2008) e Amor? Tô Fora! (2009); Dadá e Dazinha (2003); Aleijado (2006); O Sino que Queria Voar (2007); Almanaque Machado de Assis (2008, Prêmio Malba Tahan); Machado e Juca (2009); Quem Matou o Livro Policial? (2011); Os Anjos Contam Histórias (2012, Prêmio Jabuti de 2014); A Hora das Sombras (2016)... e muitos mais, todos ilustrados por diversos artistas talentosos. Seu livro mais recente, de 2017, é O Duelo dos Chefs.
Saibam mais sobre Luiz Antônio Aguiar em seu website oficial, onde tem a bibliografia mais completa: www.luizantonioaguiar.com.br.

...E O ILUSTRADOR
Agora, falemos sobre César Lobo, autor conceituado no cartunismo, no quadrinhismo e na publicidade. Também carioca, também nascido em 1955 e, pelo que consta, atualmente residente em Curitiba, Paraná. Mas que não dá muita importância a datas, então, vamos dispensá-las ao longo do relato sobre seu trabalho o mais possível, por absoluta impossibilidade de encontrá-las. Seus primeiros trabalhos importantes de HQ foram publicados nos gibis de terror da editora Vecchi, nos anos 1980: ele participou das revistas Spektro, Pesadelo (na qual publicou sua mais famosa história, O Gênio da Garrafa), Sobrenatural e Almanaque do Terror. Também escreveu roteiros, desenhados por Zenival e Watson Portela, e publicou trabalhos na histórica revista Inter Quadrinhos, da editora Ondas. E também fez ilustrações de cunho erótico para revistas como Ele & Ela, Playboy, Status... Lobo também fez ilustrações para publicações infantis, é claro – ele é assíduo colaborador da revista Ciência Hoje das Crianças, por exemplo.
Ao lado de Mathilda Kóvac, Lobo também é co-criador das sarcásticas e hilárias tiras da personagem Anedônia.
Lobo também possui trabalhos de HQ publicados no exterior: uma história do personagem Judge Dredd publicada nos EUA e dois álbuns de autoria própria publicados na Europa, Brasil 2022 e Lady Lambada. Nenhum desses trabalhos, entretanto, foi publicado no Brasil. Por quê?!
Lobo também ficou conhecido pelos livros que ilustrou. Para a série Para Principiantes, da Editora Ática, escritos por Carlos Eduardo Novaes, Lobo ilustrou, com cartuns altamente críticos, os volumes Sexo, História do Brasil e Cidadania. Também escreveu o livro Andrômeda, e, para a série Cidades Ilustradas, da editora Casa 21, ilustrou o volume Curitiba.
Mas, como acontece com a maioria dos artistas brasileiros, é com o trabalho com publicidade que César Lobo realmente ganha dinheiro no Brasil. Ele deu forma a diversos personagens que ficaram célebres como mascotes em campanhas publicitárias. Por exemplo: Lobo foi cocriador, junto com Carlos Leonam, da personagem Ararajuba, mascote da Petrobrás na época da Copa do Mundo de 1994 – e até a segunda metade da década de 2000; também criou o personagem ecológico Tico, o Brasileirinho, para a rede de supermercados Zona Sul; as famosas campanhas do Pato Purific; o Bisnaguito, para a panificadora Plus Vita; os personagens da linha Neokids da fabricante de canetas Neopen; e mais campanhas para a chocolates Garoto, a marca de bolinhos Ana Maria...
E seu trabalho ainda inclui capas de discos e CDs. Um de seus trabalhos mais conhecidos, nessa área, foi a capa do disco Gororoba, único disco da banda Baba Cósmica, cujos membros foram os compositores originais do hit Sábado de Sol, sucesso na voz dos saudosos Mamonas Assassinas.
E, é claro, tem no currículo as já citadas adaptações roteirizadas por Luiz Antônio Aguiar para a série Clássicos Brasileiros em HQ da Editora Ática.
Conheçam mais do trabalho de César Lobo, um autor bem despreocupado com datas, em www.lobostudio.com.br/.

BRÁS CUBAS...
Bem, agora vamos falar do livro de Machado de Assis.
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS foi publicado, inicialmente, em formato de folhetim, em 1881 – e só depois compilado em volume único. E, como se não bastasse, colocando em termos de hoje, ainda, por assim dizer, gerou um romance spin-off. Já falo mais a respeito.
MEMÓRIAS PÓSTUMAS tem por maior destaque, em sua forma e conteúdo, o uso extensivo da metalinguagem e da ironia, ao colocar como narrador-personagem um defunto! O personagem principal, Brás Cubas, já está morto quando resolve relatar ao leitor suas memórias. Tanto que o livro começa com a célebre dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.
A metalinguagem já começa aí – e são constantes as vezes em que Brás Cubas conversa com o leitor, enquanto relata sua vida “com a pena da galhofa e da melancolia”. Pequenos episódios aparentemente insignificantes, como um dinheiro achado no chão ou dois cães vira-latas brigando por um osso na rua, já servem de mote para reflexões filosóficas.
Olha, já cheguei a pensar, brincando, na hipótese de que BRÁS CUBAS é o primeiro romance psicografado brasileiro. Afinal, só seria possível a um morto escrever um livro mediante as mãos, no plano material, de um médium, certo? Mas talvez não. Afinal, os livros psicografados, ou espíritas, geralmente trazem lições de vida e aprendizado dos espíritos no além-túmulo. Brás Cubas, ao contrário, não parece arrependido de nenhum dos erros que cometeu em vida – e não são poucos. Ele nem está disposto a deixar ao leitor alguma mensagem edificante, ou ao menos palavras de consolo e lições de moral. Ele até mesmo ironiza a vida que poderia ter sido, e não foi. Cinicamente, MEMÓRIAS PÓSTUMAS pode ser visto como uma sátira aos livros espíritas, ao olhos modernos. O espiritismo começou a se popularizar no Brasil ainda na segunda metade do século XIX, mas é pouco provável que já circulassem romances espíritas no Brasil na época em que Machado de Assis escreveu MEMÓRIAS PÓSTUMAS. Logo, o recurso do autor-cadáver é apenas algo que diferencia o romance machadiano de todos os outros de sua época. Mas, no momento em que foi lançado, MEMÓRIAS PÓSTUMAS não foi um best-seller, ao contrário de O Mulato, de Aluísio Azevedo, lançado no mesmo ano – e que foi muito mais polêmico.
Bem, de todo modo, MEMÓRIAS PÓSTUMAS foi o ponto alto da escola literária do Realismo, que se opunha ao Romantismo literário. O Realismo, que conviveu com o Naturalismo de Aluísio Azevedo, estava limitado à prosa escrita; na poesia, a expressão era o Simbolismo – de acordo com a definição dos estudiosos da literatura nacional. O Realismo, para quem não sabe, ou fugiu da escola, era uma escola literária fundamentada na representação da realidade como é observada pelo escritor, sem idealizações; nas tramas de teor pessimista, que geralmente não terminam bem para o personagem principal; na análise psicológica aprofundada do ser humano; no retrato de uma realidade hostil, baseada na mal disfarçada “lei da selva”, onde o mais forte (geralmente, o mais rico, o homem da elite) se impõe sobre o mais fraco (o pobre, ou o homem da classe média que entra no “jogo dos ratos” e acaba perdendo).
Bem. MEMÓRIAS PÓSTUMAS reúne várias dessas características, e mais algumas. O personagem principal se define como um perdedor, alguém que buscou alcançar a celebridade, a fortuna (no sentido da boa sorte, porque dinheiro nunca lhe faltou) e o amor, e não conseguiu. Ou por conta dos próprios erros, ou por conta das barreiras impostas por outros. Ele morreu pobre – não de dinheiro, mas de realizações em vida. Brás Cubas sempre foi um membro da elite carioca do século XIX, herdeiro de propriedades e de escravos; mas o que lhe faltou, mesmo, e apesar de ter tido condições para tal, foi algo que deixasse seu nome gravado na História; faleceu solitário aos 64 anos.
Ele começa narrando suas memórias através da causa de sua morte, ocorrida em agosto de 1869: pneumonia, causada por uma corrente de ar vinda da janela de seu escritório. Mas ele nos diz: não foi tanto a pneumonia, mas uma ideia fixa. Ele estava trabalhando em seu último projeto para alcançar a celebridade, um emplasto anti-hipocondria, ou seja, uma espécie de remédio para curar todas as doenças, incluindo as imaginárias – tal projeto era mais para ver seu nome estampado na embalagem do que para beneficiar a humanidade. Mesmo tratado com sua invenção, Brás Cubas acabou morrendo. E, antes do último suspiro, acaba tendo um delírio, envolvendo sua conversão em barbeiro chinês, na Suma Teológica de São Tomás, uma cavalgada em um hipopótamo e uma conferência com uma cruel mãe-natureza personificada em Pandora, a primeira mulher da mitologia grega, que o leva a uma viagem através das épocas, passado e futuro.
Só aí o nosso “herói” parte para relatar sua vida, desde o nascimento, em 20 de outubro de 1805. Ele teve uma infância feliz, em família bem-aquinhoada (e que dava muita importância à genealogia e ao título de nobreza), embora fosse muito travesso, mal-educado e maltratasse demais os escravos da casa – ele, inclusive, relata um acontecimento ocorrido aos nove anos: durante um banquete promovido por seu pai, ele interrompe, aos gritos, um poeta que, com suas glosas (poesias improvisadas) ininterruptas, estava retardando a hora da sobremesa, e, retirado da mesa sob protesto, acaba ficando sem sobremesa; e, mais tarde, se “vinga” do poeta ao flagrá-lo aos beijos com uma das convidadas da festa – ambos eram casados – e conta para todo mundo.
Na escola ele não foi bom aluno e gostava de gazear, mas ali conhece seu maior amigo, Quincas Borba, que tem grande importância no decorrer da trama.
Na juventude, mais ou menos fim da adolescência, à época da Independência brasileira, Brás Cubas conhece sua primeira paixão, a prostituta espanhola Marcela. Brás Cubas corteja-a bastante e cogita tirar Marcela daquela vida, mas ela nem ao menos corresponde à sua afeição – ama o moço “durante quinze meses e onze contos de réis, nada menos”. A fim de fazer Brás Cubas esquecer a prostituta, que lhe dera muitos gastos, o pai do moço o manda estudar em Coimbra, Portugal – e Marcela ainda trai o projeto de Brás Cubas de levá-la junto. Os dois se reencontram anos depois: Marcela está viúva, empobrecida e perdera a beleza, o rosto com marcas de varíola, tendo de cuidar de um armazém falido; ele, envolvido com outros amores e assuntos. E o encontro foi por acaso: Brás Cubas procurava um relojoeiro, e acaba entrando no armazém.
Brás Cubas se forma mediocremente em Direito, e passa mais tempo se divertindo com os amigos. Na formatura, inclusive, conta um causo a respeito de uma mula empacada em uma estrada: e revela que sentiu remorsos quando ofereceu uma recompensa ao homem que ajudou a mula a desempacar – ainda que fossem apenas algumas moedinhas de cobre. Mas a “vida boa” é interrompida por conta do adoecimento da mãe, que obriga o mancebo a voltar ao Brasil. Após o falecimento da mãe, Brás Cubas passa um tempo refugiado em uma propriedade da família no bairro da Tijuca. O pai, pouco depois, e para tirar o filho do ócio e da depressão, cogita conseguir para o filho uma colocação na política, como deputado. E, de quebra, um casamento, com Virgília, filha do Conselheiro Dutra – que poderia influir na carreira política de Brás Cubas.
Após a morte do pai, há um desentendimento entre Brás Cubas e a irmã, Sabina, pela partilha dos bens, determinando um afastamento temporário entre eles.
Bem, o casamento não sai, nem a carreira política dá certo, mas Brás Cubas e Virgília acabam tendo uma relação oscilante em todo o livro. Mesmo tendo iniciado um breve romance com Eugênia, uma moça pobre e que, apesar de bonita, é manca de uma perna (por isso Brás Cubas não leva o relacionamento adiante), Brás Cubas se torna mais íntimo de Virgília, que se torna sua amante. Virgília acaba se casando com Lobo Neves, principal adversário de Brás Cubas na política, mas continua amante deste, com quem se encontra às escondidas, em uma casa, sob intermediação da velha D. Plácida, cuja vida fora muito sofrida – e que, inclusive, se escandaliza ao saber que fora corrompida, e está acobertando sem-vergonhices. Virgília chega até mesmo a engravidar de Brás Cubas, mas acaba abortando. E, por um triz, o adultério não é descoberto por Lobo Neves. Que, aliás, é promovido para representar uma província distante no governo – isso, e o aborto, foram determinantes para a separação de Brás Cubas e Virgília. Mas os dois voltam a se encontrar várias vezes, por ocasião da morte de Lobo Neves e... quando Brás Cubas já está no leito de morte.
Ainda há de se citar o breve noivado entre Brás Cubas e Eulália Damasceno, a Nhá-Loló, arranjado por Sabina. Nhá-Loló, no entanto, morre de febre amarela antes do casamento.
Quicas Borba é outro personagem importante do livro – ele meio que se torna um guia espiritual de Brás Cubas. Quando os dois se reencontram, anos depois da escola, Quincas Borba é um mendigo. Brás Cubas lhe dá uma boa esmola, mas, ainda assim, o amigo consegue lhe roubar o relógio quando dá-lhes um abraço. Vem um novo reencontro, tempos depois: Quincas já está bem de vida, sabe-se lá como (possivelmente recebera uma herança de um parente distante), e até mesmo devolve o relógio de Brás Cubas. Quando o ex-mendigo é visitado pelo “herói”, Quincas Borba expõe uma nova filosofia de vida, o humanitismo, uma sátira à “lei do mais forte” da natureza. Brás Cubas chega a se converter à nova filosofia, mas depois a renega. Ainda assim, Quincas Borba é acolhido por Brás Cubas no momento em que morre, louco.
Aliás, Quincas Borba e sua filosofia do humanitismo, também conhecida como filosofia do “ao vencedor, as batatas”, voltam em outro romance de Machado de Assis, chamado justamente Quincas Borba (1891), que podemos dizer que é um romance spin-off (gerado a partir) de MEMÓRIAS PÓSTUMAS. Quincas Borba, o romance, é centrado na figura do ingênuo Rubião, que recebe do filósofo: sua fortuna, que o protagonista acaba perdendo ao longo da trama; a incumbência de cuidar de seu cachorro, que também se chama Quincas Borba (!); e, claro, os preceitos do humanitismo. Como é que nenhuma editora se interessou ainda em adaptar Quincas Borba para os quadrinhos?!
Bão. Voltando a MEMÓRIAS PÓSTUMAS. De todo modo, Brás Cubas fracassou em tudo: em seguir carreira política (é até eleito senador, mas não consegue se reeleger, depois que apresenta um fracassado projeto para diminuir o tamanho da barretina dos soldados da Guarda Nacional), no amor, na tentativa de fazer o emplasto. E parece conformado com isso, depois que morreu, encarando seus fracassos com um acento irônico. Ou, como ele diz: “Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. (...) Ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a criatura alguma o legado de nossa miséria.”
E, com isso, tanto Brás Cubas quanto Quincas Borba subvertem o modelo do homem de sucesso, observado na maioria dos romances, do self-made man. Nenhum deles teve sucesso ou deixaram um legado duradouro – morreram como a maioria dos homens morre. Afinal, quantos de nós buscamos a prosperidade pelas vias honestas e sem se converter a alguma religião... e não tivemos sucesso em nossos empreendimentos? E o mesmo cabe aos outros personagens do romance: em boa parte representantes da parte hipócrita da sociedade, nenhum deles ficou, no final do romance, em uma situação melhor que a de Brás Cubas, nem mesmo Virgília. Ao mesmo tempo, é promovida uma severa crítica às instituições estanques do século XIX: as elites, os políticos, a questão escravocrata, a imprensa... Isso é Realismo, isso é humanitismo. Isso é o básico para se entender o romance.
Há ainda de ressaltar que, em vários momentos do romance, Machado de Assis promove brincadeiras com a própria forma narrativa, ao incluir, ao longo do romance, alguns trechos que quebram a hierarquia do livro em si, como, por exemplo, dois capítulos sem palavras – “O Velho Diálogo de Adão e Eva”, que quase só tem pontos e sinais gráficos, e “De como não fui Ministro”, só com pontos – deixando que o leitor deduza do que aconteceu.
O livro pode ser encontrado em edições de várias editoras. Afinal, já caiu em domínio público, ou seja, pode ser adaptado sem necessidade de pagamento de direitos autorais. É bem fácil encontrar versões na forma de e-book, para leitura em computador e/ou tablets e/ou smartphones.
Além das adaptações para HQ, MEMÓRIAS PÓSTUMAS também teve uma paródia literária – Memórias Desmortas de Brás Cubas, de Pedro Vieira, que imagina que o emplasto teria transformado o personagem em um zumbi – e adaptações para cinema. A primeira, meio que indireta (tendo o romance como base para uma história própria), foi feita em 1967 por Fernando Cony Campos, intitulado Viagem ao Fim do Mundo; a segunda, já uma adaptação direta do romance, foi dirigida por Júlio Bressane em 1985; e a terceira, mais fiel ao romance, foi dirigida por André Klotzel em 2001.

ANTES DE PROSSEGUIRMOS...
Este, senhores, é o primeiro título que resenho da importante coleção Clássicos Brasileiros em HQ, da editora Ática – e queira o Grande Desenhista do Universo que eu tenha a oportunidade de resenhar os outros. Logo, é bom que eu faça, rapidamente, uma rápida explanação a respeito da coleção.
Como muitos bibliófilos brasileiros sabem, a Editora Ática é especializada em livros didáticos, infantis e infanto-juvenis, publicações, portanto, que sejam de utilidade para escolas, universidades, a educação em geral – essa editora, por exemplo, é que mantém a célebre série Vaga-Lume de literatura juvenil.
Bem, foi na década de 2000 que a editora também passou a investir em séries de quadrinhos, visto que estes passaram a ser incluídos entre os livros distribuídos em escolas públicas e particulares. Mas, claro, essas séries de quadrinhos precisam ter utilidade na educação de crianças e adolescentes, e a moda é investir em adaptações de clássicos literários brasileiros em HQ, desenhadas por grandes artistas brasileiros. Assim, a partir de 2008, começa a série Clássicos Brasileiros em HQ, competindo diretamente, em preferência, com outras séries de outras editoras, como a Literatura Brasileira em Quadrinhos da Escala Educacional e a Grandes Clássicos em Graphic Novel, da Agir/Desiderata. E, no geral, os títulos da série da Ática são os que tem angariado as melhores críticas dos veículos especializados, às vezes causando comoção na época de seu lançamento, com ampla cobertura da mídia – foi, por exemplo, o caso da adaptação de O Guarani.
Atualmente estão disponíveis treze títulos: O Alienista, de Machado de Assis, por Aguiar e Lobo; Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, por Aguiar e Lobo; O Guarani, de José de Alencar, por Ivan Jaf e Luís Gê; O Cortiço, de Aluísio Azevedo, por Jaf e Rodrigo Rosa; Memórias de um Sargento de Milícias, de Manoel Antônio de Almeida, por Jaf e Rosa; A Escrava Isaura de Bernardo Guimarães, por Jaf e Eloar Guazzelli; Noite Na Taverna, de Álvares de Azevedo, por Reinaldo Seriacopi, Arthur Garcia, Franco de Rosa, Rodolfo Zalla, Rubens Cordeiro, Sebastião Seabra e Walmir Amaral; Dom Casmurro, de Machado de Assis, por Jaf e Rosa; O Quinze, de Rachel de Queiroz, por Shiko; O Ateneu, de Raul Pompeia, por Marcello Quintanilha; MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, por Aguiar e Lobo; e os dois títulos mais recentes, anunciados este ano, Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, por Jaf e Guazzelli, e Macunaíma, de Mário de Andrade, por Rosa.
Todos os álbuns possuem, ao final, um bônus: biografias dos autores, uma contextualização da época em que se passa a história, com explanação de todos aspectos presentes ao longo das narrativas, e segredos dos responsáveis pela adaptação – o making of da HQ, onde são relatadas as dificuldades encontradas para adaptar o texto original à linguagem gráfica.

MEMÓRIAS GRÁFICAS DE BRÁS CUBAS – O RETORNO...
É isso aí: agora, sim, falemos da adaptação para HQ. E, de saída, vamos dizer: em uma disputa entre as adaptações disponíveis no mercado, a adaptação de Aguiar e Lobo (Ática) já tem uma vitória parcial em cima da de Barbosa e Seabra (Escala Educacional). Ainda não tive acesso à adaptação de Srbek e Melado (Desiderata), mas isso fica para mais tarde.
Bem: o álbum da Escala Educacional (Barbosa e Seabra) tem 48 páginas bastante exíguas, sem contar capa, sendo que a história ocupa menos de 40; já o da Ática (Aguiar e Lobo) tem 96 páginas, sem contar capa, e a história ocupa cerca de 80. Logo, a história do defunto-autor tem mais espaço para se desenvolver.
E como se desenvolve! Porque não é a primeira vez que Aguiar mexe com Machado de Assis, e nem com Brás Cubas. Ele meio que recriou a história de Brás Cubas no livro O Voo do Hipopótamo; e lida com a vida de Machado de Assis em alguns dos títulos que publicou, como o Almanaque Machado de Assis e em Machado e Juca.
Quem conhece a arte de César Lobo (que afirma que BRÁS CUBAS é seu livro favorito) sabe que ela é fortemente caricatural, distorcida, arredondada, altamente detalhada e caracterizada pelas cores vivas e psicodélicas; mas, nesta adaptação de Machado de Assis, Lobo aposta em uma arte mais realista, com um nível maior de detalhamento, com personagens anatomicamente bem construídos, com linhas arredondadas e com efeito de inacabado (diferenciando-se, assim, do traço fortemente quadrado, mas altamente mais realista, de Seabra) e cores quase chapadas. Aguiar e Lobo criaram uma adaptação de Brás Cubas que é caracterizada, em grande parte, pela morbidez.
Isso porque: na adaptação de Barbosa e Seabra, mais clara e “ensolarada”, Brás Cubas narra sua história ao leitor na forma de um fantasma cinicamente sorridente; já na de Aguiar e Lobo, mais sombria e melancólica, Brás Cubas se apresenta ora como fantasma, ora como um morto-vivo, cujo corpo vai se deteriorando à medida que se aproxima do fim da história, até acabar transformado em pó.
Ambas as adaptações, embora façam deslocamentos de situações em relação à estrutura original do livro, seguem a linha do tempo proposta por Machado de Assis: iniciam com o velório de Brás Cubas, a causa de sua morte, o delírio com o hipopótamo e com Pandora e só aí parte para a narração, de forma não-linear, da vida do defunto-autor. Mas a adaptação de Aguiar e Lobo ressalta muito bem episódios menos significativos do livro, como a história de Dona Plácida e uma cena de delírio de Brás Cubas – um diabo velho distribuindo moedas de um saco para outro – que Barbosa e Seabra ignoraram. E até acha um jeito de adaptar os capítulos sem palavras do livro!
O Brás Cubas de Barbosa e Seabra, em princípio, parece mais simpático ao leitor, sempre sorrindo, e nada arrependido dos erros de sua vida (e com a aparência possivelmente influenciada pela adaptação cinematográfica de André Klotzel), um tanto ao contrário  do Brás Cubas de Aguiar e Lobo: este tem gestos mais teatrais e mais tiradas filosóficas, mas é bem menos sorridente e mais melancólico, afeito a enxergar sua vida como uma sucessão de tragédias – que deixariam uma pessoa mais tristonha e amargurada.
Na adaptação de Barbosa e Seabra, os eventos duram menos páginas: os autores, devido às limitações impostas pela editora (decerto), foram obrigados a “espremer” quadrinhos e situações de modo que durem poucas páginas, deixando a sua adaptação menos arejada e dando menpos descanso ao olho do leitor. Bem ao contrário da de Aguiar e Lobo: as situações tratadas consomem mais páginas por causa dos desenhos grandes, às vezes em página pôster de duas páginas, em estilo cheio de dinamismo, splash pages, os desenhos às vezes saltando dos quadrinhos, ocupando todo o espaço da página; embora o leitor tenha dificuldade em saber qual é a ordem de leitura dos textos dos balões.
Por exemplo: no álbum de Barbosa e Seabra, o episódio do delírio do hipopótamo dura duas páginas; no de Aguiar e Lobo, dura oito. No primeiro álbum, o incidente do glosador, durante a infância de Brás Cubas, leva só duas páginas; no segundo, leva quatro. Já a narrativa da mula empacada em Portugal, que Brás Cubas narra na sua festa de formatura, leva apenas uma página no álbum de Barbosa e Seabra; no de Aguiar e Lobo, leva quatro. E por aí vai...
Podemos dizer que a alta dose de dinamismo empregada por Lobo, incluindo sequências que se fundem e se confundem, sem estarem separadas pelas tradicionais calhas entre quadrinhos, deixa a história de Brás Cubas mais surreal e delirante aos olhos do leitor, ganhando ares de narrativa de terror, sem se prender às regras dos quadrinhos e ao espaço dos painéis, como fez Seabra. Lobo procurou ressaltar os cenários e personagens, com uma rica reconstituição da época da história, nos cenários, nas vestimentas dos personagens, na reprodução gráfica dos costumes da época.
A leitura: nesse sentido, é até covardia fazer a comparação entre os álbuns. Porque o álbum da Escala Educacional tem dimensões menores (23,7 x 17 cm em média), e letras muito pequenas; já o da Ática é maior (26 x 19 cm) em tamanho e tem letras bem maiores. Mas ambos os álbuns apresentam, nos rodapés, notas com os significados dos termos mais difíceis ao leitor.
Logo, fica a impressão de que a adaptação de Barbosa e Seabra foi feita a toque de caixa, enquanto Aguiar e Lobo tiveram mais liberdade para ousar na transposição da vida de Brás Cubas para a linguagem gráfica. Ao que parece, Aguiar e Lobo, previamente, leram as adaptações anteriores e souberam onde e como evitar vícios e erros que poderiam comprometer a sua adaptação. Resultado: vitória de Aguiar e Lobo. Pelo menos, até termos acesso à adaptação de Srbek e Melado.
Não deve ser difícil ao leitor encontrar, na biblioteca de sua escola ou de sua cidade, esta adaptação, e as outras da série da Ática. E quiçá as de outras editoras. Hoje em dia, adaptar BRÁS CUBAS em imagens parece moleza. E quem traçou o caminho foi... o cineasta André Klotzel.
É o que tentarei provar na próxima postagem: a resenha da adaptação cinematográfica de BRÁS CUBAS por Klotzel.

PARA ENCERRAR...
...minha HQ folhetinesca, O Açougueiro, retorna depois de meses de hiato! E do ponto onde parei da última vez! Mas, como as páginas inéditas se iniciam com a parte final de uma canção que foi interrompida, republico, antes, a última página publicada, com o início da canção.
Para as próximas postagens, já estou preparando várias páginas inéditas dessa HQ – que muitos dos meus 17 leitores já devem estar sentindo falta. Acabou o tempo de melancolia: hora de voltar ao trabalho. Só fica parado, vendo as coisas acontecerem, quem acredita na crise brasileira.
Fiquem conosco e aguardem novidades.

Até mais!

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