domingo, 25 de abril de 2010

O Recruta Zero Mil Zerocentos e Zerenta e Zero

Olá.
Certa vez, no meu twitter, eu havia escrito o seguinte: que haviam no mundo três instituições amorfas, imutáveis, que permanecerão o que são pela eternidade, salvo alguma revolução que mude o que está pré-estabelecido: a pedra de Gilbraltar, a Igreja Católica e o Recruta Zero.
Olha, quanto à Pedra de Gibraltar e o Recruta Zero permanecerem assim pela eternidade, quem afirmou isso foi o próprio autor da tira, Mort Walker. Eu só acrescentei a Igreja Católica porque, bem, vocês sabem.
Pois é do Recruta Zero que vou falar agora. Uma das tiras de HQ mais vendidas em todo o mundo, até hoje.
O Recruta Zero, cujo nome verdadeiro é Beetle Bailey, foi criado nos EUA em setembro de 1950, pelo cartunista americano Mort Walker. Só que, quando ele nasceu, Zero não era um militar: ele era um universitário, e suas tiras, distribuídas pela megacorporação King Features Syndicate, e que apareciam em poucos jornais na época, satirizavam a vida universitária.
No entanto, como a tira não fazia o sucesso que outras tiras da época faziam, a King Features já pensava, após o primeiro ano de contrato, cancelar o contrato com Walker e engavetar a tira. Mas o acaso conspirou a favor do sr. Walker: em 1950 ainda, os EUA entravam em guerra contra a Coréia, e muitos universitários acabaram sendo alistados à força. E Zero, naturalmente, seguiria o mesmo caminho, se alistando no exército - isso aconteceu em 1951.
Foi aí que a estrela de Walker subiria. Ele transformou sua tira universitária numa divertida sátira às instituições do exército americano. E Walker tinha experiência para retratar a vida militar: antes de fazer carreira nas HQ, ele já frequentara o exército, chegando ao posto de tenente.
Se uma tira universitária não tinha dado certo, como explicar então que uma tira sobre o exército americano tenha feito sucesso? É o mistério. Estranhamente, o editor de Walker havia falado que, se desde o início ele tivesse trazido uma tira de humor militar, a King nunca teria comprado.
Bem, mas o fato é que, desde essa guinada, os clientes aumentaram, e a tira foi a segunda da história das HQ a alcançar mais de 1000 jornais que publicavam a tira - a primeira foi Blondie, de Chic Young. Mais tarde, outras tiras se juntariam ao clube: Hagar, de Dik Browne, Peanuts, de Charles Schulz, Garfield, de Jim Davis e Calvin e Haroldo de Bill Waterson.
Além de Zero, Walker criou uma segunda tira famosa em 1954, Hi & Lois, conhecida no Brasil como Zezé & Cia ou Trixie. Trata-se de uma tira familiar que nasceu de uma forma curiosa: dentro das tiras do Recruta Zero, como uma tentativa de dar a Zero uma vida civil - as personagens de Hi & Lois eram parentes do Recruta. Mas é claro que Zero voltaria à caserna, por pressão dos leitores, que, pelo menos nos EUA, podem alterar os rumos de uma tira de HQ.
Zero é bem conhecido dos leitores. Aliás, é uma tira cheia de personagens cativantes e simpáticos, com os quais o leitor pode se identificar com pelo menos um. O principal é Zero (Beetle Bailey), um soldado cuja marca registrada é o boné (às vezes o chapéu, o quepe ou o capacete) sempre enterrado na cabeça, cobrindo os olhos; um soldado preguiçoso, incompetente e trapalhão, a contestação ao sistema autoritário do exército em pessoa, vítima constante da fúria de Tainha (Sgt. Snokel), o sargento gordo, agressivo, comilão e tímido quando o assunto é mulher. Ambos vivem no quartel Swampy, uma instituição esquecida pelo Pentágono americano, comandada pelo velho e ranzinza General Dureza (Gen. Halftrack), que inutilmente espera ser reconhecido pela instituição máxima do exército americano.
Além de Zero, Tainha e Dureza, convivem no quartel Swampy: os soldados Quindim (Killer), um conquistador que não pode ver um rabo de saia; Dentinho (este sim se chama Zero nos EUA), um soldado ingênuo a ponto de ser estúpido; Platão (Plato), o intelectual; Roque (Rocky), o contestador e agressivo; e Cosme (Cosmo), o apostador. Do lado dos oficiais, o tenente Escovinha (ten. Fuzz), jovem, ambicioso e excêntrico, que tenta a todo custo alinhar o Sargento Tainha; o Capitão Durandana (Cap. Scabbard), durão apenas na aparência; Cuca (cookie), o cozinheiro, cuja comida não é apreciada pelos soldados (exceto o Tainha); o Capelão, que tenta a todo custo evangelizar um quartel onde o pecado é constante; e Tenente Mironga (ten. Flap), o oficial negro. Além deles, temos também: Oto (Otto), o cão do Sargento; senhorita Blips (Miss Blips), a secretária do General, mas que, apesar de competente, não consegue atrair a atenção dele quanto sua colega, Dona Tetê (Miss Buxley), loira e linda, o pecado em pessoa, que põe em xeque o próprio; Martha, a esposa do General, a única que consegue mandar no velho; e o Major Batalha (Major Greenbass), o companheiro inseparável de Dureza no golfe. Entre outros e outros... Que retratam de forma satírica e magistral a dura vida no exército, os exercícios militares, a vontade de desertar na primeira oportunidade, as longas marchas cansativas, a vida privada da oficialidade, a burocracia dos quartéis que não beneficia a todos, a cansativa rotina de cavar trincheiras, os castigos físicos para quem sair da linha...
Mas é claro que contestar o exército criou alguns percalços ao autor. Ficou famoso, por exemplo, o caso em que, em 1954, Zero foi banido da Star and Stripes, o jornal oficial das Forças Armadas Americanas - uma vez que Zero fazia nas tiras o que um soldado de verdade não deveria fazer, e o exército era retratado de uma forma que desagradava os militares. Logo, o Recruta era, para o alto escalão, algo que os soldados não deveriam ler, sob o risco de acabarem se espelhando. No entanto, isso acabou estimulando o sucesso da tira: os fãs simplesmente recortavam as tiras dos jornais civis e mandavam aos parentes soldados no front. Essa prática foi encorajada pela King Features e Mort Walker, e ajudou no sucesso da tira. Assim, a incompetência das Forças Armadas continuava sendo magistralmente satirizada embora o Exército tentasse passar outra imagem. O Recruta Zero segue o avesso do orgulho patriótico americano.
Outro grande problema criado com a tira foi justamente a personagem Dona Tetê, que seria o símbolo do sexismo e do chauvinismo masculino - uma vez que o General Dureza sempre dava um jeito de dar em cima dela - além de ser um protótipo de "loira burra", menos competente que sua colega, a desengonçada Srta. Blips. É claro, devemos lembrar que os soldados de todo o mundo costumam ficar longe de mulheres e, sempre que podem, ficam xavecando as mais bonitas - os militares são alguns dos maiores consumidores de literatura e iconografia erótica, como forma de levantar o astral no front. Certa feita, Walker chegou a desenhar um mural com Dona Tetê nua e cercada por miniaturas dos personagens da tira.
Hoje, depois de mais de 50 anos, gibis e alguns episódios de desenho animado, Walker continua desenhando a tira, ao lado do filho Greg. Porém, nada mudou nesses 50 anos de Zero, e com certeza nada mudará, pelo menos se assim desejar o Sr. Walker. Pouquíssimas mudanças foram operadas, como adaptar a tira à era dos computadores, mas os personagens são os mesmos de quase 50 anos atrás, e não mudaram seu jeito de ser até agora. Pode parecer chato, e é. Afinal, outros personagens, como o Homem-Aranha ou a Mõnica, já fizeram mais de 30 anos, e são os mesmos até hoje. De quem é a culpa pela imobilidade?
O Recruta Zero é um dos personagens mais publicados do Brasil, onde estreou com o nome Zé, o Soldado Raso. Várias editoras tinham e têm coletâneas do personagem em seus catálogos. A RGE, a Saber, a Globo (ex-RGE), a Opera Graphica... todos publicaram coletâneas de Zero, mas nem todas com boa qualidade.
Mas a coletânea que vocês estão vendo é uma das melhores publicadas no Brasil: pela L&PM e sua coleção Quadrinhos Pocket, edição de bolso, publicadas em 2006 e 2007, respectivamente.

Por que esta coletânea é a melhor? Porque é a tradução de uma edição americana em que Walker, além de publicar suas tirinhas, conta histórias dos bastidores da criação. Mais ainda: o primeiro volume, de dois publicados até agora pela editora, traz um material inédito no Brasil: algumas das tiras do Zero na fase universitária, para depois fazer a transição do personagem para o exército.
Quer dizer... nem tanto inéditas. Antes do fechamento, em 2009, a Opera Graphica lançara um livro tamanho gigante, Recruta Zero Ano Um, que reúne todas as tiras do personagem em sua fase inicial.
A edição da L&PM é a mais acessível, entretanto. Aqui, Walker comenta a história de Zero na universidade (aqui, uma raridade: a única tira em que Zero mostra os olhos, sem o chapéu!), seu alistamento, seus primeiros anos como Soldado Raso. Comenta também a história por trás da criação dos personagens secundários - desde os que não deram certo, portanto pouco conhecidos, como os soldados Cantina, Olho de Cobra, Texas, Bochechinha, Foguinho e Sebinho, até os que deram certo, como Dureza, Quindim, Dentinho, Escovinha, etc. (estranhamente, ele não falou de Platão, Cosme e Mironga, apesar de eles aparecerem nos livros). Várias páginas são dedicadas ao Sargento Tainha, depois de Zero o personagem mais amado da tira - embora Walker afirme ser o General Dureza seu favorito e alter-ego dentro do Swampy. Ah: nem o cãozinho Otto ficou de fora, desde quando ele trajava apenas uma faixa em volta do corpo até a aparência atual, completamente fardado e andando sobre duas patas. Não podia faltar também Dona Martha, que simboliza o quanto um homem (no caso, o General Dureza) pode comandar milhares de soldados no quartel, mas em casa sempre tem quem mande nele.
Mais: não poderiam faltar as histórias da criação de Hi & Lois e a famosa historinha da censura na Star and Stripes, bem como a polêmica da Dona Tetê - porém, o mural com dona Tetê nua não foi incluído, já avisando. E, claro, gradualmente, os momentos em que a tira alcançou 900, 1000 e 1100 jornais.
Mais que isso: dá para perceber através da leitura destes dois volumes que o traço de Walker nunca se manteve o mesmo. Na verdade, foi evoluindo através do tempo, desde um estilo mais esguio até o conhecido estilo arredondado.
Mais ainda: no segundo volume, há a contribuição de outro artista, Stan Drake (criador de The Heart of Juliet Jones - O Coração de Julieta), que cria uma página engraçada - como retribuição a uma brincadeira de Walker para cima de sua tira - onde mistura o estilo realista de Juliet Jones com o caricatural de Zero.
Simplesmente imperdível!
Zero pode ter chegado até os dias atuais como foi concebido, nunca ter sido promovido e nunca ter entrado na linha como bom soldado que se preze. Mas de repente podemos nos convencer de uma coisa: nem tudo preciso mudar para que a vida se renove. Mudanças sempre assustam as pessoas, e mudar agora talvez não seria sensato. Se bem que eu acho que Walker tenha jogado fora uma porção de oportunidades...

O RETORNO DE LETÍCIA
Ié, pessoal! Fazia tempo que eu não publicava aqui tiras de Letícia!
Aproveitei este feriado de Tiradentes para desenhar mais um pouco minha menina, coisa que eu não fazia há tempos. E constatei enquanto eu escaneava as tiras: até o presente momento, desde meados de 2007, desenhei exatamente 150 tiras da Letícia - incluindo aqui as inéditas, a serem publicadas em breve!
Pois hoje, num arco inédito, Letícia vai nos relatar um pouco de sua infância.
Ela é uma menina, ainda, mas é legal fazer uma versão "baby" - a Letícia com cinco aninhos de idade.
Aguardem: logo a Letícia estará no Quadritiras (http://www.quadritiras.com.br/), com este novo arco. Lá vocês poderão conferir a versão ampliada.
Bem, não que eu ache este meu melhor arco de tiras, já que nem todas foram desenhadas na ordem que aqui aparecem - algumas foram desenhadas antes. Mas é o sentimento que tive ao ver os rascunhos: tinha de desenhar algumas tiras extras para completar o arco - assim foi com a série Como Comer Pipoca no Ar.
Vocês podem reparar que a arte final é diferente em algumas tiras - as canetas usadas são diferentes. Ah, mas deixe... Já tive de dar explicações demais.
Ah, se pretendo deixar a personagem como está pela eternidade ou se vou deixá-la crescer? Aí depende. Depende de vocês, leitores, sempre os mesmos intrometidos, que podem alterar os rumos. Mas, se eu decidir envelhecer a Letícia, claro que vou.
Até mais!

3 comentários:

refemdabd disse...

Boa! Tenho a primeira edição da L&PM desses dois livros, em formato álbum. Estão demais. Excelente review de um dos meu autores e personagens favoritos.

Marco disse...

tenho os dois livros perfeita descrição =)

Amanda Bastos disse...

Seus textos são ótimos...
abs!