Olá.
Hoje,
continuo minha série especial sobre a coleção Literatura Brasileira em
Quadrinhos, da editora Escala Educacional.
Hoje
trazendo mais Machado de Assis. Hoje trazendo mais Francisco Vilachã. Hoje
trazendo O ENFERMEIRO. Hoje trazendo um caso em que os defeitos de um álbum
equivalem suas qualidades, equilibrando a balança.
Bom.
O ENFERMEIRO, o conto, foi publicado anteriormente em periódico, e compilado,
junto com outros contos famosos de Machado de Assis, o “Bruxo do Cosme Velho”,
no volume Várias Histórias, de 1896.
Já a
adaptação para quadrinhos, com roteiro, arte e cores de Francisco Vilachã e
assistência de Fernando A. Rodrigues na colorização, foi lançada por volta de
2005. Chegou a ser distribuído nas bancas de revista junto com o volume Um Músico Extraordinário, de Lima
Barreto, também adaptado para HQ por Vilachã. Eis as informações iniciais.
Como
já falei de Machado de Assis e de Francisco Vilachã anteriormente, vamos direto
ao álbum.
O
ENFERMEIRO é considerado, por alguns estudiosos, uma paródia machadiana. A
trama lembra a do romance Crime e
Castigo, do russo Fiodor Dostoievski, publicado em 1866. Por sinal, um dos
grandes clássicos da literatura russa e mundial. Porém, Machado tomou algumas
providências para que o seu conto não fosse tomado como um plágio da obra do
russo – isto é, se o romance de Dostoievski foi mesmo traduzido para o
português e distribuído no Brasil no final do século XIX. Ou, é mais provável,
tenha circulado aqui alguma edição traduzida para o francês, já que francês era
a língua usada pelos homens cultos brasileiros, além do português, naquela
época. Bem, de qualquer forma, é inevitável a comparação entre O ENFERMEIRO e Crime e Castigo: ambas as obras lidam
com uma questão parecida. O personagem principal deve ser condenado por um
assassinato que cometeu, visto que a vítima havia lhe feito o mal em vida?
Well.
O ENFERMEIRO conta a história de Procópio José Gomes Valongo, e um
acontecimento ocorrido em 1860, que ele narra em primeira pessoa. Valongo dá a
entender, no início do conto, que deixou uma confissão escrita de seu crime,
para ser publicada apenas depois de sua morte, provavelmente por doença ou
velhice. E, só depois de um trecho introdutório cheio de reflexões, ele começa
a contar sua história, que o leitor vai lendo e, depois da leitura, tem a
chance de julgar o personagem – culpado ou inocente pelo assassinato de um
velho doente e rabugento, que, abusando de sua condição, maltratava o próprio
enfermeiro?
No
mês de agosto de 1859, Valongo, então com 42 anos e trabalhando em uma igreja,
copiando trechos de obras eclesiásticas, é recomendado pelo padre local, por
solicitação do vigário de uma paróquia de uma vila do interior, para trabalhar
como enfermeiro para um ricaço local, o Coronel Felisberto. Valongo vai para a
tal vila, e não precisa de muito tempo para constatar, primeiro através da
opinião de moradores da vila, depois por conta própria, que o Coronel
Felisberto é uma pessoa rabugenta e má. As doenças das quais sofria, agravadas
pela velhice, deixavam Felisberto ainda mais cruel. E, por um ano, o pobre
Procópio (o Coronel resolve chama-lo pelo primeiro nome) tem de ouvir o doente
a seus cuidados lhe xingar, ofender, gritar, distribuir bengaladas... e
aguentar tudo calado, como um bode expiatório. Com o tempo, Valongo acumula
ódio pelo Coronel, e, por várias vezes, decide ir embora, mas é convencido
sempre a ficar, ou pelo próprio doente, ou pelas pessoas da vila.
Uma
noite, em agosto de 1860, acontece um incidente: Valongo vigia o doente, durante
o sono, para acordá-lo à meia-noite e ministrar medicação; até que o paciente
acorda gritando, alucinado, e joga uma moringa no rosto de Procópio, que, em um
acesso de raiva, se atira sobre o Coronel, o estrangula... e o mata. Ao dar
conta do que fez, Valongo entra em desespero, cogita fugir, mas fica no local
até o dia seguinte, angustiando-se, tendo alucinações. Comparece ao enterro do
falecido, fazendo questão de amortalhá-lo; e volta ao Rio de Janeiro. Ninguém
suspeita de nada, felizmente. E Valongo passa algum tempo angustiado.
Até
que recebe uma notícia: Procópio havia sido nomeado, pelo próprio Coronel
Felisberto, herdeiro de sua fortuna. Valongo teme que seja uma armadilha, que o
crime foi descoberto. E, na ida à vila para receber a herança, se angustia,
mas, aos poucos, analisa a situação e começa a mudar de opinião a respeito dos
acontecimentos: a morte do Coronel Felisberto, em verdade, teria sido legítima
defesa, por todos os maus tratos que o doente lhe infligia em vida. E o remorso
vai passando, à medida que Valongo ouve comentários nada simpáticos sobre o
falecido, e, com a fortuna recebida, toma medidas para honrar a memória do
velho. E o segredo fica guardado para si, até aquele momento do início do conto.
Ele fez de tudo para afastar as suspeitas – e facilitou bastante a própria
condição do Coronel, que, devido à idade, morreria de qualquer forma.
Bem.
A adaptação de Vilachã é, de novo, literal, por se tratar de uma narrativa
curta. O quadrinhista desta vez faz uso de quadros pequenos e estreitos,
retornando ao estilo utilizado em Uns
Braços. Como o próprio conto original tem poucos diálogos, mais uma vez é
raro o uso dos balões de fala, os recordatórios dominam a parte escrita da
adaptação. Mas, desta vez, os quadros a mais, com cenas inseridas
incidentalmente à trama, não soam desnecessários ao conjunto, como aconteceu em
Um Músico Extraordinário. Para
começar, Vilachã utilizou de um recurso inteligente para resolver a introdução
do conto: ele colocou o próprio Machado de Assis indo visitar Valongo em seu
leito, e este, seriamente adoentado, repassa para o autor o manuscrito com sua
confissão. Só aí, depois, partimos para a história. O “avatar” de Machado de
Assis aparece ainda na metade da história, e no fim do conto, deixando em
aberto que destino ele há de dar aos manuscritos de Procópio. Essa inserção de
Machado de Assis faz O ENFERMEIRO ganhar vários pontos dentro da coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos.
A
maior parte de O ENFERMEIRO, o conto, é constituída de reflexões e filosofias,
que por si não são fáceis de traduzir para a linguagem gráfica. Logo, pelas uso
constante de closes do rosto dos personagens, novamente O ENFERMEIRO fica
semelhante a Uns Braços. E, na
realidade, a impressão que fica é que os personagens concebidos por Vilachã são
parecidos, como se o quadrinhista usasse um molde único para concebê-los. Os
personagens masculinos de Vilachã tem quase todos o nariz grande e um rosto
comprido (deem uma olhada na capa acima para ter uma ideia). A impressão que se
tem, por exemplo, é que o Coronel Felisberto é uma versão envelhecida do
Comendador Borges, antagonista de Uns
Braços. Quanta diferença das histórias que ele desenhava para, por exemplo,
a revista Inter Quadrinhos, nos anos
1980.
Tem
mais: dá para notar que o trabalho do autor em O ENFERMEIRO é meio apressado e
desajeitado, já que se notam alguns trechos onde o autor erra a mão no traço. É
até compreensível, afinal, ele teve de cuidar, na época, da produção de cinco
álbuns consecutivos para a Escala Educacional (Uns Braços, Um Músico Extraordinário, O ENFERMEIRO, A Nova Califórnia e
A Causa Secreta)! Cada um com 40
páginas de quadrinhos, e mais oito de créditos, atividades complementares para
alunos do Ensino Fundamental e biografia de Machado de Assis, totalizando o
álbum 48 páginas sem contar capa! Na parte da colorização, Vilachã e Rodrigues
investem em tonalidades mais sépia, tom de fotografias antigas, como se as
cores fossem desvanecendo, aproximando O ENFERMEIRO das cores difusas de Uns Braços e afastando do colorido vivo
de Um Músico Extraordinário, mas,
ainda assim, com o uso de cores chapadas, com poucas variações de tonalidade.
Com
esse equilíbrio entre qualidades e defeitos, O ENFERMEIRO foi, até agora, a
melhor adaptação feita por Francisco Vilachã para a coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos. Um
clássico de Machado de Assis, para as novas gerações, de uma forma acessível.
Se
na biblioteca de sua escola não tem esse volume, recomendamos então que acessem
o site da Escala Educacional para saber como adquirir este volume (www.escalaeducacional.com.br).
Para
encerrar, deixo, como está sendo de costume, mais algumas páginas de minha mais
nova investida artístico-cultural, a HQ folhetinesca O Açougueiro, produzida aos poucos, sem roteiro definido, e em um
estilo de quadrinhização meio lembrando as narrativas sequenciais de Ângelo
Agostini e Rafael Bordalo Pinheiro, dois grandes expoentes das narrativas
sequenciais no Brasil do século XIX. Eles também, em algumas de suas histórias,
não usavam requadros separando as cenas. Mas não usavam balões, e sim legendas
ao pé dos desenhos, o que já me diferencia. Mas, reconheço, parece que a
história não está andando em um ritmo que seria adequado aos gostos dos
leitores de hoje. Que dizem a respeito? Deixem sua opinião! Não se acanhem!
Na
próxima postagem, A Nova Califórnia, dando
continuidade à Coleção.
Até
mais!
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