quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O ENFERMEIRO HQ ou: Dostoievski manda lembranças

Olá.
Hoje, continuo minha série especial sobre a coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos, da editora Escala Educacional.
Hoje trazendo mais Machado de Assis. Hoje trazendo mais Francisco Vilachã. Hoje trazendo O ENFERMEIRO. Hoje trazendo um caso em que os defeitos de um álbum equivalem suas qualidades, equilibrando a balança.

Bom. O ENFERMEIRO, o conto, foi publicado anteriormente em periódico, e compilado, junto com outros contos famosos de Machado de Assis, o “Bruxo do Cosme Velho”, no volume Várias Histórias, de 1896.
Já a adaptação para quadrinhos, com roteiro, arte e cores de Francisco Vilachã e assistência de Fernando A. Rodrigues na colorização, foi lançada por volta de 2005. Chegou a ser distribuído nas bancas de revista junto com o volume Um Músico Extraordinário, de Lima Barreto, também adaptado para HQ por Vilachã. Eis as informações iniciais.
Como já falei de Machado de Assis e de Francisco Vilachã anteriormente, vamos direto ao álbum.
O ENFERMEIRO é considerado, por alguns estudiosos, uma paródia machadiana. A trama lembra a do romance Crime e Castigo, do russo Fiodor Dostoievski, publicado em 1866. Por sinal, um dos grandes clássicos da literatura russa e mundial. Porém, Machado tomou algumas providências para que o seu conto não fosse tomado como um plágio da obra do russo – isto é, se o romance de Dostoievski foi mesmo traduzido para o português e distribuído no Brasil no final do século XIX. Ou, é mais provável, tenha circulado aqui alguma edição traduzida para o francês, já que francês era a língua usada pelos homens cultos brasileiros, além do português, naquela época. Bem, de qualquer forma, é inevitável a comparação entre O ENFERMEIRO e Crime e Castigo: ambas as obras lidam com uma questão parecida. O personagem principal deve ser condenado por um assassinato que cometeu, visto que a vítima havia lhe feito o mal em vida?
Well. O ENFERMEIRO conta a história de Procópio José Gomes Valongo, e um acontecimento ocorrido em 1860, que ele narra em primeira pessoa. Valongo dá a entender, no início do conto, que deixou uma confissão escrita de seu crime, para ser publicada apenas depois de sua morte, provavelmente por doença ou velhice. E, só depois de um trecho introdutório cheio de reflexões, ele começa a contar sua história, que o leitor vai lendo e, depois da leitura, tem a chance de julgar o personagem – culpado ou inocente pelo assassinato de um velho doente e rabugento, que, abusando de sua condição, maltratava o próprio enfermeiro?
No mês de agosto de 1859, Valongo, então com 42 anos e trabalhando em uma igreja, copiando trechos de obras eclesiásticas, é recomendado pelo padre local, por solicitação do vigário de uma paróquia de uma vila do interior, para trabalhar como enfermeiro para um ricaço local, o Coronel Felisberto. Valongo vai para a tal vila, e não precisa de muito tempo para constatar, primeiro através da opinião de moradores da vila, depois por conta própria, que o Coronel Felisberto é uma pessoa rabugenta e má. As doenças das quais sofria, agravadas pela velhice, deixavam Felisberto ainda mais cruel. E, por um ano, o pobre Procópio (o Coronel resolve chama-lo pelo primeiro nome) tem de ouvir o doente a seus cuidados lhe xingar, ofender, gritar, distribuir bengaladas... e aguentar tudo calado, como um bode expiatório. Com o tempo, Valongo acumula ódio pelo Coronel, e, por várias vezes, decide ir embora, mas é convencido sempre a ficar, ou pelo próprio doente, ou pelas pessoas da vila.
Uma noite, em agosto de 1860, acontece um incidente: Valongo vigia o doente, durante o sono, para acordá-lo à meia-noite e ministrar medicação; até que o paciente acorda gritando, alucinado, e joga uma moringa no rosto de Procópio, que, em um acesso de raiva, se atira sobre o Coronel, o estrangula... e o mata. Ao dar conta do que fez, Valongo entra em desespero, cogita fugir, mas fica no local até o dia seguinte, angustiando-se, tendo alucinações. Comparece ao enterro do falecido, fazendo questão de amortalhá-lo; e volta ao Rio de Janeiro. Ninguém suspeita de nada, felizmente. E Valongo passa algum tempo angustiado.
Até que recebe uma notícia: Procópio havia sido nomeado, pelo próprio Coronel Felisberto, herdeiro de sua fortuna. Valongo teme que seja uma armadilha, que o crime foi descoberto. E, na ida à vila para receber a herança, se angustia, mas, aos poucos, analisa a situação e começa a mudar de opinião a respeito dos acontecimentos: a morte do Coronel Felisberto, em verdade, teria sido legítima defesa, por todos os maus tratos que o doente lhe infligia em vida. E o remorso vai passando, à medida que Valongo ouve comentários nada simpáticos sobre o falecido, e, com a fortuna recebida, toma medidas para honrar a memória do velho. E o segredo fica guardado para si, até aquele momento do início do conto. Ele fez de tudo para afastar as suspeitas – e facilitou bastante a própria condição do Coronel, que, devido à idade, morreria de qualquer forma.
Bem. A adaptação de Vilachã é, de novo, literal, por se tratar de uma narrativa curta. O quadrinhista desta vez faz uso de quadros pequenos e estreitos, retornando ao estilo utilizado em Uns Braços. Como o próprio conto original tem poucos diálogos, mais uma vez é raro o uso dos balões de fala, os recordatórios dominam a parte escrita da adaptação. Mas, desta vez, os quadros a mais, com cenas inseridas incidentalmente à trama, não soam desnecessários ao conjunto, como aconteceu em Um Músico Extraordinário. Para começar, Vilachã utilizou de um recurso inteligente para resolver a introdução do conto: ele colocou o próprio Machado de Assis indo visitar Valongo em seu leito, e este, seriamente adoentado, repassa para o autor o manuscrito com sua confissão. Só aí, depois, partimos para a história. O “avatar” de Machado de Assis aparece ainda na metade da história, e no fim do conto, deixando em aberto que destino ele há de dar aos manuscritos de Procópio. Essa inserção de Machado de Assis faz O ENFERMEIRO ganhar vários pontos dentro da coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos.
A maior parte de O ENFERMEIRO, o conto, é constituída de reflexões e filosofias, que por si não são fáceis de traduzir para a linguagem gráfica. Logo, pelas uso constante de closes do rosto dos personagens, novamente O ENFERMEIRO fica semelhante a Uns Braços. E, na realidade, a impressão que fica é que os personagens concebidos por Vilachã são parecidos, como se o quadrinhista usasse um molde único para concebê-los. Os personagens masculinos de Vilachã tem quase todos o nariz grande e um rosto comprido (deem uma olhada na capa acima para ter uma ideia). A impressão que se tem, por exemplo, é que o Coronel Felisberto é uma versão envelhecida do Comendador Borges, antagonista de Uns Braços. Quanta diferença das histórias que ele desenhava para, por exemplo, a revista Inter Quadrinhos, nos anos 1980.
Tem mais: dá para notar que o trabalho do autor em O ENFERMEIRO é meio apressado e desajeitado, já que se notam alguns trechos onde o autor erra a mão no traço. É até compreensível, afinal, ele teve de cuidar, na época, da produção de cinco álbuns consecutivos para a Escala Educacional (Uns Braços, Um Músico Extraordinário, O ENFERMEIRO, A Nova Califórnia e A Causa Secreta)! Cada um com 40 páginas de quadrinhos, e mais oito de créditos, atividades complementares para alunos do Ensino Fundamental e biografia de Machado de Assis, totalizando o álbum 48 páginas sem contar capa! Na parte da colorização, Vilachã e Rodrigues investem em tonalidades mais sépia, tom de fotografias antigas, como se as cores fossem desvanecendo, aproximando O ENFERMEIRO das cores difusas de Uns Braços e afastando do colorido vivo de Um Músico Extraordinário, mas, ainda assim, com o uso de cores chapadas, com poucas variações de tonalidade.
Com esse equilíbrio entre qualidades e defeitos, O ENFERMEIRO foi, até agora, a melhor adaptação feita por Francisco Vilachã para a coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos. Um clássico de Machado de Assis, para as novas gerações, de uma forma acessível.
Se na biblioteca de sua escola não tem esse volume, recomendamos então que acessem o site da Escala Educacional para saber como adquirir este volume (www.escalaeducacional.com.br).
Para encerrar, deixo, como está sendo de costume, mais algumas páginas de minha mais nova investida artístico-cultural, a HQ folhetinesca O Açougueiro, produzida aos poucos, sem roteiro definido, e em um estilo de quadrinhização meio lembrando as narrativas sequenciais de Ângelo Agostini e Rafael Bordalo Pinheiro, dois grandes expoentes das narrativas sequenciais no Brasil do século XIX. Eles também, em algumas de suas histórias, não usavam requadros separando as cenas. Mas não usavam balões, e sim legendas ao pé dos desenhos, o que já me diferencia. Mas, reconheço, parece que a história não está andando em um ritmo que seria adequado aos gostos dos leitores de hoje. Que dizem a respeito? Deixem sua opinião! Não se acanhem!
Na próxima postagem, A Nova Califórnia, dando continuidade à Coleção.

Até mais!

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