quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS HQ ou: a desonestidade premiada

Olá.
Estive fora do ar por algum tempo, mas por um bom motivo: preparando material para uma nova série de postagens, no blog, sobre... adaptações de obras literárias brasileiras em forma de HQ.
Para apresentar a vocês a série Literatura Brasileira em Quadrinhos, da editora Escala Educacional, escolho hoje o, possivelmente, primeiro livro da série: O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS. Mas antes, claro, é preciso falar de várias coisas antes de partir para o livro propriamente dito...
A ESCALA EDUCACIONAL E A COLEÇÃO...
Primeiro, é preciso situar ao público a editora em questão, a Escala Educacional. Trata-se de uma divisão do Grupo Editorial Escala, cujo setor mais conhecido é o das revistas em bancas. Foi por volta de 2004 que a Escala Educacional começou a funcionar, e se especializou, como o próprio nome diz, em publicações voltadas à educação: revistas especializadas para professores e profissionais de educação, livros didáticos, literatura infantil e infanto-juvenil e cinco séries de quadrinhos: a Literatura Brasileira em Quadrinhos, a Literatura Mundial em Quadrinhos, a História do Brasil em Quadrinhos, a História Mundial em Quadrinhos e a Filosofia em Quadrinhos. Todas destinadas aos alunos do Ensino Fundamental, já que a linguagem gráfica pode ser entendida como uma forma de fixar o conteúdo pretendido. Em todas essas coleções, importantes artistas da “geração do meio” dos quadrinhos brasileiros (artistas que consagraram-se entre os anos 1980 e início dos anos 2000) colaboraram, entre eles: Jô Fevereiro, Francisco Vilachã, Sebastião Seabra, Bira Dantas, Jorge Guidacci, André Diniz, Antônio Eder, Ronaldo Antonelli, Laudo Ferreira Jr., Omar Viñole...
Bem. A série Literatura Brasileira em Quadrinhos começou em 2004. Alguns dos álbuns da coleção chegaram, inclusive, a ser vendidos em bancas de revistas, em pacotes com dois livros. Cada álbum tinha em média 48 páginas (sem contar capa), e a série começou com contos de Lima Barreto e Machado de Assis, por Jô Fevereiro e Francisco Vilachã. Da primeira leva, foram oito títulos: de Lima Barreto, O Homem que Sabia Javanês, Um Músico Extraordinário, A Nova Califórnia e Miss Edith e seu Tio; e, de Machado de Assis, Uns Braços, O Enfermeiro, A Cartomante e A Causa Secreta.
Pouco depois, a coleção se ampliou, agora com livros “maiores”, como Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, O Ateneu, de Raul Pompeia, A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo, Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado... Por consequência, os álbuns também aumentaram em número de páginas, entre 64 e 72 páginas. De alguns desses títulos, vou falando no decorrer do tempo.
De todo modo, a Escala Educacional foi uma das editoras que se aproveitou da “mania” observada pelas editoras brasileiras na década de 2000: as adaptações de clássicos da literatura para HQ. O fenômeno se acentuou depois de 2006, quando o Plano Nacional de Bibliotecas nas Escolas (PNBE), do Ministério da Educação, passou a incluir histórias em quadrinhos entre os livros destinados às bibliotecas escolares. Embora as adaptações de obras literárias para quadrinhos não fossem novidade na época (vem desde os anos 1930 que editoras como a EBAL e a RGE tinham, em seus catálogos de títulos, adaptações de obras brasileiras e estrangeiras para HQ – respectivamente, as coleções Edição Maravilhosa e Romance em Quadrinhos), foi nos anos 2000 que se acentuou esse “fenômeno”, que contribuiu, entre outras coisas, para dar “serviço” a autores de histórias em quadrinhos profissionais, veteranos e novatos, e, por consequência, deu um incentivo a mais para a “indústria” nacional de quadrinhos, sempre sob ameaça. Várias editoras, além da Escala Educacional, passaram a incluir, em seus catálogos, séries de adaptações literárias para HQ. É o caso de editoras como a Ática, a Peirópolis, a Companhia Editora Nacional e a Agir. Cada editora deu ao grupo de autores que contratou, a liberdade de interpretar as obras literárias à sua maneira, por isso se explica por que uma mesma obra tenha diferentes versões, feitas à mesma época, diferentes em abordagem, desenho... Para citar alguns exemplos, O Alienista, de Machado de Assis, teve quatro adaptações para HQ, lançadas quase simultaneamente (pela Agir, por Fábio Moon e Gabriel Bá; pela Companhia Editora Nacional, por Laílson de Holanda Cavalcanti; pela Escala Educacional, por Francisco Vilachã; e pela Ática, por Luís Antônio Aguiar e César Lobo); já Triste Fim de Policarpo Quaresma também teve quatro adaptações lançadas na mesma década (pela Escala Educacional, por Ronaldo Antonelli e Francisco Vilachã; pela CEN, também por Laílson; pela Ática, também por Aguiar e Lobo; e pela Desiderata, por Flávio Braga e Edgar Vasques). E não cito, nesse momento, outros casos para não me estender demais neste tópico... mas vocês devem ter me entendido.
Para conhecer mais sobre as séries de HQ da Escala Educacional, visitem o site oficial da editora: www.escalaeducacional.com.br.

JÔ FEVEREIRO
Bem, para começar a falar a respeito da série Literatura Brasileira em Quadrinhos, escolhi falar, inicialmente, da adaptação de O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS, de Lima Barreto, por Jô Fevereiro.
De Lima Barreto, já devo ter falado uma vez, e o escritor dispensa maiores apresentações – quem não fugiu das aulas de literatura, na escola, sabe quem é. Mas vocês não devem ter ouvido sequer falar de Jô Fevereiro, certo?
Bão. Josmar Fevereiro nasceu em 1950, em São Paulo, SP. Além de quadrinhista, ilustrador e publicitário, Jô Fevereiro também é escultor.
Em 1964, ele cursou a Escola Panamericana de Arte, de São Paulo. No ano seguinte, começou a trabalhar como assistente do veterano quadrinhista Nico Rosso, colaborando em revistas como Estórias Negras, Combate, Seleções do Terror, Cavaleiro Fantasma, Dakota Jim e A Cripta – fez desenhos e alguns roteiros.
Ainda em 1965, Fevereiro ingressa na publicidade, por questões financeiras, e só retorna aos quadrinhos em 1977, ao colaborar com a editora Vecchi, mais precisamente para a revista Pesadelo. Fevereiro acompanhou o boom de produções brasileiras dos anos 1970 a 1980, desenhando páginas de histórias de terror e de sexo para as editoras Grafipar, Vecchi e Ondas – para essa última, colaborou na importante revista Inter Quadrinhos, editada por Ronaldo Antonelli e Francisco Vilachã a partir de 1984. Colaborou ainda com a EBAL, desenhando HQs de Zorro.
Em 1978, no meio tempo entre esses trabalhos, Fevereiro fez curso de roteirização de HQ na Associação de Artistas Gráficos.
Entre 1988 e 1995, Fevereiro foi trabalhar com publicidade em Portugal. Lá, para o Jornal da Casa do Brasil em Lisboa, ele cria a tira Juca Brasuca, personagem representante da figura do migrante brasileiro em terras lusitanas. Em Portugal, ainda, para uma publicação feminina, produziu histórias de Xana – Uma Mulher Activa. De volta ao Brasil, continuou trabalhando com publicidade, desenhando, inclusive, tiras para a revista VIP, da editora Abril.
A série Literatura Brasileira em Quadrinhos representou o retorno de Fevereiro às HQ. Ele foi responsável pelos seguintes títulos da coleção: O Homem que sabia Javanês, A Cartomante, Miss Edith e seu Tio e Brás, Bexiga e Barra Funda.
Ele foi um dos participantes, também da coletânea AQC 100 Vezes, organizada pela Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo (AQC - SP).
Entre todos esses trabalhos, ele também ilustrou livros infanto-juvenis. Por exemplo: são dele as ilustrações da primeira edição de Enigma na Televisão, de Marcos Rey, série Vaga-Lume da Editora Ática.
O blog pessoal do autor, embora paralisado, ainda está ativo: http://jofevereiro.blogspot.com.br/.

AGORA SIM: O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS
Com roteiro, desenhos e cores de Jô Fevereiro e arte-final de Sebastião Seabra, O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS abre a coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos. Lançado em 2004, o álbum chegou a ser distribuído em bancas, junto com o volume Uns Braços, de Machado de Assis por Francisco Vilachã.
O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS é um dos contos mais famosos do escritor Lima Barreto (1881 – 1922), se não o mais famoso – divide o título de escrito mais famoso com o conto A Nova Califórnia e o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma. O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS foi publicado pela primeira vez no jornal Gazeta da Tarde, do Rio de Janeiro, em 1911; em 1920, foi publicado no livro de contos Histórias e Sonhos.
Existem muitas edições do conto, tanto em edição solo como reunido com outros contos de Lima Barreto, por diversas editoras. Abaixo, está a capa de uma versão de bolso do conto, lançada pela Editora da Universidade do Sagrado Coração (EDUSC), de Bauru, SP, com ilustrações de Daniel Razabone. Só para citar um exemplo.
Até onde pude apurar, a edição da Escala Educacional é a única adaptação integral do conto para HQ – as outras edições ilustradas, por outras editoras, não seguem o formato HQ convencional, com balões, quadrinização ou onomatopeias.
O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS se encaixa dentro da temática dos escritos de Lima Barreto, um cronista da vida e dos vícios observados na República Velha do Brasil (1889 – 1930). Era uma época que, segundo a historiografia, não era a mais interessante de nossa história, se o leitor for do povo em geral: disputas pelo poder, domínio das oligarquias rurais, sobretudo dos grandes produtores de café, reduzida participação do povo nas decisões políticas, positivismo científico. E o povo que se dane, os políticos não estavam praticamente nem aí, já que apenas 2% da população da época estava apta a votar e ser votada nas eleições. Lima Barreto fez parte do “povão”, e pode observar a situação em que ela vivia. Ele mesmo encontrou grandes dificuldades em vida para se manter e publicar seus textos.
Quem pudesse ou quisesse, poderia dar um jeito de conseguir alguns “benefícios”, como a riqueza ou, no mínimo, um bom cargo público. É esse o tema de O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS: a história de um homem que consegue a prosperidade material simulando possuir conhecimentos que não possui, e à custa da ingenuidade das outras pessoas.
Castelo, o personagem principal, consegue riqueza, reconhecimento e fama fingindo saber javanês, a língua falada em algumas ilhas da Indonésia.
No conto, Castelo, em uma confeitaria, conta ao amigo Castro a história de como fingiu ser professor de língua javanesa. Na época em que vivia na miséria, em quartos de pensão, sem saber como ganhar dinheiro no Rio de Janeiro, Castelo, um dia, vê, em um jornal, um anúncio solicitando um professor de javanês. O malandro resolve se candidatar, e começa a “estudar” javanês por conta própria, através de verbetes de enciclopédia e livros de biblioteca. Dias depois, vai à casa do solicitante do curso, o velho Barão de Jacuecanga, que quer aprender a língua javanesa para cumprir uma promessa de família: entender a linguagem de um livro que seu avô ganhara tempos atrás, e que, supostamente, traria sorte a quem o ler. Como o livro é escrito em javanês, daí a necessidade de um professor de javanês. Facilitou muito a vida de Castelo, natural da Bahia, também, conseguir simular a aparência de um malaio e, assim, enganar o Barão se dizendo filho de um navegador javanês, com quem “aprendeu” a língua.
Porém, Castelo evidentemente não sabe nada de javanês, já que seu saber é basicamente artificial, a “cultura enciclopédica”, que qualquer um pode obter com alguma dose de boa vontade, mesmo que não venha a ter utilidade depois. Mas, graças a uma série de mentiras e fingimentos, ele simula perfeitamente tal conhecimento. E se aproveita da ingenuidade das pessoas ao seu redor – o Barão, a família dele, e trabalhadores de ministérios – já que ninguém mais sabe o tal língua javanesa, possibilitando a Castelo “ser” o único especialista disponível na linguagem. Ninguém, ao menos, se dá ao trabalho de testar os conhecimentos de Castelo – bastava apenas a palavra dele. Logo, não alcança apenas prosperidade material, como também um importante cargo público – de cônsul. E ainda representando o Brasil em um Congresso Internacional! E ainda comparecer a jantares com importantes autoridades! E o pior: Castelo consegue jamais ser desmascarado. Por muito pouco, em uma oportunidade, ele quase o foi.
O conto é curto e bem fácil de entender. Seus temas são facilmente compreensíveis e, bem, as atitudes de Castelo não são estranhas aos brasileiros de hoje: ainda hoje se observam casos de gente fingindo ser o que não é. Pode parecer deprimente, mas é o “jeitinho brasileiro” retratado há décadas. O leitor, em princípio, pode se escandalizar, mas, dificilmente, deixará de ter alguma simpatia pelo patife. Afinal, por que não simpatizar com alguém que, de certa forma, conseguiu sair da miséria e conquistar o mundo?
E, na verdade, não seria difícil encontrar alguém assim hoje em dia – alguém que finja dominar uma linguagem exótica, sem necessidade de Google Tradutor. O maior diferencial é que, hoje, temos meios para desmascarar tipos assim, diferente dos anos 1910. Mas, no geral: alguém aí, entre meus 17 leitores, sabe alguma palavra em javanês?
A adaptação de Fevereiro é bem básica e literal. Sendo um conto curto, transpor as palavras de Barreto para o desenho de quadrinhos nem foi difícil. O texto, inclusive, é integral. Praticamente nenhuma palavra do conto original foi mudada. Nenhuma cena foi deslocada ou mudada, mantendo a intercalação entre as cenas do presente – Castelo contando a história para Castro na confeitaria – e os flashbacks do passado do “professor de javanês”. Ainda que isso signifique o risco da “substituição” do conto original, em texto corrido, pela versão gráfica – algo que a EBAL e a RGE, quando publicavam suas séries, evitavam: fazer uma versão quadrinizada literal demais.
E tudo fica ainda melhor graças ao traço de Fevereiro, fortemente realista, e valorizado pela arte-final de Sebastião Seabra, um especialista em anatomia humana. Ambos fizeram um excelente retrato da época em que a história se passa, com ambientação, pesquisa de vestuário, etc. E não há maiores complicações em acompanhar a história, visto que as cores são quase chapadas.
O volume de 48 páginas tem 40 delas dedicadas à história, e seis com biografia do autor original, Lima Barreto, e atividades pós-leitura sugeridas para os alunos do Ensino Fundamental, público ao qual o volume se destina.
E, com isso, começamos bem a série. Com um pouco de sorte, o livro pode ser encontrado nas livrarias e bibliotecas; ou mesmo no site da Escala Educacional, é mais fácil.

PARA ENCERRAR...
Estou de volta com minha folhetinesca série “O Açougueiro”. Livre de alguns compromissos assumidos recentemente, posso retornar a fazer, ou tentar fazer, a série baseada nos Crimes da Rua do Arvoredo – Porto Alegre, 1863 – 1864. A história, confessadamente, não foi pré-determinada, ela aparece à medida que vou fazendo. Não que seja minha intenção, mas o que faço, posso dizer que é um... experimentalismo.
Para ler as páginas anteriores, cliquem no marcador “Açougueiro” para acessarem as postagens correspondentes.
Na próxima postagem: Uns Braços, dando continuidade à série sobre a série Literatura Brasileira em Quadrinhos.
E por hoje é isso.

Até mais!

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