Olá.
Estive
fora do ar por algum tempo, mas por um bom motivo: preparando material para uma
nova série de postagens, no blog, sobre... adaptações de obras literárias
brasileiras em forma de HQ.
Para
apresentar a vocês a série Literatura
Brasileira em Quadrinhos, da editora Escala Educacional, escolho hoje o,
possivelmente, primeiro livro da série: O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS. Mas antes,
claro, é preciso falar de várias coisas antes de partir para o livro
propriamente dito...
Primeiro,
é preciso situar ao público a editora em questão, a Escala Educacional.
Trata-se de uma divisão do Grupo Editorial Escala, cujo setor mais conhecido é
o das revistas em bancas. Foi por volta de 2004 que a Escala Educacional
começou a funcionar, e se especializou, como o próprio nome diz, em publicações
voltadas à educação: revistas especializadas para professores e profissionais
de educação, livros didáticos, literatura infantil e infanto-juvenil e cinco
séries de quadrinhos: a Literatura
Brasileira em Quadrinhos, a Literatura
Mundial em Quadrinhos, a História do
Brasil em Quadrinhos, a História
Mundial em Quadrinhos e a Filosofia
em Quadrinhos. Todas destinadas aos alunos do Ensino Fundamental, já que a
linguagem gráfica pode ser entendida como uma forma de fixar o conteúdo
pretendido. Em todas essas coleções, importantes artistas da “geração do meio”
dos quadrinhos brasileiros (artistas que consagraram-se entre os anos 1980 e
início dos anos 2000) colaboraram, entre eles: Jô Fevereiro, Francisco Vilachã,
Sebastião Seabra, Bira Dantas, Jorge Guidacci, André Diniz, Antônio Eder,
Ronaldo Antonelli, Laudo Ferreira Jr., Omar Viñole...
Bem.
A série Literatura Brasileira em
Quadrinhos começou em 2004. Alguns dos álbuns da coleção chegaram,
inclusive, a ser vendidos em bancas de revistas, em pacotes com dois livros.
Cada álbum tinha em média 48 páginas (sem contar capa), e a série começou com
contos de Lima Barreto e Machado de Assis, por Jô Fevereiro e Francisco
Vilachã. Da primeira leva, foram oito títulos: de Lima Barreto, O Homem que Sabia Javanês, Um Músico
Extraordinário, A Nova Califórnia e Miss
Edith e seu Tio; e, de Machado de Assis, Uns Braços, O Enfermeiro, A Cartomante e A Causa Secreta.
Pouco
depois, a coleção se ampliou, agora com livros “maiores”, como Memórias de um Sargento de Milícias, de
Manuel Antônio de Almeida, Triste Fim de
Policarpo Quaresma de Lima Barreto, Memórias
Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, O
Ateneu, de Raul Pompeia, A Moreninha,
de Joaquim Manoel de Macedo, Brás,
Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado... Por consequência,
os álbuns também aumentaram em número de páginas, entre 64 e 72 páginas. De
alguns desses títulos, vou falando no decorrer do tempo.
De
todo modo, a Escala Educacional foi uma das editoras que se aproveitou da
“mania” observada pelas editoras brasileiras na década de 2000: as adaptações
de clássicos da literatura para HQ. O fenômeno se acentuou depois de 2006,
quando o Plano Nacional de Bibliotecas nas Escolas (PNBE), do Ministério da
Educação, passou a incluir histórias em quadrinhos entre os livros destinados
às bibliotecas escolares. Embora as adaptações de obras literárias para
quadrinhos não fossem novidade na época (vem desde os anos 1930 que editoras
como a EBAL e a RGE tinham, em seus catálogos de títulos, adaptações de obras
brasileiras e estrangeiras para HQ – respectivamente, as coleções Edição Maravilhosa e Romance em Quadrinhos), foi nos anos
2000 que se acentuou esse “fenômeno”, que contribuiu, entre outras coisas, para
dar “serviço” a autores de histórias em quadrinhos profissionais, veteranos e
novatos, e, por consequência, deu um incentivo a mais para a “indústria”
nacional de quadrinhos, sempre sob ameaça. Várias editoras, além da Escala
Educacional, passaram a incluir, em seus catálogos, séries de adaptações
literárias para HQ. É o caso de editoras como a Ática, a Peirópolis, a
Companhia Editora Nacional e a Agir. Cada editora deu ao grupo de autores que
contratou, a liberdade de interpretar as obras literárias à sua maneira, por
isso se explica por que uma mesma obra tenha diferentes versões, feitas à mesma
época, diferentes em abordagem, desenho... Para citar alguns exemplos, O Alienista, de Machado de Assis, teve quatro adaptações para HQ, lançadas quase simultaneamente (pela Agir, por Fábio Moon e Gabriel Bá; pela Companhia Editora Nacional, por Laílson de Holanda
Cavalcanti; pela Escala Educacional, por Francisco Vilachã; e pela Ática, por Luís Antônio Aguiar e César Lobo); já Triste Fim de Policarpo Quaresma também teve
quatro adaptações lançadas na mesma década
(pela Escala Educacional, por Ronaldo Antonelli e Francisco Vilachã; pela CEN, também por Laílson; pela Ática, também por Aguiar e Lobo; e pela
Desiderata, por Flávio Braga e Edgar Vasques). E não cito, nesse momento,
outros casos para não me estender demais neste tópico... mas vocês devem ter me
entendido.
Para
conhecer mais sobre as séries de HQ da Escala Educacional, visitem o site
oficial da editora: www.escalaeducacional.com.br.
JÔ FEVEREIRO
Bem,
para começar a falar a respeito da série Literatura
Brasileira em Quadrinhos, escolhi falar, inicialmente, da adaptação de O
HOMEM QUE SABIA JAVANÊS, de Lima Barreto, por Jô Fevereiro.
De
Lima Barreto, já devo ter falado uma vez, e o escritor dispensa maiores
apresentações – quem não fugiu das aulas de literatura, na escola, sabe quem é.
Mas vocês não devem ter ouvido sequer falar de Jô Fevereiro, certo?
Bão.
Josmar Fevereiro nasceu em 1950, em São Paulo, SP. Além de quadrinhista,
ilustrador e publicitário, Jô Fevereiro também é escultor.
Em
1964, ele cursou a Escola Panamericana de Arte, de São Paulo. No ano seguinte,
começou a trabalhar como assistente do veterano quadrinhista Nico Rosso,
colaborando em revistas como Estórias
Negras, Combate, Seleções do Terror, Cavaleiro Fantasma, Dakota Jim e A Cripta – fez desenhos e alguns
roteiros.
Ainda
em 1965, Fevereiro ingressa na publicidade, por questões financeiras, e só
retorna aos quadrinhos em 1977, ao colaborar com a editora Vecchi, mais
precisamente para a revista Pesadelo. Fevereiro
acompanhou o boom de produções
brasileiras dos anos 1970 a 1980, desenhando páginas de histórias de terror e
de sexo para as editoras Grafipar, Vecchi e Ondas – para essa última, colaborou
na importante revista Inter Quadrinhos, editada
por Ronaldo Antonelli e Francisco Vilachã a partir de 1984. Colaborou ainda com
a EBAL, desenhando HQs de Zorro.
Em
1978, no meio tempo entre esses trabalhos, Fevereiro fez curso de roteirização
de HQ na Associação de Artistas Gráficos.
Entre
1988 e 1995, Fevereiro foi trabalhar com publicidade em Portugal. Lá, para o
Jornal da Casa do Brasil em Lisboa, ele cria a tira Juca Brasuca, personagem representante da figura do migrante
brasileiro em terras lusitanas. Em Portugal, ainda, para uma publicação
feminina, produziu histórias de Xana –
Uma Mulher Activa. De volta ao Brasil, continuou trabalhando com
publicidade, desenhando, inclusive, tiras para a revista VIP, da editora Abril.
A
série Literatura Brasileira em Quadrinhos representou o retorno de Fevereiro às
HQ. Ele foi responsável pelos seguintes títulos da coleção: O Homem que sabia Javanês, A Cartomante,
Miss Edith e seu Tio e Brás, Bexiga e
Barra Funda.
Ele foi um dos participantes, também da coletânea AQC 100 Vezes, organizada pela Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo (AQC - SP).
Entre
todos esses trabalhos, ele também ilustrou livros infanto-juvenis. Por exemplo:
são dele as ilustrações da primeira edição de Enigma na Televisão, de Marcos Rey, série Vaga-Lume da Editora
Ática.
AGORA SIM: O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS
Com
roteiro, desenhos e cores de Jô Fevereiro e arte-final de Sebastião Seabra, O
HOMEM QUE SABIA JAVANÊS abre a coleção Literatura
Brasileira em Quadrinhos. Lançado em 2004, o álbum chegou a ser distribuído
em bancas, junto com o volume Uns Braços,
de Machado de Assis por Francisco Vilachã.
O
HOMEM QUE SABIA JAVANÊS é um dos contos mais famosos do escritor Lima Barreto
(1881 – 1922), se não o mais famoso – divide o título de escrito mais famoso
com o conto A Nova Califórnia e o
romance Triste Fim de Policarpo Quaresma.
O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS foi publicado pela primeira vez no jornal Gazeta da Tarde, do Rio de Janeiro, em
1911; em 1920, foi publicado no livro de contos Histórias e Sonhos.
Existem
muitas edições do conto, tanto em edição solo como reunido com outros contos de
Lima Barreto, por diversas editoras. Abaixo, está a capa de uma versão de bolso
do conto, lançada pela Editora da Universidade do Sagrado Coração (EDUSC), de
Bauru, SP, com ilustrações de Daniel Razabone. Só para citar um exemplo.
Até
onde pude apurar, a edição da Escala Educacional é a única adaptação integral
do conto para HQ – as outras edições ilustradas, por outras editoras, não
seguem o formato HQ convencional, com balões, quadrinização ou onomatopeias.
O
HOMEM QUE SABIA JAVANÊS se encaixa dentro da temática dos escritos de Lima
Barreto, um cronista da vida e dos vícios observados na República Velha do
Brasil (1889 – 1930). Era uma época que, segundo a historiografia, não era a
mais interessante de nossa história, se o leitor for do povo em geral: disputas
pelo poder, domínio das oligarquias rurais, sobretudo dos grandes produtores de
café, reduzida participação do povo nas decisões políticas, positivismo científico.
E o povo que se dane, os políticos não estavam praticamente nem aí, já que
apenas 2% da população da época estava apta a votar e ser votada nas eleições.
Lima Barreto fez parte do “povão”, e pode observar a situação em que ela vivia.
Ele mesmo encontrou grandes dificuldades em vida para se manter e publicar seus
textos.
Quem
pudesse ou quisesse, poderia dar um jeito de conseguir alguns “benefícios”,
como a riqueza ou, no mínimo, um bom cargo público. É esse o tema de O HOMEM
QUE SABIA JAVANÊS: a história de um homem que consegue a prosperidade material
simulando possuir conhecimentos que não possui, e à custa da ingenuidade das
outras pessoas.
Castelo,
o personagem principal, consegue riqueza, reconhecimento e fama fingindo saber
javanês, a língua falada em algumas ilhas da Indonésia.
No
conto, Castelo, em uma confeitaria, conta ao amigo Castro a história de como
fingiu ser professor de língua javanesa. Na época em que vivia na miséria, em
quartos de pensão, sem saber como ganhar dinheiro no Rio de Janeiro, Castelo,
um dia, vê, em um jornal, um anúncio solicitando um professor de javanês. O
malandro resolve se candidatar, e começa a “estudar” javanês por conta própria,
através de verbetes de enciclopédia e livros de biblioteca. Dias depois, vai à
casa do solicitante do curso, o velho Barão de Jacuecanga, que quer aprender a
língua javanesa para cumprir uma promessa de família: entender a linguagem de
um livro que seu avô ganhara tempos atrás, e que, supostamente, traria sorte a
quem o ler. Como o livro é escrito em javanês, daí a necessidade de um
professor de javanês. Facilitou muito a vida de Castelo, natural da Bahia,
também, conseguir simular a aparência de um malaio e, assim, enganar o Barão se
dizendo filho de um navegador javanês, com quem “aprendeu” a língua.
Porém,
Castelo evidentemente não sabe nada de javanês, já que seu saber é basicamente
artificial, a “cultura enciclopédica”, que qualquer um pode obter com alguma
dose de boa vontade, mesmo que não venha a ter utilidade depois. Mas, graças a
uma série de mentiras e fingimentos, ele simula perfeitamente tal conhecimento.
E se aproveita da ingenuidade das pessoas ao seu redor – o Barão, a família
dele, e trabalhadores de ministérios – já que ninguém mais sabe o tal língua
javanesa, possibilitando a Castelo “ser” o único especialista disponível na
linguagem. Ninguém, ao menos, se dá ao trabalho de testar os conhecimentos de
Castelo – bastava apenas a palavra dele. Logo, não alcança apenas prosperidade
material, como também um importante cargo público – de cônsul. E ainda
representando o Brasil em um Congresso Internacional! E ainda comparecer a
jantares com importantes autoridades! E o pior: Castelo consegue jamais ser
desmascarado. Por muito pouco, em uma oportunidade, ele quase o foi.
O
conto é curto e bem fácil de entender. Seus temas são facilmente compreensíveis
e, bem, as atitudes de Castelo não são estranhas aos brasileiros de hoje: ainda
hoje se observam casos de gente fingindo ser o que não é. Pode parecer
deprimente, mas é o “jeitinho brasileiro” retratado há décadas. O leitor, em
princípio, pode se escandalizar, mas, dificilmente, deixará de ter alguma
simpatia pelo patife. Afinal, por que não simpatizar com alguém que, de certa
forma, conseguiu sair da miséria e conquistar o mundo?
E,
na verdade, não seria difícil encontrar alguém assim hoje em dia – alguém que
finja dominar uma linguagem exótica, sem necessidade de Google Tradutor. O
maior diferencial é que, hoje, temos meios para desmascarar tipos assim,
diferente dos anos 1910. Mas, no geral: alguém aí, entre meus 17 leitores, sabe
alguma palavra em javanês?
A
adaptação de Fevereiro é bem básica e literal. Sendo um conto curto, transpor
as palavras de Barreto para o desenho de quadrinhos nem foi difícil. O texto,
inclusive, é integral. Praticamente nenhuma palavra do conto original foi
mudada. Nenhuma cena foi deslocada ou mudada, mantendo a intercalação entre as
cenas do presente – Castelo contando a história para Castro na confeitaria – e
os flashbacks do passado do “professor de javanês”. Ainda que isso signifique o
risco da “substituição” do conto original, em texto corrido, pela versão
gráfica – algo que a EBAL e a RGE, quando publicavam suas séries, evitavam:
fazer uma versão quadrinizada literal demais.
E
tudo fica ainda melhor graças ao traço de Fevereiro, fortemente realista, e
valorizado pela arte-final de Sebastião Seabra, um especialista em anatomia
humana. Ambos fizeram um excelente retrato da época em que a história se passa,
com ambientação, pesquisa de vestuário, etc. E não há maiores complicações em
acompanhar a história, visto que as cores são quase chapadas.
O
volume de 48 páginas tem 40 delas dedicadas à história, e seis com biografia do
autor original, Lima Barreto, e atividades pós-leitura sugeridas para os alunos
do Ensino Fundamental, público ao qual o volume se destina.
E,
com isso, começamos bem a série. Com um pouco de sorte, o livro pode ser
encontrado nas livrarias e bibliotecas; ou mesmo no site da Escala Educacional,
é mais fácil.
PARA ENCERRAR...
Estou
de volta com minha folhetinesca série “O Açougueiro”. Livre de alguns
compromissos assumidos recentemente, posso retornar a fazer, ou tentar fazer, a
série baseada nos Crimes da Rua do Arvoredo – Porto Alegre, 1863 – 1864. A
história, confessadamente, não foi pré-determinada, ela aparece à medida que
vou fazendo. Não que seja minha intenção, mas o que faço, posso dizer que é um...
experimentalismo.
Para
ler as páginas anteriores, cliquem no marcador “Açougueiro” para acessarem as
postagens correspondentes.
Na
próxima postagem: Uns Braços, dando
continuidade à série sobre a série Literatura
Brasileira em Quadrinhos.
E
por hoje é isso.
Até
mais!
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