domingo, 18 de dezembro de 2016

Filme: SONHOS TROPICAIS

Olá.
Na última postagem, vocês leram a respeito do romance Sonhos Tropicais, de Moacyr Scliar, uma verdadeira recriação do ambiente social, político e científico do início do século XX.
Pois hoje, vamos falar do produto derivado desse livro: SONHOS TROPICAIS, o filme que praticamente ninguém viu – quando foi lançado. O que é uma pena.

Bem. SONHOS TROPICAIS, o filme, foi produzido em 2001, com direção e produção de André Sturm, que também co-escreveu o roteiro com Fernando Bonassi e Victor Navas, tendo por base o romance de Moacyr Scliar – mas apenas tendo por base, porque o filme não é uma adaptação direta do livro.
Com uma excelente recriação da época tratada, tanto nos figurinos como nos cenários, SONHOS TROPICAIS trata da atuação do sanitarista Oswaldo Cruz em favor da saúde pública do Rio de Janeiro e dos eventos, diretos e paralelos, que conduziram à Revolta da Vacina de 1904.
Bão: para começar, é preciso fazer a comparação entre livro e filme. O livro adota um recorte de tempo maior: ele relata toda a vida do sanitarista Oswaldo Cruz, do nascimento à morte, e acontecimentos paralelos, tanto no Brasil como na França; e essa história é narrada por um médico alcoólatra e desempregado do Rio de Janeiro dos dias atuais, que está à espera de um encontro com um pesquisador norte-americano que deseja fazer uma pesquisa sobre a vida de Oswaldo Cruz. Só isso já caracteriza o livro como sendo muito mais rico em informações.
O filme, por sua vez, adota um tempo cronológico menor: o período entre 1898 e 1904. Dispensa a trama paralela do médico narrador nos dias atuais; dispensa o período da juventude de Oswaldo Cruz e o período passado na França, trabalhando no Instituto Pasteur. A trama se passa inteiramente no Rio de Janeiro, do retorno de Oswaldo Cruz ao Brasil até o desfecho da Revolta da Vacina – ignorando também os eventos posteriores. Sturm manteve, mesmo, a narrativa fragmentada em histórias paralelas; mas, antes de Oswaldo Cruz (interpretado por Bruno Giordano), a protagonista do filme é Esther (Carolina Kasting), a prostituta polonesa, cuja importância na trama do livro é menor. E, entre Esther e Oswaldo Cruz, o deuteragonista (segundo papel mais importante) do filme é o malandro Amaral (Douglas Simon).
Bão. O filme trata de diversos ambientes: o médico, nas cenas passadas no interior dos hospitais e dos laboratórios; o político, tanto nos gabinetes do presidente da época, Rodrigues Alves (Cecil Thiré) como do prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos (Nelson Dantas), outro ambiente pelo qual Rodrigues Alves circula; o social das classes mais abonadas, representado pelos três senhores que comentam os fatos sentados à mesa de uma confeitaria (José Lewgoy, Hugo Carvana e Antônio Pedro); o das favelas, por onde circulam os tipos populares, entre eles o feroz negro Prata Preta (Bukassa Kabengele); o ambiente das primeiras manifestações trabalhistas, inflamadas pelos discursos de líderes como Vicente de Souza (Antônio Grassi); e o ambiente dos bordéis, por onde tanto Esther como Amaral circulam – o filme também retrata a prática corrente, à época, do “tráfico de escravas brancas”, das mulheres, principalmente do leste europeu, que são aliciadas com a promessa de um bom casamento em terras brasileiras, mas que no fim descobrem que foram ludibriadas, e acabam trabalhando como prostitutas. Se forem loiras de olhos azuis, são as mais cobiçadas, principalmente por “figurões”.
Infelizmente, é nessa armadilha na qual Esther, polonesa e judia, acaba caindo – ela chega no mesmo navio que Oswaldo Cruz, mas acaba tomando um rumo diferente, e é difícil ficar insensível ao seu sofrimento, em uma época em que mulher não tinha vez. A moça vai parar em um bordel do bairro da Lapa, e protesta ao descobrir que fora enganada. Esther, inicialmente, sofre para se adaptar ao trabalho forçado, tendo de aguentar as agressões do cafetão Rotchilds (Antônio Petrin), que chega a estupra-la e açoitá-la. Felizmente, Esther encontra algum amparo junto à amiga Vânia (Lu Grimaldi), também polonesa. Aliás, Esther, Vânia e Rotchilds dialogam em língua iídiche.
Com o tempo, Esther vai se adaptando à “vida fácil” por falta de opção. Aprende a língua portuguesa. Chega a ser acusada por um cliente de ter passado e este doenças venéreas, mas encontra quem lhe defenda. Esse “defensor” é Amaral, com quem desenvolve um relacionamento de idas e vindas – Amaral está apaixonado pela “polaquinha”, e conta principalmente com a lábia para conseguir “um pouco de amor” junto a Esther, que assimila o cinismo típico da profissão – “sem dinheiro, sem amor”.
Mais tarde, Esther acaba se tornando a favorita do duas-caras Cardoso de Castro (Flávio Galvão), o delegado de polícia do Rio de Janeiro. No início, o Dr. Cardoso trata bem a “polaquinha”, e, sob sua proteção, Esther monta seu próprio bordel. Mas as coisas não parecem assim tão fáceis: em uma cena, Esther se deita com um político, com a autorização de Cardoso, desejoso da amizade da importante figura; mas o político não aguenta o esforço e morre do coração.
Porém, as coisas começam a mudar no momento em que Cardoso descobre o caso entre Esther e Amaral. O malvado delegado passa a usar as prerrogativas de seu cargo para se vingar de Esther – prerrogativas facilitadas pelos planos de reurbanização do Rio de Janeiro implementadas por Pereira Passos, que, com a carta branca de Rodrigues Alves, entre outras coisas, prevê a demolição dos casarões antigos do centro da cidade, que estavam sendo usados como cortiços, e a expulsão dos antigos moradores para a periferia. Claro que, a esse pretexto, Cardoso expulsa Esther de seu bordel, e a moça, em companhia de Vânia, pena para procurar outro lugar para morar e exercer seu “ofício” – Cardoso orienta várias pessoas a não darem trabalho à “polaquinha”. Ela até consegue acolhida em uma casa, mas é expulsa depois que Vânia contrai varíola e vem a falecer no hospital. Pouco depois, ela consegue uma função de garçonete e prostituta na venda de Manoel Romão (Cláudio Mamberti), local por onde Prata Preta e Amaral também circulam.
Em alguns momentos, ouvimos a voz de Esther em off, lendo o texto de suas cartas mandadas para o pai, em seu país – ela precisa mentir, contar uma história diferente para seus pais na Polônia, não sendo possível contar a verdade.
Bão: enquanto corre a história de Esther, em paralelo corre a de Oswaldo Cruz, circulando entre a casa, o laboratório e o gabinete do governo. Quando chega ao Brasil, junto com a compreensiva e temerosa esposa Emília (Ingra Liberato), inicialmente ele está trabalhando como médico em uma fábrica de tecidos; mais tarde, é nomeado Diretor de Saúde Pública por Rodrigues Alves. Ele, em princípio, teve dificuldade para instalar seu laboratório de pesquisas na fazenda de Manguinhos, a fim de produzir soro antipestoso para debelar uma epidemia no porto de Santos. Os bons resultados em Santos garantem a Oswaldo Cruz a carta branca de Rodrigues Alves e Pereira Passos, necessária para implementar sua política sanitária, prevista nos planos para melhorar a imagem do Rio de Janeiro, a vitrine brasileira para os estrangeiros – os planos visavam à atração de investimentos estrangeiros para minorar a queda nos rendimentos do café (na época, os “donos do poder” eram os grandes plantadores de café).
Bem. Os planos de Oswaldo Cruz previam: o combate aos mosquitos, a fim de livrar a cidade da febre amarela – o que ele consegue, com sucesso, apesar das tentativas de opositores em provar o contrário da eficácia desse plano; o combate da peste bubônica, através da caçada aos ratos; e, claro, a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola.
O plano da peste bubônica tem adesão da população, já que uma das medidas foi a caça e a troca de ratos vivos por dinheiro junto a agentes da saúde pública. E é disso que Amaral acaba se aproveitando: consegue aliciar um líder positivista, obcecado pelo retrato da musa positivista Clotilde Veau, para obter um terreno, onde Amaral instala um criadouro de ratos, e faz alguma fortuna vendendo os bichinhos. Porém, as autoridades acabam desconfiando sobre tantos ratos vendidos por uma única pessoa, e Amaral acaba preso – outra oportunidade de vingança por parte de Cardoso.
Oswaldo Cruz acaba recebendo oposições de diversos setores – mas sabe como contornar as acusações infundadas de que é vítima. Em uma cena, ele é acusado pela suspeita de uma vacina ter causado a morte de uma mulher; porém, o próprio Oswaldo vai pessoalmente fazer a autópsia na mulher morta – que sequer havia sido feita, pois o legista nem abrira o cadáver – e desmente o boato, provando que a mulher morrera de bêbada.
Mas foi a obrigatoriedade da vacina que acabou complicando tudo para o lado de Oswaldo Cruz: a oposição foi enorme, tanto do lado dos adversários do governo de Rodrigues Alves quanto do povo. O que antes era simplesmente guiado pela desconfiança por conta da substância a ser aplicada – germes atenuados de varíola bovina, que, segundo alguns, poderiam transformar a pessoa vacinada em bezerro – e pela moral algo tacanha da época – supostamente as moças de família teriam de tirar a roupa para aplicar a vacina – acaba se tornando questão política. Por parte de militares, positivistas e políticos descontentes, uma oportunidade para tirar do governo as oligarquias cafeeiras; por parte do povo, uma oportunidade de obter melhores condições de vida através de protestos. Nenhum dos lados leva em conta a intenção do Dr. Oswaldo de melhorar a saúde da população, logo, nenhum dos lados deixa claros os motivos reais da oposição à vacina, o que deixa Oswaldo Cruz impotente e se sentindo derrotado, apesar da consolação de Emília. Nem o governo parece estar a seu lado – praticamente deixando claro que o governo só priorizava seus interesses no poder.
Enquanto isso, as ruas são tomadas por confrontos entre a polícia e os setores populares, com barricadas montadas com entulho, tiros, mortos e feridos. O “exército” popular tem Prata Preta à frente. Esther fica como uma observadora solitária da situação, e Amaral até se envolve brevemente, como negociador do conflito, a mando do delegado Cardoso. E, como todos que estudam História sabem, as consequências não foram as melhores.
Well: o filme procurou, conforme a frase nos créditos finais, retratar a realidade histórica com realidade – até mesmo os acontecimentos fictícios. O que aparece no filme praticamente bate com a realidade histórica, tanto no ambiente dos gabinetes como do povo, deixando claro os tratamentos dispensados tanto para um como para outro na época. E, claro, na época da República Velha, o povo levava a pior: inchando os cortiços e as favelas, vivendo em ambientes insalubres onde campeavam as doenças graves, se submetendo à exploração nas nascentes indústrias ou nas lavouras, passando fome quando não conseguiam trabalho, e ainda submetidos à constante violência policial, numa época em que a capoeira era proibida.
O filme, último do ator Cláudio Mamberti, que faleceu em 2001, foi filmado em locações nas cidades paranaenses de Castro e Antonina, onde são recriadas as tomadas nas ruas e nas casas; as únicas cenas rodadas no Rio de Janeiro, mesmo, são as que ocorrem no Palácio do Catete (antiga sede do governo federal) e na Confeitaria Colombo (onde se reúnem os personagens de Lewgoy, Carvana e Pedro). E ainda foi premiado: recebeu o prêmio de melhor atriz (para Carolina Kasting) no Festival de Cinema de Recife em 2002; e foi indicado a melhor figurino no Cinema Brazil Grand Prize.
Outra curiosidade diz respeito às cenas da Fazenda de Ratos do Amaral: foram usados 460 ratos de laboratório, brancos, que tiveram de ser tingidos de cinza.
O filme tem uma excelente cenografia, bem-cuidado som e trilha sonora (com versões orquestradas de peças da musicista Chiquinha Gonzaga inclusas) e boas atuações. A maquiagem conseguiu recriar fidedignamente o semblante de Oswaldo Cruz no ator Bruno Giordano – porém, Cecil Thiré não ficou tão parecido assim com Rodrigues Alves, nem Nelson Dantas com Pereira Passos – comparem, se puderem, com fotografias da época. Aliás, parece que a equipe de maquiagem se enganou e colocou a aparência de Rodrigues Alves em Dantas, ao invés de Thiré.
Os outros atores se esmeraram em suas interpretações. Kasting oscila bastante entre a moça sofredora e a mulher já adaptada ao “sistema”, encarando a vida com cinismo; Douglas Simon deu ao personagem Amaral todo o molejo de um típico malandro de morro, no falar e no agir; Flávio Galvão faz do delegado Cardoso um verdadeiro vilão de telenovela, fazendo Esther comer do pão que o diabo amassou em suas mãos. Até mesmo Bukassa Kabengele, como Prata Preta, mostra que não está para brincadeiras – como representante do povo, mostra que, na época, era tudo ou nada.
O filme, com a narrativa fragmentada entre as diversas histórias paralelas, ainda é entrecortado com imagens filmadas no início do século XX, legendas e simulações de notícias de cinejornal (no início do século XX, antes da popularização do rádio, era comum que, antes da exibição de filmes no cinema, se exibissem também notícias filmadas, ao modo atual dos telejornais). No fim, André Sturm e sua equipe fizeram um bom trabalho – só pecou no final, ao não deixar claro o destino de alguns personagens depois do fim da Revolta da Vacina. De ter deixado a sensação de que Oswaldo Cruz saiu totalmente derrotado na cadeia de eventos.
Pena que, aparentemente, muita gente sequer ouviu falar desse filme. Além de brasileiro, é filme de época. É o tipo de filme feito para exibição em escolas, apesar da simulação de cenas de sexo – com personagens vestidos, é claro, como era praxe da época – e discretíssimas cenas de nudez.
Não sei dizer se esse filme, apesar de recente, é fácil de achar em DVD ou no streaming de internet. Mas no YouTube, no momento em que escrevo, está disponível. Inclusive, encontrei uma cópia que inclui legendas, cenas cortadas e making of. Aqui: https://www.youtube.com/watch?v=fieH3FqzrZ0.
Não desprezeis esses pedaços de História, brasileiros, se sabem o que é bom para vós.

PARA ENCERRAR...
...deixo a vocês mais algumas páginas de O Açougueiro, minha HQ folhetinesca, em publicação em pílulas há quase um ano. Hoje, só consegui produzir duas páginas.
Mas ainda mantenho a promessa de, em uma única postagem, colocar para vocês todas as páginas já publicadas – ou quase todas. Para que vocês vejam a história em sua unidade e depois tirem sua conclusão: será que essa HQ não está ruim?
Aguardem novidades.

Até mais!

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