terça-feira, 8 de agosto de 2017

Livro: CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE

Olá.
Hoje, volto a falar de livro – mas, hoje, escolhi um que não é necessariamente do interesse geral do público, apesar de fazer eco a fatos recentes.
O livro de hoje trata de crimes ocorridos na primeira metade do século XX, mas nem todos apreciarão – não pelo tema apresentado em si, mas por causa da linguagem pouco acessível, visto que a obra é, originalmente, de outra época. Se quiser prosseguir a leitura, eu explico.
Hoje vou falar, então, de CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE.


O TRAJETO DE ALGUNS “TEXTINHOS” JUDICIAIS
A capa que vocês veem acima é da edição mais recente da publicação. CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE foi lançado originalmente em 1962; a sua segunda edição é de 2003, lançada pelo Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul e Editora Nova Prova. A reedição da obra tratava-se de uma iniciativa do Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul, dentro do projeto editorial Memória Política e Jurídica do Rio Grande do Sul, que visava resgatar e disponibilizar ao público documentos judiciais históricos, dentro do projeto geral de resgate da memória jurídica do Estado, incluso a do próprio MP-RS, cujo prédio, sediado na Praça da Matriz de Porto Alegre, passara por uma reforma no ano anterior. O Memorial já havia lançado, anteriormente, para a série Memória Política e Jurídica, o livro Os Crimes da Ditadura, resgatando documentos a respeito do período inicial da República no Rio Grande do Sul, com foco no complicado período do governo de Júlio de Castilhos. CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE é o volume 2 da série. E havia mais volumes em planejamento, mas agora não sei informar se realmente saíram.
A edição original de CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE, de 1962, fora organizada por iniciativa do Corregedor do MP da época, Ladislau Fernando Röhnelt, responsável pela compilação de quatro célebres peças acusatórias que mobilizaram a opinião pública do Rio Grande do Sul entre as décadas de 1930 e 1950.
A nova edição de CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE foi reorganizada pelos historiadores Álvaro Walmrath Bischoff e Gunter Axt e pelo então coordenador do Memorial do MP-RS, Ricardo Vaz Seelig. A edição de 2003, que tem 324 páginas sem contar capa, se diferencia da de 1962 por ser complementada com textos introdutórios novos, de Seelig e Bischoff, trazendo o contexto histórico da época dos acontecimentos, bem como um resumo dos acontecimentos, e um caderno iconográfico com fotos de notícias de jornais referentes aos quatro crimes relatados. Os textos introdutórios originais da edição de 1962, de Floriano Maya D’Ávila (promotor em um dos casos arrolados) e Ladislau Fernando Röhnelt, também foram mantidos.
Bem. CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE, desde a primeira edição, resgatou “dos empoeirados escaninhos judiciais quatro importantes atuações de Promotores de Justiça em processos criminais que sacudiram a opinião pública” do Rio Grande do Sul (palavras extraídas do texto de 4ª capa) entre os anos de 1931 e 1944, durante o controverso período do governo de Getúlio Vargas (1931 – 1945), que, de “revolucionário”, após a vitória na Revolução de 1930, acabou se tornando uma ditadura com a implantação do Estado Novo (quem não fugiu das aulas de História no colégio sabe a que estou me referindo). Os quatro processos judiciais referem-se a crimes máximos, os homicídios, envolvendo cidadãos comuns (por isso, não influíram diretamente na história política e social dos anos 1930 e 1940), mas com diferentes relações com o poder, e diferentes motivações para tirar a vida de outrem. Alguns casos demandaram vários júris, mas em nenhum dos casos, houve condenação definitiva dos réus. Os processos levaram anos, em alguns casos, mas os réus conseguiram se livrar do “castigo” em vida. E os promotores envolvidos nesses casos, apesar de terem de carregar derrotas em seus currículos, tiveram importante atuação no Ministério Público gaúcho e também na política do Estado.
Os chamados casos Gaffrée, Creso, Carus e Papst possuem características distintas, inclusive na forma como os réus se relacionaram com a lei. Os processos expuseram casos de relações de caudilhismo/coronelismo, abuso de poder e até mesmo do patriarcalismo nas relações familiares. Tiveram ampla cobertura da imprensa, com toques de sensacionalismo, dividindo os espaços dos jornais com as notícias da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e, por isso, chamaram bastante atenção da sociedade de sua época.

SOBRE AS DIFICULDADES DE UM PESQUISADOR
Bem, até aqui vocês conseguiram entender? Não? Mas também, o livro segue nessa base: como os textos judiciais, com foco maior nos discursos das promotorias, foram transcritos no original, com o formalismo dos tribunais e o linguajar difícil utilizado por juízes, promotores, advogados e agentes dos fóruns do século XX, o texto é difícil e enfadonho para quem não tem vivência com as instituições do judiciário. E, muitas vezes, o jargão técnico do Judiciário já foi utilizado como forma de exclusão social – com a utilização de muitos termos latinos (“data venia”, “ipsis litteris” etc.), ou palavras que não fazem parte do dia-a-dia da maioria das pessoas, muitas vezes juízes e advogados utilizaram a linguagem dos tribunais para manipular a legislação contra as camadas menos instruídas da sociedade – às vezes, o favorecimento de membros da elite em questões contra membros do povo. Isso vocês devem ter entendido...
Bem, embora trate de crimes, o que é um assunto que sempre desperta atenção – tanta gente gosta de ler a respeito de crimes ocorridos na História, ou mesmo as páginas policiais dos jornais, ou gosta mesmo de assistir ao noticiário sensacionalista da TV – CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE não é um livro 100% acessível. É mais para quem é profissional do Direito ou estuda Direito, ao oferecer um panorama da vivência nos tribunais da primeira metade do século XX. E também interessa mais aos que estudam História, esses sim profissionais que precisam ler muito e, portanto, já estão mais acostumados a lidar com termos difíceis; o livro refere-se a épocas em que as leis gerais, incluso as Constituições, a forma de se portar na sociedade e as relações gerais de poder eram outras – por exemplo, as mobilizações da sociedade civil para cobrança de direitos junto aos órgãos do Governo eram dificultadas pela censura e pela repressão policial, e pela inexistência da internet para agendar grandes passeatas, para conseguir adesão a greves e protestos, era na base da panfletagem com papel e no boca-a-boca, com baixíssima possibilidade de anonimato. Quanto ao trabalho do Poder Judiciário, imaginem só: nem existiam computadores para, por exemplo, facilitar o trabalho de acondicionar processos judiciais nos arquivos; as transcrições das falas nos tribunais dependia do trabalho dos taquígrafos, profissionais encarregados de, através de códigos especiais de escrita, passar para o papel tudo o que ouviam, e na velocidade da fala; e era tudo 100% em papel, datilografado nas máquinas de escrever, ou escrito à mão – para consultar o que diz a lei, era necessário pesquisar em toneladas de páginas de legislação, e sem a facilidade de um Google para conseguir a dita lei por simples palavra-chave. Quem lida com documentos sabe como é lidar com montanhas de papel, e, muitas vezes, bancando o farmacêutico – sendo obrigado a decifrar a caligrafia, em muitos casos ruim, como se escrevessem em código, dos encarregados em transpor as palavras para o documento físico.

OS CRIMES QUE CHOCARAM O ESTADO
Bão. Os tais processos judiciais, da forma como conseguimos entender.
O livro abre com o longo caso Gaffrée, ou “crime do alto da Santa Casa”, ocorrido na cidade de Bagé, entre 1944 e 1952. Longo mesmo: o texto referente ocupa quase dois quartos do livro. Em 10 de novembro de 1944, o chefe do serviço de radiologia da Santa Casa de Bagé, Walter Aguiar, foi assassinado a facadas, na frente do hospital, pelo sicário uruguaio Salustiano Miéres. Após uma caçada humana, que se estendeu por toda a linha de fronteira com o Uruguai, Miéres foi capturado no dia 23 do mesmo mês. E o escândalo começou quando Miéres confessou ter assassinado o dr. Aguiar a mando de um colega e desafeto do médico, o dr. Cândido Gaffrée. O motivo para o assassinato teria sido um desentendimento durante o trabalho: o dr. Aguiar teria, em uma discussão, desferido uma bofetada no rosto do dr. Gaffrée. Dá para imaginar que, em uma época em que médicos eram, e deviam ser, profissionais de respeito, a imagem do dr. Gaffrée foi seriamente manchada. O caso esquentou com o assassinato de Pery Ungaretti, principal testemunha de acusação contra do Dr. Gaffrée, por um amigo do acusado. O dr. Gaffrée e Miéres enfrentaram o primeiro processo judicial em 1946, tendo por promotor Floriano Maya D’Ávila, posteriormente Procurador Geral do RS entre 1959 e 1962. No primeiro julgamento, Miéres foi condenado a 18 anos de prisão, e o dr. Gaffrée a 15 anos, mas a defesa conseguiu a anulação do julgamento, invocando uma tecnicalidade judiciária – apenas um juiz apreciou o caso, e os acusados teriam direito à apreciação por, no mínimo, dois. Miéres acabou falecendo na prisão, em 1948, enquanto aguardava o recurso. Enquanto isso, o dr. Gaffrée enfrentou mais dois júris. No de 1950, conseguiu absolvição, mas, devido a falhas detectadas pela Defesa, o dr. Gaffrée enfrentou mais um júri, em 1952 – e conseguiu ser absolvido. De todo modo, o caso Gaffrée chamou bastante a atenção, tanto pela condição social dos envolvidos, quanto pela presença de relações de caudilhismo/coronelismo, simbolizadas pela relação entre Gaffrée e Miéres.
O segundo caso, ocorrido em Passo Fundo, foi o mais sangrento – o caso Creso (não é trava-língua). Na noite de 20 de julho de 1937, o soldado reformado Valpírio Dutra da Cruz foi emboscado, ferido a tiros e, agonizante, ainda foi degolado de orelha a orelha, e seu corpo foi jogado nos trilhos da viação férrea. Uma minuciosa reconstituição de seus últimos passos, incluindo casos amorosos e inimizades, feita pelo MP local, concluiu que Valpírio foi vítima de um complô armado por antigos colegas de farda. O mandante da degola teria sido o tenente-coronel Creso de Barros Monteiro, que a ordenou ao seu mais fiel ordenança, Antunes Pereira da Costa – e o motivo envolvia mulher. O caso ainda envolveu abuso de poder: o tenente-coronel Creso era interventor em Passo Fundo, nomeado por Getúlio Vargas, e ainda era parente do Ministro da Guerra da época, Góes Monteiro. Logo, era uma figura poderosa: Creso utilizou dos recursos de sua posição para inibir as investigações contra si – até ordenou a prisão dos dois advogados de acusação. O promotor do caso foi Henrique Fonseca de Araújo, deputado estadual pelo Partido Libertador nos períodos 1947-51 e 1955-59, Procurador Geral do RS entre 1955 e 1958 e Procurador Geral da República entre 1975 e 1979. O caso ganhou notoriedade porque, na acusação, foi nomeada Sofia Galanternick, a primeira mulher promotora do RS, que, inclusive, teve de enfrentar Góes Monteiro no tribunal. Mas os réus conseguiram ser absolvidos, e o recurso posterior não obteve êxito. É o poder...
O terceiro caso teve menos requinte de crueldade – a morte foi lenta e “em parcelas”, e motivada por uma prosaica intriga familiar. O caso Carus ocorreu em Alegrete, e começou em 1949. Por volta de julho daquele ano, o fazendeiro Otacílio Carus faleceu; mas, algumas semanas depois, seu irmão, desconfiado, conseguiu que fosse feita uma necropsia no corpo. O laudo apontou uma grande quantidade de arsênico nos intestinos do fazendeiro – logo, as fortes dores no estômago e os acessos de vômito que o fazendeiro vinha tendo, há seis meses, não eram sintomas de uma simples azia. O laudo foi fortemente alardeado na imprensa, e as suspeitas do crime recaíram sobre a esposa de Otacílio Carus, Alice – ela teria ministrado pequenas doses arsênico à erva do chimarrão consumido pelo marido, diariamente. Alice já não se dava bem com o marido, e as brigas chegavam a ser escandalosas, mas o motivo imediato para premeditar o homicídio foi a oposição de Otacílio ao casamento de uma das filhas. E o caso ainda foi marcado pelo machismo da época: Alice foi desconstituída, pela acusação, da imagem de esposa dedicada e de mulher ideal – mãe, esposa, filha – conforme a concepção da época, o que causou espanto. Atuou no caso o promotor Paulo Moraes Dutra, escritor e nomeado prefeito de Guaporé em 1945. Alice Carus foi submetida a júri em julho de 1950, e absolvida por uma diferença pequena de votos. O texto da promotoria teve até citações poéticas.
Por fim, o último caso do livro é o Caso Papst, ou “crime do Caminho Novo”, ocorrido em Porto Alegre, em 1931, época em que os latrocínios (roubos seguidos de morte) eram muito raros. Por conta disso, houve uma verdadeira comoção na cidade quando ocorreu um assalto seguido de morte: em 22 de janeiro de 1931, ocorreu um assalto na esquina das ruas Garibaldi e Voluntários da Pátria. Um malote do trem pagador, com uma fortuna em dinheiro e cheques, foi roubado por dois homens. Na ação, um dos guardas, José Sant’Ana, foi morto com um tiro. Seguiu-se uma caçada humana, que chegou inclusive a expor as deficiências presentes no aparato policial da época, até que os dois acusados, João Papst Filho e Rudolfo Kindermann, foram presos em Curitiba, por um assalto semelhante ocorrido lá. Papst e Kindermann foram ligados ao assalto de Porto Alegre por conta do depoimento da amante de um deles. Os pais de João Papst, todos imigrantes austríacos, foram submetidos a júri sob acusação de serem cúmplices do crime. O advogado de defesa da família Papst foi o futuro jornalista e escritor Vianna Moog (e foi sua estreia na vida pública). Porto Alegre parou para assistir ao júri dos Papst, em 15 de outubro de 1931, que terminou com a absolvição de Juliana Papst e a curta condenação de João Papst Sênior, que posteriormente teve a sentença anulada. Mas João Papst Filho e Rudolf Kindermann, ainda no Paraná, acabaram pegando penas de 17 e 23 anos de cadeia, respectivamente, pelo assalto em Curitiba. Cinco anos depois, ainda presos, vieram para Porto Alegre para julgamento. Kindermann faleceu na Casa de Correção de Porto Alegre, antes do julgamento; Papst Filho enfrentou júri em março de 1938, tendo por promotor do caso foi Luiz Lopes Palmeiro, fundador da Associação do Ministério Público, e seu primeiro vice-presidente. O advogado de defesa de Papst Filho foi Victor Graeff, posteriormente deputado estadual; mas essa relação entre réu e advogado foi marcada por conflito, e o próprio Papst Filho, em princípio, recusou um novo advogado e fez sua própria defesa, mas, no fim, teve de aceitar a defesa de Graeff. Papst Filho conseguiu ser absolvido por uma pequena margem de votos.
Relações sociais, de poder (incluindo a capacidade de manipular a lei a seu favor), relações trabalhistas (incluso o que podemos classificar como coronelismo), deficiência dos aparatos policiais e judiciários, patriarcalismo e machismo entranhados nas relações familiares. Eis os pontos presentes nos julgamentos, que revelam aspectos da sociedade dos tempos do período Vargas. Quem conseguir driblar o jargão técnico dos tribunais, vai conseguir aproveitar muita coisa. Se os casos tivessem sido adaptados como se fosse um romance, ou em linguagem jornalística, mais a ver com o dia-a-dia do leitor, talvez atraísse mais público; mas, como se tratam de originais de textos judiciais, transcritos dos publicados em revistas judiciárias (os originais dos processos estão perdidos), a leitura acaba sendo um pequeno desafio a quem não tem vivência com o Poder Judiciário, em quaisquer instâncias – ou mesmo para quem, na difícil situação do Brasil de hoje, descrê no Sistema Judiciário. Bem, é o que posso dizer no momento.
Após o relançamento do livro, esteve em planejamento, pelo Memorial do MP, o lançamento de um segundo volume de CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE, com o resgate de outros casos históricos, como o Kliemann, o Olímpia Menna Zen, o Daudt, o Alex Thomas, etc. Mas, pelo que pude verificar em pesquisa preliminar, esse segundo volume não chegou a sair.
CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE é mais fácil de ser encontrado em bibliotecas, principalmente as universitárias. Também não deve ser difícil encontrá-lo em sebos.
Temos de incentivar mais a educação brasileira, para que a recomendação de livros como este não tenha sido “para bonito”.

PARA ENCERRAR...
...já que falamos no passado do Rio Grande do Sul, aqui vão mais páginas de minha HQ em folhetim, O Açougueiro. Uma compensação depois de nos aventurarmos no difícil terreno do judiciário.
Aguardem novidades: a vida continua depois da política.

Até mais!

Nenhum comentário: