domingo, 10 de setembro de 2017

MACÁRIO - Capítulo 17: "As Inacreditáveis Noites Seguintes IV"

Olá.
Já deu quinze dias, onde muita coisa aconteceu. Quinze dias desde a publicação do último capítulo de meu folhetim ilustrado, MACÁRIO. Então, hoje é dia de episódio inédito!
A história, no entanto, está recém começando. Cada vez mais, o narrador adia o clímax da narrativa, estendendo os fatos e o suspense. Mas a gente vai amarrando os nós narrativos aos poucos... é assim que as boas narrativas funcionam.
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de canibalismo, de fanservice e de maus tratos a animais.



Créssida e eu saímos do hospital, muito consternados, como se tivéssemos saído de um enterro. Nem mesmo Maura conseguiu achar alguma piadinha para a situação que presenciamos – a enfermeira estava igualmente consternada.
Loreta ainda ia ficar mais um dia no hospital, se recuperando da mordida que levara do vampiro. Ou seria do “maníaco mordedor”? Bem, de toda forma, ela teria alta amanhã, e parecia mais tranquila em saber que não ia virar vampira, mas Créssida teve algum trabalho para convencê-la disso. Teve de ser a Créssida, eu não saberia o que dizer neste caso, não sou tão íntimo da coitada – a ponto de saber seus segredos mais pessoais, o que lhe deixava mais calma, etc.
Mas o que deixou a nós dois realmente consternados foi o drama do menino Maicon, o “pivete”.
- Coitadinho do menino. – falou Maura, deixando uma lágrima correr sob seus óculos. – Ele agiu feito um marginal, roubou uma bolsa, mas... viu o que houve com ele? Que cortaram a orelha dele num acesso de “justiça com as próprias mãos”?!
- Sim... – respondi, murcho.
- É de dar pena... Ainda que fosse para fazer justiça, o malvadão não precisava fazer assim... É um malvadão, mesmo, bandido (soluço)... Ficar cortando a orelha do coitadinho (soluço)... e sabe-se lá o que ele vai fazer com a orelha, decerto fazer um colar (soluço)... É assim que se educa agora?!
Créssida derramou mais lágrimas. Eu estava tentando segurar as minhas – por orgulho masculino, “homem não chora”.
- Aquele menino nasceu para ter azar na vida... – falei. – Digo, não basta ser da periferia, e negro, sabe como é, Créssida... Ter de roubar para comer, se é mesmo pra comer que ele teve de roubar a bolsa... Ainda ter a orelha cortada por um “justiceiro”, e levar bronca da autoridade... Ainda bem que você interveio, Créssida. Fiquei admirado com a sua desenvoltura junto ao homem.
- Minha mãe também trabalha em Conselho Tutelar, Macário, na minha cidade, e eu mais ou menos sei como ela teria agido nesse caso. Se tivesse sido ela a vir ali cuidar do caso do moleque... Mas não, tinha de ir aquele grosso (soluço)... E ainda fazer escândalo no hospital, hein (soluço)...
- E o menino parecia preocupado com o parceiro dele, que ele disse que foi esfaqueado... Ele ainda ficou triste em não saber o que houve com o amigo.
- Nem tinha como, não é mesmo? O menino, o Maicon, foi levado por estranhos ao hospital, e dizem que ele deu entrada sozinho, digo, quem quer que seja levou-o para o hospital e foi embora logo depois. Será que os pais já foram avisados? (suspiro) Quanto ao outro, ele ficou sem saber o que houve... Decerto seu corpo ficou jogado ali, na rua, para que os ratos devorem... E quanto ao terceiro colega, que fugiu e o abandonou (soluço)? – secando as lágrimas, alterou o tom de voz, de triste para sério: – Tem uma porção de coisas esquisitas nessa história.
- Pois sim... e, se chuparam o sangue dele também, talvez o tenham feito pelos talhos na cabeça...
- Insisto. Tem coisas muito esquisitas nessa história. E não digo apenas na história do Maicon, o da Loreta também. O que ela falou... Bem, confirma a minha tese, é um maníaco mordedor, um psicopata. Ela disse que o cara apertou um pano com clorofórmio no nariz dela. E comigo foi uma pancada na cabeça. Se fosse um vampiro, teria sido um ataque direto, o cara não teria se dado ao trabalho de anestesiar a vítima antes... Pelo menos não com uso de força. Afinal, Macário, você já viu filmes, leu livros de vampiro? Decerto sim, né? Você já viu vampiro usar clorofórmio antes de morder as vítimas? Ou bater na cabeça da vítima antes de...? Não, pelo que eu sei, vampiros costumam hipnotizar a vítima antes de morder. Ou então simplesmente se jogar em cima dela e dominá-la, rapidamente, antes dela perceber, e... Tem muita coisa esquisita aí... Claro que tem.
E deixou cair mais uma lágrima.
- É... não pense que eu também não acho isso muito esquisito... – foi tudo que eu consegui responder de volta.
E ficamos calados, até entrarmos na sala de aula – e era a última aula da semana, era uma sexta-feira. Apenas quando Créssida sentou no seu lugar e não olhou mais para mim, é que deixei a lágrima cair.
O que mais me consternava não era tanto o azar do menino, que a esta altura já estava sendo reconduzido à Casa de Correção, a instituição destinada a recuperar os adolescentes infratores, e já estava levando um novo esporro daquele “assistente social”, fora das vistas das testemunhas. Não era tanto o jovem Maicon ter tido a orelha decepada por um “justiceiro”, e essa mesma orelha ter sido usada como prenda para a garota que havia sido lesada anteriormente...
Era mais o fato de que eu conhecer tanto a vítima do assalto em que Maicon se envolveu... quanto o “justiceiro”.
Eu devia saber... havia algum motivo para Breevort, da turma do Luce, cultivar aquelas unhas compridas feito garras. A sua agressividade não se resumia à tatuagem tribal em seu rosto, ou à sua cabeça raspada. E ele parecia tão simpático quando conversava comigo, no bar, de certa forma se contrapondo à aparência agressiva... E, de forma indireta, acabo descobrindo que ele atua como justiceiro violento nas ruas...
Então... foi ele quem recuperou a bolsa da Geórgia e a deixou na minha porta. Ele deve saber onde moro. Decerto, Âmbar havia pedido a ele, no ensejo, para deixar o celular que ela me deu de presente. E isso me deixou ainda mais apreensivo. Mal conseguia prestar atenção à aula.
Eu estava, ainda, me sentindo muito mal. Me sentia horrível de eu estar feliz, enquanto inocentes sofriam. Porque, enquanto um assaltante era torturado na rua, eu fazia sexo (consentido) com a vítima do assalto. E ainda fiquei com a orelha do assaltante. E, enquanto levava uma garota para a minha cama, outra fora atacada por um vampiro, e teve seu sangue sugado. E eu havia dormido com essa garota anteriormente...
O mundo é injusto e cheio de contradições... e eu estava contribuindo para que permanecesse assim.
Deixei mais uma lágrima cair.
Eu que sou o “monstro”, não os frequentadores do bar.

Depois da faculdade, o bar. Trabalhar.
Não tem outro jeito, vou ter de trabalhar naquele bar. Contribuir um pouco mais com a injustiça e a maldade do mundo. E turbiná-las com álcool.
Eu estava mal, mas tinha de seguir em frente.
Respirei fundo.
E pensei comigo: por que me sentia mal por causa dessas desgraças? Não fui eu que suguei o sangue da Loreta, nem fui eu que decepei a orelha do Maicon...
Ao menos isso poderia me deixar tranquilo.
E creio que não tinha muito que me preocupar. Afinal, hoje, ia ser a vernissage do tal artista italiano que os “monstros” estavam promovendo.
Cheguei ao bar, e ele ainda não estava cheio. Por dentro.
E nem aberto estava ainda.
Havia gente aguardando do lado de fora, já havia a aglomeração dos “monstros”, mas o bar ainda não estava aberto. Ué, mas sempre que eu chego, o bar já se encontra aberto...
Interpelei um dos “monstros” que estavam esperando ali na porta.
- Com licença.
- Opa! Macário! Você chegou agora? – fui recebido com entusiasmo.
- Pois é, cheguei agora, e encontro o bar fechado...
- Está interditado. Digo, só uns lá dentro, desde cedo, ajudando a montar a exposição do Galvoni. Decerto também já devem estar bebendo... e nós aqui, do lado de fora, nesse frio. – e a “monstra” que disse isso usava um vestido tubinho, sem mangas.
- Ainda estão ajeitando tudo?
- Parece que demoraram, ouvi dizer, para trazer os quadros, e o Galvoni também se atrasou...
- E desde que horas vocês estão esperando?
- Chegamos faz... hum... quinze minutos. Marcaram a abertura da exposição para as dez e meia e... ah... são dez e quinze! – respondeu um dos “monstros”, olhando um relógio de pulso. – Mas você também vai servir as bebidas, né, Macário?
- Hã... claro, claro. Eu já vou entrar. Com a licença de vocês.
E, sob os sorrisos esperançosos dos “monstros”, que faziam uma chamativa figura com suas aparências excêntricas em plena rua, na fila do “point”, aguardando a abertura da porta... enfim, sob os olhares dos “monstros”, me dirigi à entrada dos empregados.
Mal abri a porta, dei de cara com o radiante Luce, trajando um terno meio desalinhado, pois nem abotoado estava, e com o cabelo pintado em um tom cinza-escuro, quase prateado, penteado para trás e fixado com grossa camada de gel, que o fazia brilhar com os reflexos das lâmpadas. Por pouco eu não o reconhecia, sem o casaco com a gola alta – só o reconheci porque já tinha mais ou menos fixo aquele olhar que ele sempre me dirige quando olha em meus olhos. Ele estava parecendo um estudante de um internato para filhos de ricos, como aqueles que aparecem nos filmes estadunidenses e europeus, com uniforme e tudo.
- Ah, Macário! Estava demorando, amigão!
- Luce?! – exclamei, assustado.
- Qual o motivo da surpresa?
- Aqui é a entrada dos empregados, sabe? O acesso é vedado aos clientes!
- Ah, eu sei, mas eu supus que você entraria por aqui. Teu patrão deixou-me entrar aqui para ver se você já tinha chegado...
- E por que a porta da frente ainda está trancada, e com gente esperando do lado de fora?
- Estamos dando os retoques finais na exposição do Marto Galvoni. Estivemos desde as oito ajeitando as pinturas nos lugares onde os clientes possam ver. Tivemos um imprevisto, os quadros podiam ter chegado mais cedo, mas houve um atraso e... Mas e você, onde estava? Ah, é, você estava na faculdade, não é? Tinha aula... Ah, deixa pra lá. Dentro de uns dez, quinze minutos o bar terá a entrada liberada, e... Vamos, Macário, se apronte rápido. O Galvoni quer lhe cumprimentar. Ah, a propósito, estou bem apresentável? Minha roupa está boa? Meu cabelo não despenteou?
- Hã... está tudo certo, Luce. Sua aparência está ótima... Hã... Mas podia abotoar esse terno, não?
- Meu terno? Oh! – e abotoou o terno. – Ah, obrigado, Macário, eu às vezes fico com a cabeça nas nuvens e não reparo em muitas coisas... Com sua licença.
E se retirou, em um misto de nervosismo e euforia.
E, sem discutir, fui me vestir para o trabalho: avental, gravata borboleta. Os outros garçons já haviam se preparado e já estavam a postos no salão, então estava sozinho no vestiário.
Saí do vestiário. E, no balcão, a postos, estavam alguns membros da “patota” do Luce, todos me cumprimentando alegremente. Até a Âmbar estava ali, sorridente, nada deprimida. E o Mc Claus a seu lado, alegre, como se não desconfiasse de nada – talvez por isso ela não dirigiu-me palavra alguma mais. O gordo estava bem manso, ao contrário do sonho que tive em que ele me estrangulava. Mas não vi as outras garotas, Andrômeda e Morgiana. Deviam estar no banheiro.
E ali também estava o Breevort, sorridente, simpático, naquele porte altivo de lutador de MMA. Sem poder evitar, eu o cumprimentei secamente. Mas não podia comentar nada com ele. Afinal, ele havia, na noite anterior... ei: hoje ele não estava com as unhas compridas. Tinham sido cortadas. Já começava a se livrar das provas de seu crime, seu calhorda?! Pensei.
- Macário, que houve? – ele perguntou.
Só aí reparei que estava amarrando a cara.
- Hum... não, nada. Nada.
- Como assim, nada? Por que você amarrou a cara pra mim?!
- Eu? Oh... Não, é que eu ainda estou sentindo uma... hã... uma dor no joelho. Levei uma topada em um canteiro enquanto vinha para cá.
Que mentira convincente...
- Puxa... Espero que isso não o impeça de trabalhar.
- Não se preocupe... – sorri amarelo. – Já está passando.
E ficou por isso. E o Breevort nem pareceu levar a mal. Estava muito sorridente, simpático. E se afastou, foi ajudar o Flávio Dragão e o Jorge Miguel a ajeitar uns quadros.
Aí, alguém chega atrás de mim. Era Luce de novo, acompanhado de um homem alto e esquisitão. Luce estava muito sorridente, mas o homem estava com a cara muito amarrada. Estávamos em três atrás do balcão, portanto.
- Macário, aqui está o homem do momento: Marto Galvoni. Signore Galvoni, questo è Macário, nostro bartender. – ele me apresentou ao homem, num italiano macarrônico.
- Hã... prazer em conhece-lo, Sr. Galvoni.
- È bello incontrarvi. – respondeu o artista, sem alterar a cara amarrada numa expressão arrogante. – Macário, no? Sei il tipo di bevande... digo, é você o rapaz das bebidas de quem o Luce aqui tanto fala...
Me surpreendi quando Galvoni passou a falar do italiano para um português com pouco sotaque, como se estivesse sendo dublado, porém, sem perder aquele jeito de falar “dramático”, típico dos italianos. Bilíngue, hein? Pelo jeito, Galvoni costuma passar um tempo no Brasil, e outro na Itália. Mas o que me deixou apreensivo foi sua aparência. O sujeito era alto, parecia velho, pois até rugas apresentava no rosto; careca, e também possuía uma tatuagem em um lado no rosto, bem parecida com a do Breevort. Aliás, ele também tinha tatuagens na cabeça – um morcego e uma teia de aranha na nuca – e nos braços, praticamente cobertos de desenhos. Ele estava vestido com uma calça folgada, com vários bolsos, presa aos ombros com suspensórios, coturnos e camiseta sem mangas, para deixar as tatuagens dos braços bem evidentes; com essa vestimenta que lembrava a de um soldado, destoava, assim, das roupas que Luce usava (aliás, parecia que o Luce era o único cliente vestido mais formalmente, de terno, enquanto os outros usavam as roupas transgressoras de sempre). E as unhas da mão do artista eram compridas, como garras, e cobertas com esmalte escuro. Para um veterano, ele era muito transgressor.
- Hã... você... hum... sua figura é interessante, senhor, hã... Signore. – falei, com sincera timidez.
- Pensi davvero? Digo, você acha mesmo? – Galvoni pareceu surpreso. – Tua aparência também non é desprezível, Macário.
- Hum... obrigado. Er... dá pra ver que o senhor é artista. Artista underground, certo?
- Ah! Tu conheces arte, Macário? – ele abriu um sorriso meio forçado. – Tens arte na tua vivência?
- Hum... hã... sim, sim. Eu... Eu gosto de arte, sim. Visito museus... hum... quando tenho tempo sobrando. Tenho algum conhecimento sobre a arte “udigrudi”, como chamamos no Brasil... Conhece Hélio Oiticica? Não? Aliás, tenho amigos grafiteiros, eles dificilmente seriam aceitos numa galeria de arte, se é que me entende... Eles também se tatuam bastante, e não estão nem aí para a opinião alheia...
Estava mentindo, mas creio que o italiano acreditou. Ou não? Seu sorriso se fechou novamente.
- Creio que vocês dois vão se dar muito bem. – interveio Luce, sorrindo. – Claro que vão. O Sr. Galvoni já fez sua parte na organização e na montagem desta exposição; agora, o sucesso deste evento fora do comum vai depender do nosso querido e estimado Macário. O Galvoni nos encantará com seus quadros, o Macário com seus drinques. Temos bebida suficiente para esta noite?
- Bem... não sou eu quem cuido do estoque, e...
- Temos algum tempo ainda. La notte è um bambino, ou melhor, a noite é uma criança, como vocês dizem... – interrompe Galvoni, e estende a mão para o salão. – Não gostaria de ver minhas pinturas antes de começarmos, Macário?
- Hã... Claro. – aquele cara já estava começando a me dar medo. – Os quadros. Bem, eu não conheço teu trabalho, Sr. Galvoni, então, é uma boa ideia. Boa ideia. Quer dizer... tantos artistas aparecem por aí, a gente mal tem tempo de conhecer os trabalhos de todos eles... Nem temos tempo de saber se um é diferente do outro... E nem de lembrar os nomes deles...
- Beh, è naturale. – responde Galvoni, com alguma simpatia e compreensão. – Não costumo vir a este paese, venho aqui, no mínimo uma ou duas vezes por ano, mas o tempo que passo aqui é suficiente para dominar o idioma e diminuir a mistura de línguas... Beh, costumo passar mais tempo excursionando pelo Europa, ecco. Na Europa, sim, eles entendem de arte, de todo tipo de arte. Bem diferente deste paese sem apreciação por arte... – Demonstrou, aí um típico eurocentrismo arrogante. O que mais se podia esperar de um artista europeu?, pensei. – Até agora estivemos separados pelas circunstâncias... Eu na Europa, tu aqui. Só o Luce aqui para me contar o que acontece neste paese. Fique à vontade, bello, eu ainda tenho de organizar algumas coisas antes da abertura da porta. Quero verificar se está tudo certo. Não gosto que nada dê errado nas minhas exposições de arte, ecco.
E se afastou, ladeado pelo esfuziante Luce, que agia meio como um tiete do italiano.
Realmente, esse Galvoni é intimidador.
E, de repente, me ocorreu uma ideia... ele também se encaixa na descrição que o Maicon deu para o homem que arrancou sua orelha. Alto, careca, unhas compridas, uma tatuagem no rosto. Será que foi ele, não o Breevort, que... Hum, há quanto tempo será que ele está no Brasil? Será que nesse meio tempo ele se dedica a...?
Ah, depois eu penso nisso. Melhor aproveitar e ver o trabalho desse tal pintor que eu não conhecia até hoje, e ver com o que estou lidando.
Voltei minha atenção ao salão. O espaço estava ocupado pelas pinturas do tal artista italiano. Os pôsteres que ficam nas paredes haviam sido substituídos pelos quadros; e, não tendo espaço para todos os quadros na parede – e eram muitas pinturas – nem como acomodar cavaletes no espaço onde todos passavam, haviam quadros equilibrados, em telhado triangular, apoiados um no outro, nas mesas de sinuca – hoje os clientes não iam poder jogar. Pareceu uma solução interessante, até.
Saí do balcão para olhar os trabalhos. Os outros garçons também estavam olhando os quadros, e amarravam a cara. Ouvi um deles resmungar: “credo, coisa medonha... e esse cara vem expor aqui... e parece que só aqui mesmo ele pode expor essas coisas, não aceitaram num museu...”
Bem, no contexto, e olhando os quadros, esse comentário pareceu compreensível.
Eram desenhos, aparentando serem gravuras em tela de tecido, em linha-clara de preto-e-branco, com inserções de cores a pinceladas de tinta; os desenhos tinham um tom figurativo meio surrealista, meio mórbido. Sobre o preto e branco, entre as cores incidentais, predominava o vermelho sanguíneo em diversas situações. E havia a presença constante de monstros, pessoas parecendo ser torturadas, esquartejadas ou atropeladas por tênis gigantes, mulheres sensuais com roupas sumárias, todos em situações politicamente incorretas, altamente bizarras, cheias de partes de corpos cortados, sangue e ossos – tinha até animais mortos ou sendo maltratados. Mas, por algum motivo, as pinturas não pareciam assustadoras. Pelo contrário: parecia a violência caricatural das histórias em quadrinhos de humor negro, que não assusta – ou versões caricaturais das ilustrações da Heavy Metal. Nada muito realista ou impressionista. Parecia aquele estilo de violência que podia ser grafitado nos muros, à vista de muita gente, e que não impressionava muito, ou artes de capas de discos de rock. Esse pintor tinha mesmo muito estilo – e ideias muito bizarras. E tinha público cativo entre os “monstros”, é claro – as pessoas comuns pensariam duas vezes antes de dizer se aprovavam ou não daquela violência caricatural gratuita.
Um dos quadros pendurados na parede chamou a minha atenção: uma mulher vestida como uma vaqueira, de roupas muito curtas, gineteando um javali saltitante. E só as roupas dela foram coloridas. E a vaqueira exibia um decotão generoso. E essa mulher parecia familiar...
- Impressionante, não?
Olhei para o lado: eram as garotas. Âmbar, Andrômeda, Morgiana. E havia uma quarta garota com elas, vagamente familiar. As quatro formavam uma escada de alturas: Morgiana era a mais alta, Andrômeda em segundo, Âmbar em terceiro e a última garota era a mais baixa.
- O... oi, como vão? – sorri amarelo.
- Oi, Macário. – cumprimentou Morgiana, tão bonita com aquela aparência de adolescente, camiseta larga, com uma manga caída e mostrando o ombro, e a calça jeans justa, que ajudava a evidenciar seu corpo esguio, cabelos negros escorridos e brilhantes, sorrindo e mostrando aqueles dentes brancos e serrilhados como os de um tubarão. – E aí, gostou dos quadros?
- Estou impressionado. Esse Marto Galvoni é mesmo... hum... excepcional. São gravuras?
- Não. – responde Âmbar, tão atraente com aqueles trajes sensuais, blusa decotada, barriga de fora, minissaia com meia arrastão (como se ela não vestisse outra coisa), cabelo pintado de rosa claro e, que estranho, suas unhas voltaram a ficar grandes e pontudas, talvez sejam apliques. – É tudo desenhado direto em tela. E com acréscimo de cores a tinta. Legal, né? Cada um destes quadros é único, não há cópias.
- É... e eu vi que este quadro foi o que chamou mais a sua atenção... – falou Andrômeda, tão elegante naquele vestido branco decotado, de caimento perfeito sobre o corpo “cheinho” e curvilíneo, um cinto passando pela cintura, o cabelo mullet cor de rosa, a língua bifurcada mal disfarçada na boca. – Notou alguma coisa?
Pior que notei: a garota do quadro era ela! Andrômeda! Mas, no quadro, seu cabelo era prateado e bem mais comprido, e estava diferente porque estava em movimento. Mas aí olhei com atenção para a boca aberta da retratada: embora discretamente, sua língua também era bifurcada. E, puxa... a menos que o pintor tenha distorcido, caricatamente, as proporções corporais de... não, agora estou reparando mesmo. Nunca havia reparado direito que a Andrômeda tinha uns “peitões” bem arredondados e firmes – uma Elvira, Rainha das Trevas, de cabelo rosa. Talvez porque nos outros dias Andrômeda usava decotes mais fechados; hoje ela estava com um decote mais pronunciado. Não tanto quanto o da Âmbar, mas pronunciado, e deixando reparar que tinha “melões”... Engoli em seco.
- Você... você posou para o pintor? – procurei não deixar evidente que estava muito de olho nos seios de Andrômeda.
- Todas nós posamos. – responde Âmbar – Trabalhar com Marto Galvoni é uma honra, sabe? Olhe lá, ali está o quadro para o qual eu posei...
O quadro estava entre os equilibrados nas mesas de sinuca. Arregalei o olho. No tal quadro, Âmbar pousava como uma fadinha, de vestidinho curto, estilo Sininho, do Peter Pan de Walt Disney. Estava bem sensual. Mas essa fadinha, acompanhada de outras três fadinhas, igualmente sensuais, estava comendo partes de uma mão humana gigante, e mostrando os dentes afiados e garras nas mãos, e sangue escorrendo pela boquinha.
- Uau... Nossa. – foi o que consegui dizer.
- Eu que sugeri a pose.
E só de pensar que, no sonho, ela tentou me devorar...
- Este aqui é o meu, olhe. – apontou Morgiana.
Pendurado na parede, bem ao lado do quadro de Andrômeda, estava o quadro onde Morgiana era retratada como uma sereia. Estava bonita, com um rabo de peixe e um sutiã de conchas, mas ao mesmo tempo terrível: ela tinha uma barbatana de tubarão saindo de suas costas, visível sob o cabelo esvoaçante; e ela estava comendo algo que parecia uma nadadeira de baleia, de forma selvagem, puxando a carne com a boca, como quem devora uma pizza. Embaixo, havia partes de uma carcaça de uma criatura marinha morta, talvez fosse mesmo uma baleia.
- Que tal?
- Incrível...
Comparei os quadros: eram mesmo as três garotas. As situações em que estavam retratadas eram bastante incomuns e bizarras. E, observando melhor, eram politicamente incorretas e antiecológicas. Seria uma forma de crítica por parte do artista? E elas nem pareciam preocupadas com o meio ambiente! Uma pessoa comum não aprovaria que mulheres fossem retratadas maltratando bichos com gosto...
- Que acha, Macário? – perguntou Andrômeda, com o olhar cheio de expectativa.
- Bem... hum... impressionante. Muito... hum... bizarro, mas... hum... impressionante. Mas vocês estão muito bonitas nos retratos. Apesar da bizarrice das situações, vocês estão... muito bonitas.
- Aai, você acha mesmo? – Âmbar até corou.
- Claro... O Galvoni quis dar uma de... hum, como é mesmo o nome do... ah: Tanino Liberatore, hein?
- Hummm... você também leu Ranxerox? – perguntou Andrômeda.
- Meu pai tem um encadernado das histórias do Ranxerox em casa... Conheço a peça. Dane-se o politicamente correto... eh, eh...
Sabia que ter um pai fã de gibis antigos, que tinha por hobby escavar sebos atrás de edições antigas de quadrinhos de diversos países, ia ser útil algum dia...
- Você tem cultura, meu rapaz... – responde Andrômeda, sorridente. – Você tem cabeça. Você é diferente de tantos que vemos por aí...
- Oras... – foi minha vez de corar.
- É sério mesmo que estamos muito bonitas nos quadros? – pergunta Âmbar, como se estivesse duvidando de minha palavra.
- Sério, Âmbar. Todas vocês...
- Aai, obrigada... – Âmbar corou. – E como está de ontem para hoje?
- Bem, eu que pergunto. Como você está de ontem para hoje, depois de toda aquela bebida?
- Bem... eu acordei hoje numa ressaca infernal, mas estou melhor. Nada que um café sem açúcar não resolva.
- É, e foi necessário um barril de café amargo, hein, amigona? Ah, ah... – ironizou Andrômeda, mas Âmbar nem se importou.
- Sinto muito, Macário, acho que dei vexame ontem, não foi?
- Não, nada, Âmbar. Nenhum vexame. Você sequer vomitou no chão. Eu fiquei preocupado porque você corria o risco de entrar em coma alcoólico... Digo, você bebeu como se não houvesse amanhã...
- Mas se você tivesse ciência da vergonha... digo, você me viu assim, bêbada, e... Me senti com a cara no chão quando percebi que você me viu em um estado deplorável...
- Ah, nem esquenta, Macário. – interrompeu Morgiana. – Ela aguenta. Ela bebe há anos, e já está praticamente mitridatizada dos efeitos do álcool. Claro que não pode dirigir depois, mas...
- Peraí. Praticamente como? – pergunto, sendo o termo novo para mim.
- Mitridatizada. Sabe o que é isso, Macário? – intrometeu-se Andrômeda.
- Hã... não.
- Bem, quer dizer que...
- Aham!
Morgiana já ia explicar, mas alguém nos interrompeu. Era a quarta garota, que estava sendo deixada de lado.
- Ei, e eu?! Não posso falar com o Macário aí?
- Ops! Desculpe, amiga. Ah, Macário, esta aqui é a Filomena. – apresentou Andrômeda.
Eu reconheci a garota. Ela tinha cabelo claro, cor de palha, comprido e escorrido, e estatura baixa, mas o corpo era cheio de curvas, evidenciadas nas roupas justas, a calça jeans rasgada, a camisa com um nó abaixo do busto e a barriga de fora, que lhe davam um ar de vaqueira. Lembro de ter visto essa garota tomando uma piña colada às lambidas, como uma gatinha. Seus olhos, aliás, lembravam os de um gato. Ou devia ser apenas impressão.
- Oi, Macário. – ele falou com uma vozinha suave. – Desculpe não ter conseguido falar com você antes, mas...
- Não tem o que se desculpar... hã... Filomena.
- Na verdade, seria Philomene, na pronúncia francesa, mas, se quiser, pode me chamar simplesmente de Fifi... Muita gente só me chama assim. – até o sorriso dela lembrava o de um gato.
- Hã... é claro. Bem, não tem o que se desculpar, hum... Fifi. Eu sou um cara ocupado, e... bem... não te vejo no círculo de amigos das... hum... suas amigas.
- Deve ser porque... hum... você vê, não é? Sou muito baixinha. Sumo na multidão... Eu...
- Não, não te acho tão baixinha assim.
A baixa estatura deveria ser um complexo para ela. Mas eu acho que ela estava exagerando, Fifi era apenas uma cabeça, mais ou menos, mais baixa que as outras garotas – exceto Morgiana, em relação a esta já era duas cabeças mais baixa. Nem chegava a ser uma anã, mas ela devia se ver assim, perto de Morgiana, ou mesmo de Andrômeda, ou até mesmo de Âmbar.
- Você não me acha muito baixinha?!
- Que nada. Conheço muitas garotas com a sua estatura, mais baixas até, e nenhuma delas vê isso como algo de errado.
- Você é tããão gentil... nyah... – ela ficou com o rosto vermelhão, e deixou sair um miado. – Olha lá o meu quadro...
No quadro, apoiado ao lado do de Âmbar, Fifi posava nua, deitada de bruços sobre uma pele de onça, numa pose sensual. E, pelos ossos que ladeavam sua figura, a pele de onça havia sido recém-extraída. Pelo olhar selvagem da retratada, pelos dentes caninos saindo de sua boca e pelas orelhas felinas que saíam de seu cabelo, sugeria-se que a própria Fifi teria esfolado a pobre onça.
Esse Marto Galvoni era mesmo antiecológico e politicamente incorreto.
- Ah, Macário, não se preocupe não, sei o que você deve estar pensando agora, mas nenhuma onça foi morta de verdade para fazer este retrato. – explicou Fifi. – O tapete de onça era velho mesmo, foi extraído tempos antes, mas o Galvoni insistiu em espalhar uns ossos no chão para dar uma ideia de... hum... como posso explicar...
- Ah, ainda bem... – falei, respirando aliviado em saber que não foi tão politicamente incorreto assim. – Você... hum... é bem retratável, Fifi. Quem vê esse quadro não diria que você é baixinha...
- Aai, obrigada, Macário... nyah... Você é mesmo tãããão gentil... As garotas falam tããão bem de você, Macário... E estavam certas...
- Hã... talvez nem seja tanto assim... Sou só um bartender.
- Ah, Macário, para que se rebaixar assim? – faliu Âmbar. – “Só” um bartender?
- Você é o melhor que a gente conheceu até hoje, meu amor. – falou Andrômeda.
- E você ainda é o mais encantador que já encontramos. – foi a vez de Morgiana se insinuar, e aspirando meu corpo. – Que perfume você usa?
- Hã... só o mais ordinário dos desodorantes que vendem no supermercado. – respondo, sem jeito.
- Não... acho que não é o desodorante... – falou Fifi. – Tem algo em você que deixa as mulheres piradas só em olhar pra você...
Puxa vida... as quatro garotas estavam me cercando! Elas fulminavam-me com um olhar apaixonado e, ao mesmo tempo, cortante, como se estivessem prestes a me devorar ali mesmo, em meio aos quadros. E aí, Galvoni acabaria me retratando com o corpo todo devorado... O que elas viam em mim? Comecei a me sentir desconfortável. Aí, ouço uma quinta voz feminina atrás de mim:
- Ei! Macário!
Me virei: era Geórgia.
Ela estava bonita. Embora seu cabelo permanecesse uma juba indomável, ela escolheu uma boa roupa. Digo: hoje ela estava de cinza, e parecia uma ninja estilizada, de blusa não decotada (na verdade, fechada com zíper até em cima, no pescoço), sem mangas, minissaia com meia arrastão, uma faixa de tecido transparente, igualmente cinza, no abdome, unindo a blusa e a saia, sapatos de cano baixo, braceletes de couro. E trazia, a tiracolo, uma pasta de papel.
- Geórgia.
- Resolvi vir na exposição! E olhe – ela mostrou a pasta de papel – trouxe umas amostras de poemas! Quem sabe me permitam recitar algum aqui...
- Legal...
- Mas e você? Pensei que você trabalhasse aqui, mas vejo você aí, na maior intimidade com as garotas aí...
- Eu... Oh! Já abriram as portas do bar e eu aqui!
Agora que eu reparei que as pessoas começaram a entrar no bar, e já estavam se concentrando para admirar os quadros. Corri para o balcão, acho que vão querer bebida agora. Nem olhei para as garotas, se elas estavam esboçando alguma reação à chegada de Geórgia. Momentaneamente, consegui evitar uma saia justa. Decerto já iam começar a fazer perguntas, muitas perguntas.
Mas as cinco garotas não perderam tempo, se acotovelaram no balcão. “Atropelaram” os homens que se acotovelavam ali (“Dê licença, sim, gato? Damas primeiro...”) e se concentraram. Até Geórgia chegou junto ao balcão, decerto se perguntando o que estava acontecendo, mas não tinha como obter resposta.
- O... o que vão querer? – procurei não perder tempo.
- Eu já disse, Macário, vodca com suco de laranja! – manifestou-se Geórgia, antes das demais.
Mas as outras ficaram caladas. E me olhavam... como vou dizer? Não sei explicar exatamente como Âmbar, Andrômeda, Morgiana e Fifi me olhavam. Em princípio, parecia um olhar enviesado. Mas aí... minha cabeça começou a se encher de pedidos.
Era óbvio. Margarita para Andrômeda, licor vermelho para Morgiana, uísque para Âmbar, e piña colada para Fifi – e capriche no leite condensado, moço. E, bem, não eram só elas. Logo, os outros clientes começaram a enviar seus pedidos telepaticamente. E, praticamente sem olhar para mais ninguém, me tornei o robô preparador de drinques. Trabalhei maquinalmente, como trabalhei desde que os “monstros” entraram em minha vida.
E ninguém mais me dirigiu palavra pelas duas horas seguintes. As conversas se concentraram mesmo para o lado do homenageado da noite, Marto Galvoni. Ele, que estava se servindo moderadamente de drinques, circulava pelo salão, conferindo os quadros, cumprimentando pessoas. Nas vezes que consegui voltar meus olhos para o salão – também teve pedidos de chope, eu enchendo as canecas naquela máquina no balcão, o que me dava oportunidade para olhar para o salão – havia gente cercando o artista, conversando com ele, elogiando sua arte. Bem, a maioria dos seres humanos não ficaria tão entusiasmada em elogiar a temática politicamente incorreta do Sr. Galvoni, mas para “aqueles” seres humanos, tão transgressores em suas aparências que nem humanos pareciam, tal temática, cheia de sangue e animais mortos, caía como uma luva.
E Luce... ele só desviava os olhos do italiano para olhar nos meus. E eu voltava para as bebidas.
Por um instante olhei de novo o salão: Geórgia não estava no balcão. Depois que tomou sua dose de vodca, foi se misturar aos outros, decerto descontente de não poder falar comigo, e, evidentemente, estava deslocada do resto do mundo – pelo menos, daquele mundo criado dentro do bar. As conversas dos “monstros” faziam tanto barulho quando ondas quebrando na praia. E Geórgia não conseguia falar com ninguém, não conseguia mostrar a ninguém os seus poemas. Aliás, nem sabia com quem falar.
Consigo desviar os olhos das bebidas e olho de novo o salão, e fico apreensivo: Breevort começou a flertar com Geórgia, que resolvera voltar ao balcão em uma oportunidade! Vejo os dois ali, conversando. E, aparentemente, Geórgia ficou interessada no tipo. Engoli em seco. No bilhete que acompanhava a orelha decepada, Geórgia foi alertada que “encontraria seu salvador”. E era o que estava acontecendo. Isso, se estiver confirmado que Breevort era o “salvador” da moça. E eu não podia falar nada...
Mas eu não podia ficar de olho em Geórgia. Estava preocupado, mas eu tinha meu trabalho para fazer. Não podia decepcionar sequer o italiano. Não deve ter sido simplesmente por sugestão de Luce que ele escolheu este bar, e o horário mais estranho para uma vernissage – logo após as dez da noite e adentrando a madrugada de sexta para sábado?! São todas criaturas da noite, como eu. E eu... só tinha de entrar no clima. Já que eu era o bartender “oficial” da turma. Não sei bem por quê...
E houve uma hora em que o Galvoni resolveu fazer uma performance artística: pediu para instalarem um cavalete no meio do salão e colocou ali uma tela. E ali, sob os olhos do público, pintou um quadro, ao vivo. Não consegui ver o que ele desenhou: Galvoni posicionou o cavalete e o quadro de costas para mim, e, além disso, tinha aquela multidão cercando, de modo que eu só conseguia, do balcão, ver a cabeça dele. O mais interessado na performance era Luce, que não saiu do lado de Galvoni nem um minuto. E, ao fim, quando o italiano terminou de pintar, houve uma salva entusiasmada de palmas. Mas ainda não consegui ver o que ele havia pintado... ele escondeu o quadro até o fim da festa. E ninguém ali se deu ao trabalho de explicar ao bartender o que fez o italiano... Ao bartender, só restava continuar preparando drinques para aquele povo sedento de álcool, tinta e sangue...

Bem, o importante é que a exposição, aparentemente, fez sucesso. Ao final do expediente, ali pelas três da manhã, Galvoni conseguiu vender todos os quadros que colocou na exposição, ali mesmo no bar. Ele fez um bom dinheiro. Eu vi: os “monstros” começaram a negociar quadros ali mesmo. Se encantaram e negociaram ali mesmo, na balbúrdia. E, quando quase todos os monstros já tinham ido embora, os quadros já haviam sumido, todos. Não havia mais nas paredes, nem nas mesas de sinuca. E eu vi “monstros” levando quadros embaixo do braço. Não vi se pagaram à vista, com dinheiro, ou se iam pagar depois, ou se pagaram com cartão de crédito, cheque, etc... Até as garotas levaram seus respectivos quadros, Morgiana, Âmbar, Andrômeda, Fifi. Mas até isso eu já podia juntar ao meu “currículo”: eu “animei” uma feira de “arte”.
Luce e Galvoni estavam entre os poucos “monstros” que ainda não foram embora – além deles, só estavam o Beto Marley, o Jorge Miguel e, claro, o beberrão do Flávio Urso. Até Breevort já tinha ido embora, e Geórgia foi com ele!
E os dois foram me cumprimentar. Galvoni veio trazendo, escondido nas costas, um quadro que escapou da “devassa”, não vi de onde tirou...
- Parabéns, Macário, meu velho! – cumprimentou Luce, esfuziante. – A exposição foi um sucesso!!! Viu só?! Vendemos praticamente tudo!!! E parte desse sucesso foi graças a você, nosso garçom oficial!
- Que é isso, Luce... – respondo, encabulado com todo aquele entusiasmo, como se eu tivesse desarmado uma bomba ou ganho um prêmio Nobel ao invés de servir drinques. – Só fiz meu trabalho. E o Galvoni fez sua parte, afinal, os quadros eram dele...
- Cada qual com sua arte. – responde Galvoni, sem se alterar. – E seus drinques não são desprezíveis. Na verdade, são os melhores que eu já tomei neste paese.
- Obrigado.
E olha que ele bebeu pouco. Só duas doses de dry Martini e uma de cosmopolitan. Em verdade, ele foi o que menos bebeu em toda a “festa”. Eu contabilizei segundo o que pude ver. Enquanto outros clientes beberam mais: Âmbar bebeu muito, Andrômeda bebeu muito, Morgiana bebeu muito, Fifi bebeu muito, Beto Marley bebeu muito... todos beberam muito. Só Luce e Galvoni beberam pouco (Luce tomou um drinque a mais, apenas, mas podia dizer que estava no “clube” dos mais lúcidos dali).
- Macário, pela sua disposição em seu trabalho, eu quero lhe ofertar um presente.
- Não, Sr. Galvoni, não precisa se incomodar... – falei, sem jeito.
- Não, Macário, você merece. Você é justamente como o Luce falou. Então, gostaria que aceitasse isto.
E me mostrou o quadro – era o quadro que ele pintou ao vivo, diante do público.
Então, aquela pintura era para mim? Bem, é o segundo presente que recebo em menos de 24 horas...
E, surpreso, vi que era um retrato meu, de meio corpo!
Porém, eu estava com uma expressão assustadora, um olhar psicopata, numa pose de James Bond. Na minha mão direita, erguida à altura do rosto na face oposta, uma taça. E, dentro dessa taça, mergulhado num líquido vermelho, havia um olho! Engoli em seco. E, meio sem jeito, respondo:
- Hã... eu... não sei o que dizer, Sr. Galvoni. O... obrigado. Hum... grazie.
- Não tem de quê, Macário. – respondeu, sorrindo.
- Se você não quiser o quadro, eu quero. – falou Luce.
- Não, Luce, o quadro é para o Macário. Pintei especialmente para ele. Aceite, bello.
- Hã... está bem, aceito.
Pego o quadro, e já ia saindo com ele sob o braço, quando Luce me chamou:
- Oh, Macário. Só para avisar: nós voltaremos aqui apenas na quarta-feira. Iremos todos fazer uma viagem neste final de semana, e só vamos voltar na terça, quarta-feira, se resolvermos não estender um pouco... Portanto não estranhe se não nos vir amanhã, tá?
- Hããã... e... está bem, Luce. Boa viagem, seja lá onde vocês irão. E... vão todos vocês? Todo o grupo que esteve aqui?
- Hã... é claro, Macário. É uma excursão.
- Ah, bem. Boa viagem.
- É, e vai ser bom para você, não é? Descansar um pouco de nós, garanto que você já deve estar cheio de nos ver...
- Que é isso, Luce.
Respiro fundo, e me dirijo ao vestiário, para largar o quadro. Ainda tinha de auxiliar na limpeza do bar.
Todos agora foram embora. Digo, apenas um ficou até o fim: Beto Marley, que foi quem me fez tomar uma cerveja por sua conta. Hoje, seus dreadlocks não estavam se mexendo. E essa cerveja estava com um gosto estranho...

Bem, aqui estou eu, de volta ao meu apartamento, trazendo minha mochila e um quadro.
Desta vez, fui dispensado pelo final de semana. Ia ter o sábado e o domingo para colocar minha morada em ordem, fazer uma faxina... ou talvez só dormir, depois de trabalhar e estudar feito um condenado a semana toda. E de fazer sexo como se não houvesse mais futuro. É: neste final de semana não vai ter garotas. Já tive o suficiente esta semana.
Olhei de novo para o meu retrato. Bem, é certo que a intenção do Sr. Galvoni era a melhor ao pintar meu retrato, mas a expressão com que fiquei neste retrato, eu não sei não... eu era assim mesmo?
Viridiana já havia me falado que eu tinha um olhar de predador, de lobo – e era assim que eu estava retratado. Mas o que Galvoni queria dizer com aquele olho mergulhado no líquido da taça? Respiro fundo. Estou verdadeiramente me sentindo um monstro.
Guardo o retrato em um canto da casa onde não fique na vista de quem chegar. O que pensaria alguém que chegasse no meu apartamento, e me visse retratado daquela maneira em um quadro feito ao vivo?! Depois eu decido o que fazer com aquilo... Só aceitei ficar com a pintura porque Galvoni insistiu. Afinal, eu fui responsável pelo sucesso da inusitada exposição...
Minha preocupação maior, naquele momento, era com Geórgia. O que ela estaria fazendo agora, na companhia de Breevort? Como ela reagiria se descobrisse que o cara com quem ela flertou naquela noite foi quem arrancou a orelha do menino que havia roubado sua bolsa?! Estava mais que certo, o “justiceiro” era ele.
Olho para a orelha ali naquela caixinha de joalheiro, chateado.
Depois, para o retrato, que captara o meu “melhor lado”.
E depois, para o celular novo, que ganhei de presente, que ficara carregando, em casa.
Tiro o carregador da tomada. E fico olhando, abestalhado, para o aparelho. O celular já estava com o chip do antigo, que fora destruído, mas será que eu testo o celular agora, ligando para Âmbar, talvez perguntando a ela para onde os “monstros” iriam excursionar? Hum...
Não. Melhor não agora. Estou cansado. Vou deitar e dormir, agora. Amanhã, quando eu levantar, eu testo, ligando para os meus pais, isso sim. Âmbar que espere mais um pouco.
Deixei o celular de lado e fui para o banheiro, escovar o dentes, urinar, e aí me jogar na cama.
Mas, quando entrei em meu quarto, só de cuecas – deixei minhas roupas no tanque para lavar durante o dia – percebo que a noite ainda não havia terminado...
Não me diga que isso está acontecendo de novo!

Mas desta vez, era Andrômeda que estava me esperando ali.

Próximo capítulo, daqui a 15 dias.
Reparem que hoje teve menos texto e ilustrações. Nestes 15 dias, aconteceu muita coisa, e meio que tive de concluir este capítulo às pressas. É muito estresse. Mas as coisas vão voltando ao devido lugar aos poucos. E estamos fazendo o possível para que o próximo episódio entre no ar, sem falta, daqui a duas semanas.
E vocês, o que estão achando? Deixem uma opinião! MACÁRIO continua ou para?!
E aguardem novidades para este novo ano de blog - estamos correndo para cumprir 10 anos de Estúdio Rafelipe, sempre pensando no bem-estar do leitor. Ou pelo menos no que nós, aqui, entendemos como "bem-estar" do leitor, nestes tempos de Lava Jato, dinheiro em malas, furacões, bombas H e Pato Donald Tramposo.
Até mais!

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