domingo, 5 de novembro de 2017

MACÁRIO - Capítulo 21: "As Inacreditáveis Noites Seguintes VIII"

Olá.
Quinze dias depois, entra no ar um novo episódio de meu folhetim ilustrado adulto, MACÁRIO.
O episódio anterior foi o mais violento até agora: esta semana, apresentamos o mais bizarro. E, desta vez, não teremos sexo.
AVISO: Leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de vômito, constrangimento, terror, vampirismo e maus tratos a animais.



Meu corpo dava uns sinais esquisitos, mas procurei ignorar enquanto andava, tranquilo, pelo campus da faculdade. As agulhadas no pescoço e a sensação de peso no estômago não deviam ser nada... grave.
Jantar no restaurante universitário. Até aqui, a rotina seguia como se nada grave houvesse acontecido. Eu não matei uma garota... Não posso ser condenado por um crime cometido nos sonhos. Não neste plano de realidade. É este o plano de realidade onde vivo, respiro e estou agora andando, não aquele onde empurrei uma garota pela janela... Uma garota que se transformou em pantera e tentou me matar. E que, portanto, se matei, o fiz em legítima defesa. Ih, ih, ih!
A revolta no estômago de antes passou depois de um minuto. Não era nada... Talvez precise começar a tomar um daqueles iogurtes reguladores de digestão. Ou começar uma dieta, sei lá. Acho que devo começar a comer mais comida saudável, mais frutas, legumes... isso de viver vida de solteiro, comendo muita comida pronta, daquelas que é só aquecer, não fazia bem para a saúde... E isso que, antes de sair de casa, ingeri só pão com manteiga e café com leite!
Até que fiz uma boa refeição. Agora, a caminho da aula...
Nesse momento, o meu celular novo, em meu bolso, começa a tocar. Olho para o visor, mas não aparecia o número, apenas: “(privado)”, assim, entre parênteses. Ainda assim, atendo – pode ser gente conhecida, e ainda não passei os números de meus conhecidos para a agenda interna do aparelho...
Digo “alô?”, mas ninguém falou. O único som que fez foi uma espécie de apito, um som agudo, que poderia ser provocado por alguma interferência magnética. Desse jeito, eu não conseguiria ouvir quem estaria querendo falar comigo. Desliguei depois de alguns segundos naquele som agudo. Ponho o celular no bolso e sigo meu caminho.
Mas aí, na porta do edifício do curso de Medicina, comecei a sentir uma sensação esquisita... Uma vertigem... Um enjoo... Um peso no estômago... Um trancar na garganta... Urgh... Urgh...
Entrei correndo no prédio do curso. Como um raio, corri para o banheiro masculino mais próximo. Procurei um vaso sanitário desocupado – oh, que bom, não havia mais ninguém ali, no banheiro – me apoiei sobre ele... e vomitei.
Vomitei tudo o que havia comido há poucos minutos!
Que sensação mais desagradável. Fazia tanto tempo desde que tive uma indisposição estomacal pela última vez...
Saí do banheiro muito grogue, me sentindo um tubo de pasta de dente espremido.
Oh, céus... só faltava isso... após a tristeza e a incerteza de estar vivendo uma realidade ou um sonho, uma intoxicação alimentar por causa da refeição do RU. Não é meu dia.
Mas como isso, de repente?
- Macário?
Ouço uma voz feminina a meu lado, assim que saio do banheiro. Uma voz que eu podia facilmente reconhecer.
- C... Créssida?!
Era mesmo ela, me olhando com preocupação, por trás dos óculos.
- Macário, o que você tem?
- Que tenho o quê?! – tentei ser antipático, mas não consegui.
- Está pálido! E está com uma péssima aparência!
- Eu?!
- Você, sim...
- C... Créssida... eu... acho que foi a comida do RU... me fez mal...
- Uau... Mas não pode ser, Macário! Eu também jantei no RU e não estou sentindo nada errado... a comida estava até deliciosa...
- Mas pra mim fez mal...
- Macário, você está bem?
- Eu... eu estou... eu só estou fraco. Só... só preciso... de água.
Ali perto havia um bebedouro. E comecei a beber, beber e beber. Bebi freneticamente, enchendo meu estômago. Só queria que o jato de água do bebedouro fizesse a água jorrar com mais abundância. Quanto tempo será que passei bebendo, até ouvir Créssida perguntar novamente:
- Macário, insisto! Você está bem?!
- Eu... – comecei a falar, depois que me dei por satisfeito. – Eu já me sinto melhor...
- Puxa, Macário! Talvez seja melhor você não assistir à aulas hoje... Talvez seja melhor você procurar um médico no hospital... Olhaí, você está até verde!
- Eu estou?! N-não, Créssida, eu estou bem agora, é sério! Eu posso assistir à aula de hoje... Eu... eu...
Aquela revolta no estômago voltou! E acabei regurgitando toda a água que bebi... em cima do corpo de Créssida! Com a água também vieram uns restos de comida que não haviam saído do meu estômago.
- Aargh, Macário!!! – gritou Créssida, acudindo a roupa molhada. – Isso não teve graça!!!
- Créssida... – tentei falar, com um fio de mistura de água e saliva escorrendo de minha boca. – Me... me desculpa... eu não queria... eu...
De repente, senti uma agulhada dolorosa, e uma sensação de queimadura em meu pescoço. Bem na parte das marcas de mordida!
- AAARRRGH!!! – acabei gritando e caindo no chão, tal a intensidade da dor.
- Ma-Ma-Macário!! P-pare já com isso, Macário!! Você está me assustando!!! O que você tem?! – gritava Créssida.
- Eu... Eu não sei! Meu pescoço!! Está doendo!!! Me ajuda, Créssida!!!
Voltei meu olhar em sua direção. E Créssida deu um grito, soltando a pasta do curso no chão.
- Macário! MACÁRIO!!! NÃO! NÃO!!!
Ela apenas olhou para mim e fez uma expressão de horror! Até caiu sentada no chão.
- Créssida!! Me ajuda!!! – tentei pedir, mas ela estava tentando se afastar.
- Se afaste, Macário! Não chegue perto de mim!!!
- Créssida! O que foi?! O que está havendo?!
Eu sentia uma furiosa contração nos meus músculos faciais, e uma vontade de avançar logo para cima de Créssida, querendo logo uma explicação para sua expressão de horror... Apenas estendi a mão, gritando, com raiva:
- Créssida, diga o que está havendo!! Agora!!!
E ela, quase chorando:
- NÃÃÃOOO!!! SE AFASTE!!!
- Créssida!!!
- AAAAAHHHHHHH!!!
- Ei, o que está havendo aqui?! – gritou uma terceira voz.
Levantei o olhar: entre a assustada Créssida e eu, ambos sentados no chão, estava um dos professores do curso, que devia estar na sua sala e foi atraído pelos gritos.
- Mas que escândalo todo é esse?! – perguntou o professor.
Créssida voltou a olhar para mim, e sua expressão de terror se desfez. A sensação de dor no meu pescoço sumiu.
- Aaiii... – gemi, sentindo o alívio.
- Macário? – Créssida também pareceu ter se acalmado.
- Alguém pode explicar o que está havendo?! – insistiu o professor.
- Ungh... Professor... Eu... Eu acho que não estou legal... – comecei a falar, já me sentindo mais aliviado, estranhamente. – Uma indisposição estomacal, uma dor no pescoço...
- Sim, evidentemente você não está bem, senhor Macário. – falou o professor, que fazia aquele tipo sisudo, que gostava de chamar os alunos de “senhor”, “senhora”, “senhorita”. – Você evidentemente não aparenta estar bem... Mas por que o senhor assustou a moça desse jeito?
- Eu assustei?! Eu... Hã, Créssida?! O que aconteceu?!
Ela também levantou do chão, trêmula. Tirou os óculos, sacou um lenço de um bolso e começou a enxugar a testa.
- Oh... professor, eu... oh, desculpe, professor, o Macário começou a agir de forma estranha e eu acabei me assustando... Sabe como esse rapaz é imprevisível, não?
- Mas que exagero, senhorita Créssida. – disse o professor. – Tudo bem que o senhor Macário aqui não está em sua melhor aparência, mas não a ponto de ele ter se transformado em um monstro ou coisa assim...
- Eu... eu também não entendi o que houve com ela... – falei.
Ela olhou para o professor com uma expressão de “será mesmo?”. Claro que reparei, já conheço esse tipo de expressão. Mas o que será que ela quis dizer?
- E o que aconteceu com sua roupa, senhorita Créssida? Se molhou no bebedouro?! – continuou o professor, de olho na camiseta molhada dela, o sutiã escuro transparecendo sob o tecido úmido, o que já estava criando uma situação de constrangimento.
- N-não, professor... – interferi, rápido, com a justificativa. – F... fui eu que... que vomitei água... em cima dela... mas... mas foi sem querer, viu? Juro. Eu não quis... Eu vomitei há pouco o que comi, depois bebi água, e... bem...
Ao redor, ainda havia provas incontestáveis: poças de água regurgitada no corredor.
- O negócio parece muito sério mesmo. – respondeu o professor. – Senhor Macário, faça o seguinte: o hospital é aqui próximo, procure o médico. Veja com ele se você está em condições de assistir à aula, peça uns exames se necessário, para avaliar sua condição. Eu poderia examinar você, mas vou começar minha aula daqui a alguns minutos.
O professor também atuava como médico no Hospital Universitário.
- Hum... es... está bem, professor. O... Obrigado. V... Vou fazer isso. Acho que vou ter de fazer isso... Com a licença de vocês. Obrigado.
E me virei e saí em direção à porta do edifício. Felizmente não havia mais ninguém por perto para ter visto o que aconteceu – e isso era estranho, na verdade, pois naquele horário começava a chegar gente, em peso.
Estava com as pernas um pouco bambas, mas conseguia andar. Já sentia a plena coordenação de meu corpo retornando, mas também um vazio no estômago, e a garganta secando. Créssida me alcançou.
- Macário! Espere! Me deixe te acompanhar...
- Créssida. O... Olha, desculpa por eu ter... Eu não quis vomitar água sobre...
- Não, Macário, está tudo bem... Digo, felizmente, foi só água que você vomitou sobre mim... Pior se tivesse sido comida, mesmo... Digo, uns pedacinhos de comida vieram no jorro, mas... Nenhuma sujeira, hein?
- Argh... Agora... Pode explicar agora por que você se assustou?
- Você, primeiro, explique direito o que aconteceu, por que você está agindo desse jeito...
- Já disse, Créssida. A comida do RU não me caiu bem, meu corpo não aceitou a água que tomei, e... ainda por cima, senti uma dor no pescoço... bem aqui.
E apontei o ponto. Bem onde estavam as marcas da mordida.
- Macário? Como assim, as marcas no pescoço começaram a doer?
- Eu... eu não sei, Créssida, só senti como se alguém tivesse encostado um ferro em brasa no meu pescoço. – falei com uma leve rispidez. – Tem alguma coisa aqui na minha marca? Elas abriram? Vê pra mim...
Créssida examinou o local.
- Não... nada errado. Só as cicatrizes. Acho que a tua sensação de dor foi puramente psicológica, Macário...
- Será? Eu não sei explicar o que houve... Eu acho que não sei explicar mais nada do que está havendo na minha vida...
- A mim isso ainda não aconteceu. Minhas marcas não doeram, mas... mas eu acho que também estou sendo acometida por um surto de loucura...
- Surto de loucura? Como assim?!
- Macário! Você... Eu devia estar delirando naquele instante... tinha certeza que, na hora em que você teve a dor no pescoço... você também estava se transformando em monstro!
- Eu?! – arqueei a sobrancelha.
- Sim, Macário! Eu tinha certeza que você tinha... que você tinha se transformado... digo... o seu rosto estava virando o de um... de... um morcego, Macário!
- Rosto de morcego?! – arqueei a outra sobrancelha.
- Com dentes e tudo, Macário! Estava feito um Nosferatu!
- Nosferatu, eu?! Mas...!
Passei a língua pelos meus dentes, e não sentia meus caninos crescidos e nem pontiagudos.
- Ahn... Macário. Acho que deve ser delírio, mesmo. Acho que nós dois estamos tendo delírios sabe. Ou quem sabe... você é que faz uma expressão horrorosa quando sente dores fortes, hein? – ela deu uma risadinha amarela.
- Eu... estava tão horroroso assim, Créssida?
- Estava... de tanta gente que já vi contorcendo o rosto de dor, você é que faz o rosto mais feio que já vi... ah, ah... eu... Ah, Macário, desculpe... ultimamente também não ando muito certa da cabeça, Macário. Ando tendo uns sonhos meio loucos... o maníaco mordedor ainda está mexendo comigo, sinto como se ele fosse voltar... tenho feito umas investigações por conta própria... tem aparecido mais gente por aí internada no hospital com marcas de mordida... e não estou conseguindo tirar o menino aquele da cabeça, sabe, o menino que arrancaram a orelha... e...
- Você...
- Mas não é coisa que realmente me preocupe, Macariozinho, querido... – ela tentava rir, mas não estava conseguindo. – Eu vou superar essa, Macário, claro que vou. Você que agora que precisa superar o seu mal... Olha, eu deixo passar por agora, de você ter vomitado água em cima de mim, de você estar fazendo meus seios aparecerem assim, por baixo da camiseta, mas... – de fato, os seios de Créssida estavam muito evidentes sob o tecido molhado, mas ainda bem que ela estava usando um sutiã grosso, com bojo, que ajudava a esconder os bicos dos seios que, nesse momento, deveriam estar intumescidos devido às emoções fortes. – Bem, vou ter de voltar pro meu alojamento e trocar de roupa, vou ter de me atrasar para a aula para... (suspiro) fazer o quê. Escuta, Macário, faça como o professor falou, procure um médico. Vá para o hospital, converse com o doutor. E não tente fugir.
- É, Créssida, talvez você esteja certa... eu... vou fazer como você está recomendando. Obrigado. Espero que, além de um médico para tratar de meu problema digestivo, também não precise de um psiquiatra... – suspirei, e depois foi minha vez de dar um meio sorriso: – Ah, mas se eu faço uma cara horrível quando estou com dor, você faz muito escândalo quando está assustada. O que você grita, hein?!
- Eu?! Macário!...
E, rindo, nos afastamos. Ela foi para outra direção.
A descontração ajudou a me distrair do que eu sentia, mas, quando me vi sozinho, a fraqueza e o reviramento no estômago voltaram. Andava muito cambaleante. Estava fraco, continuava fraco. Será que vou conseguir chegar ao hospital?! Preciso ver o médico... preciso contar o que está havendo... preciso...
O celular toca novamente. Atendo: é o mesmo número “(privado)” de novo, mas, do outro lado da linha, apenas aquele estranho som agudo. Desligo.
Quem quer que seja, será que você não se toca?! Por que não fala logo quem é e o que quer?!
Consegui chegar próximo à entrada do hospital. Continuava fraco, mas para dar entrada acho que ainda tenho forças...
Próxima à porta do hospital universitário, havia uma vending machine, uma máquina automática de guloseimas, ao lado de uma de refrigerantes. Tem muita gente que costuma pegar lanche dessas máquinas no caminho da faculdade, uma conveniência oferecida ali... Acho que preciso mesmo é colocar algo no estômago, testar meu corpo antes de procurar o médico. Meu organismo não estava agindo corretamente...
Com algumas moedas de meu bolso, consegui pegar um saco de batatas fritas da máquina. Vai servir...
Mas não consegui comer. Por algum motivo, eu punha a batata frita na boca, mastigava, engolia... e acabava cuspindo imediatamente, mesmo mastigando bastante. Come, Macário! Engole logo essas batatas! Chegou um ponto em que nem engolir eu conseguia mais. Argh! Ei, o que está havendo que essas batatas, de repente, ficaram com um gosto ruim?! Não estariam estragadas, estariam?! Mas onde já se viu, colocarem produtos estragados na vending machine?!
- Macário?!
Olho para o lado. Maura. Com a roupa de enfermeira e os olhos arregalados.
- Maura. Cof!
- O que está fazendo aqui? Por que não está no curso? Digo, é hora do seu curso, não é?
- Maura, eu... cof, cof... – tossi, cuspindo batatas. – Eu acho que estou doente...
- Pelo jeito sim, Macário... Mas olha só o que você fez, Macário. Que sujeira, Macário! Desaprendeu a comer salgadinho, cara?!
O chão estava coalhado de restos de batata frita cuspida.
- Eu estava tentando comer batata frita e não consigo! Cuef! Olha... eu como e... – tentei comer uma batata frita diante de Maura, mas acabei cuspindo. Tentei mais duas vezes, mas não deu certo. Maura até se afastou para o lado.
- Puxa, Macário!!! – Maura me olhou com expressão de nojo. – Logo aqui, na frente do hospital?!
- Urgh... O que está havendo comigo? Cof, cof... Primeiro vomito tudo o que comi, depois vomito toda água que bebi, depois meu pescoço dói... cuof! E agora... Eu... eu... Maura... tem algum... Cof, cof! Algum médico disponível aqui no hospital?!
- Ter, tem, Macário, mas... Você... você está legal?
Estranhamente, senti meu sangue ferver... Mas... Mas não é óbvio?! Precisava fazer essa pergunta, Maura?! Precisa de óculos, agora?!
- Claro que NÃO!!! – gritei, rispidamente. – Não está vendo que eu NÃO estou legal, sua...?
- Macário?! IAAAAAHHHHHHH!!!
Foi a vez de Maura fazer uma expressão de horror e gritar, assustada.
- Maura?!
- Socorro!!! – e Maura saiu correndo. – Monstro!!!
- Maura!! Volta aqui!! O que é que está... está...
Meu rosto se volta para uma vidraça do hospital. E levo um grande susto: refletido na vidraça, estava um rosto realmente assustador, uma carranca de morcego. Aquele... aquele... sou eu?!
- IAAAAHHH!!! – foi minha vez de gritar. E de sair correndo, cobrindo o rosto.

Corri sem direção, a mochila em minhas costas balançando perigosamente, prestes a rasgar. Não prestei atenção na direção que corri, só procurava evitar as pessoas que passavam por mim. E cobria o rosto.
Não! Não!! Não me olhem assim! Não olhem!!! Não vejam no que eu me transformei!!!
Quando finalmente achei um local onde não havia gente ao redor, recobrei a consciência. Eu estava em um beco, na cidade. Não faço ideia de como vim parar aqui, mas eu já não estava mais no campus universitário, disso sei.
Olho em redor: o local é conhecido, fica a caminho do bar. Na verdade: era o mesmo beco onde enfrentei os cães demoníacos duas vezes.
Respirei fundo. E saí de lá. Tocando meu rosto, eu não sentia as feições monstruosas nos meus dedos. Passando a língua de novo pelos dentes, não senti os caninos pontiagudos. Ali, perto de mim, havia uma janela, com a cortina fechada. Olhei pela vidraça: oh, eu conhecia aquele rosto. Esse aí é o Macário que eu realmente conhecia há anos. Claro que é. Esse Macário não tem cara de homem morcego. Tem cara de homem humano. Esse é o Macário que conquistava mulheres toda semana. Mas esse Macário não está legal agora. Está com intoxicação alimentar, fraco, com delírios, e longe de um hospital. Mas o que esse Macário pode fazer agora? Se nem comer ele consegue?!
Não... Não pode ser. Não é possível que... que... passadas algumas semanas desde que fui mordido por um suposto vampiro... os sintomas de vampirismo já estejam se manifestando! Mas por que só agora?
Tentei lembrar-me do que sabia a respeito de vampiros na literatura que já consumi: vampiros só bebem sangue, não conseguem ingerir comida. Então é isso?! Vou ter de me nutrir de sangue, agora? É só isso que meu organismo aceita nesse momento?!
Não!!! Não concordo com isso! Nem pensar!
Com as pernas bambas, fui andando a esmo pelas ruas. Sentia fome, muita fome. Nunca antes na vida me senti tão faminto. Mas prefiro morrer desnutrido a chupar sangue! Isso é certo! Nada de sangue! Nem de gente e nem de animais! Não! Eu não estava virando vampiro! Não, não estava! É só indisposição digestiva! Tenho de ir ao hospital... um médico... um...
O celular toca pela terceira vez. O mesmo número que não quer se identificar. E, quando levo o aparelho ao ouvido... o mesmo ruído agudo. Já estava começando a me irritar. Mas esperei um pouco, ver que de repente o gaiato do outro lado da linha falava... mas não falou. Nem mesmo quando falei “alô”.
Desliguei, e recomecei a andar... meu olhar começou a ficar turvo... uma pontada de dor em minha testa... eu já não prestava mais atenção ao caminho... Só consigo pensar na minha fome... ooh, mas que fome... que sede... que fraqueza... que... que...
De repente, ouço um ruído, e meu olhar volta ao foco. E olho ao redor, apreensivo.
Por alguma razão, eu voltei ao mesmo lugar: o mesmo beco! Mas ainda era fim de tarde, não escureceu completamente, o restaurante ao lado já estava em atividade, dava para ouvir os ruídos vindos da porta, mas a lâmpada ainda não estava acesa... Mas já havia lixo nas lixeiras...
E o lixo já havia atraído ratos.
Minha consciência saiu de foco novamente.
Aahhh... sangue, sangue...
Olho para a lixeira mais próxima, já havia um rato procurando comida no lixo, distraído.
Olhei apreensivamente para aquele rato. Será que...
Não, Macário, resista! Rato não! Não aquele ratinho inocente... Mas... aahhh, eu não posso resistir... Sangue...
O instinto venceu a razão. Mas demorei para perceber.
Não sei explicar como: tudo o que sei é que, antes mesmo de o rato olhar para mim, eu consegui pegá-lo com uma das mãos. E, com a ajuda da outra mão, levei o rato, que guinchava e se debatia, em direção à minha boca... e... cravei meus dentes nas costas do roedor, rasgando sua carne... e...
Minha mente praticamente apagou para o que veio a seguir. Meus ouvidos apagaram ante o guinchar do rato, que morria devagar. Só sentia que meu corpo estava finalmente aceitando, e se nutrindo com uma benéfica proteína, que estava me devolvendo as forças perdidas... com uma substância suculenta, ao mesmo tempo líquida e sólida... nutritiva... de sabor distinto... de... de...
E eu quero mais... e aqui ainda tem mais... os outros ratos começaram a fugir, mas fui mais rápido... como um gato, avanço sobre o rato... venha cá, você... sluuurp...
E os ratos corriam por todo lado, sem saber para onde correr, aí foi fácil pegar mais um... você também não vai fugir... sluuuurrrp...
Quando recobrei a consciência, eu já me sentia melhor. Muito melhor. A fraqueza havia passado. Foi como se tivesse tomado uma vitamina de frutas depois de uma sessão de ginástica. Mas...
Ao meu redor... A lâmpada do beco estava acesa, permitindo vislumbrar o que aconteceu.
A meus pés, havia dois ratos mortos, só pele e osso, com grandes cortes no corpo, praticamente esvaziados, como caixinhas de suco.
Na minha boca, um sabor de metal... um sabor de... sangue!
Oh céus! Não me digam que...!
Olho na minha mão: um terceiro rato morto, esvaziado, pingando o resto de sangue que lhe sobrava.
Passo a mão pela minha boca: havia sangue nela.
Oh não!!! Não me digam que... que eu... eu...
...Eu chupei sangue de rato!!!
Olho ao redor, e cruzo meu olhar com um rapaz... o empregado do restaurante que estava levando o lixo para fora... e agora estava paralisado, com um olhar incrédulo.
Ele... ele viu?! Ele me viu chupando sangue de rato?!
Faço um movimento... e o rapaz rapidamente entra, assustado, para dentro do restaurante, e fecha a porta.
E eu não esperei aparecer mais ninguém. Saí correndo.

Corri pelas ruas sem direção.
Quando dei por mim, já estava mais escuro, os postes de luz acesos, e eu estava diante de um prédio em construção, ainda não concluído. Não havia capataz próximo, e havia uma parte caída na cerca de arame, criando uma passagem facilmente devassável, então, foi simples para eu entrar ali e me abrigar, ou melhor, achar um canto, em uma das futuras salas do edifício, me recostar em uma das paredes mal caiadas, sentar sobre o chão cheio de pedrinhas de cimento endurecido... e chorar.
Essa não... agora, sim, a vida que eu amava chegou ao fim! Eu agora sou um vampiro! Há poucos minutos suguei sangue de rato... Recobrou parte de minhas forças, mas isso é tão desumano! E o pior é que tinha uma testemunha!
Pela minha mente, passavam memórias. Tentava lembrar de tudo o que havia aprendido sobre vampiros, vendo filmes e lendo a coleção de livros de terror de meu pai, e mais os que eu havia lido na escola... Houve uma época na vida em que cheguei a me interessar por histórias de vampiros, mas foi muito passageiro. Tive de priorizar a literatura mais “séria” por conta do vestibular, e a literatura escapista teve de ficar de lado.
Mas, bem, parece que o que eu estou sentindo agora bate com as descrições, nem sempre unânimes, de diversos escritores para explicar como se dá a transformação de uma pessoa em vampiro. Estou sem conseguir comer ou beber? Checado. Só recuperei minhas forças quando suguei sangue do primeiro ser vivo que achei? Checado. Aversão à luz solar? Bem, ainda não confirmado, afinal, já anoitecera, não de todo, mas o que sobrava do sol era insignificante para me afetar.
E agora, qual será o próximo passo? Decerto, eu também começarei a despertar sentidos aguçados – visão noturna, olfato apurado, audição também apurada. E depois, acho que vou ter de arranjar um caixão para servir de cama... Trocar minha cama por um caixão... E depois, o que vou dizer para os meus pais? Pelo menos viverei muito mais anos que eles... mas também vou começar a assistir as pessoas queridas morrerem enquanto ultrapasso mais de cem anos, com a mesma aparência... Mas será que, mesmo como vampiro, vou conseguir atuar como médico?
As coisas estavam acontecendo depressa demais. Mas eu tinha uma certeza, agora: nesse momento, sou um morto vivo. Um monstro. Um sanguessuga.
Mas, aah, se eu pego aquele vampiro desgraçado! Eu... eu consegui ver, parcialmente, na noite passada, o rosto do desgraçado! Agora sou capaz de reconhecer aquele... aquele...
Mais uma vez, o celular toca. Pego, é aquele número não identificado novamente. Será que devo atender?
Não... vou deixar tocar até desligar.
Quando o telefone silenciou, me ocorreu uma coisa: ei, os sintomas de vampirismo que manifestei começaram depois que escutei aquele ruído vindo do celular. Podia ser isso! Pensando bem, o ruído lembrava um apito de alta frequência, como os usados para treinar cães. O apito deveria ter sido calibrado para que humanos pudessem captar o som. Comecei a passar mal após o jantar no RU depois que ouvi o apito; depois, não consegui comer as batatas e fiz uma cara de Nosferatu quando ouvi o apito novamente; e, na terceira vez, eu ataquei os ratos no beco. Um novo sintoma deve se manifestar se ouvir aquele som novamente... Mas... Mas como isso? Por que o vampirismo está sendo ativado com um som de alta frequência? Será que eu fui hipnotizado sem perceber, e tive a mente condicionada, de acordo com as teorias de Pavlov? Minha mente foi condicionada para apresentar reações a partir de um apito de alta frequência?! Mas como...? Quem teria...?
O celular toca novamente. O mesmo número. Fico receoso. Devo atender? Não. Deixo o celular desligar. O que de fato aconteceu.
Não. Não vou atender celular nenhum. Aliás, acho que não vou mais sair desta construção. Não me animava sequer a voltar para casa. O certo era que, de agora em diante, acho que não vou mais poder me encontrar com ninguém. Afinal, agora sou um monstro. Nenhuma garota vai querer sair comigo se descobrir que agora sou um vampiro. Mas e se eu não contar para as garotas que... não. Aí depois vou sugar o sangue delas e...!
Que maníaco mordedor que nada, Créssida... é um vampiro legítimo quem mordeu a mim, a Valtéria, você, a Loreta... Então, deve ser questão de tempo até que vocês também manifestem sintomas de vampirismo, e passem a morder pescoços... como eu! Que vocês acabem se tornando maníacas mordedoras! Chorei de novo.
Não! Nada de pescoços... humanos! Se é sede de sangue, então que seja exclusivamente de sangue de animais. Tem muitos vampiros que fazem assim para que possam andar em sociedade, sem serem percebidos por...
O celular toca novamente. Mas, desta vez, apareceu um número diferente: 846163648. Ah, afinal! Aquele número era conhecido... mas de onde mesmo?
Atendi. Porém, do outro lado da linha, apenas aquele estranho ruído. Desligo, irritado, a ponto de jogar o celular na parede...
Mas, desta vez, o ruído me afetou para valer: a pontada no pescoço voltou, acompanhada de uma dor de cabeça, que me fez me contorcer. Não consegui segurar o grito.
As dores passaram depois de um minuto. Um longo e agonizante minuto onde senti as piores dores já sentidas na vida. Na cabeça, foi como aquela pontada que todos sentem ao tomar um sorvete depressa demais, mas amplificada dez vezes. No pescoço, foi como uma flecha trespassando a pele, a traqueia, o esôfago... a partir da marca da mordida.
Respirando forte, agora, deitado no chão frio, poeirento e cheio de “espinhos” – na verdade, pedrinhas de cimento seco, comuns em construções – via o mundo rodando, uma estranha espiral de cores rodando acima de mim, aumentando minha vertigem... e agora eu aguardava que aparecesse alguém. Talvez o vigia da obra agora apareça e queira explicações. Ele pode ter ouvido meu grito e já estava procurando a fonte... Vai ser minha primeira vítima humana... ah, ah. Já podia sentir o gosto de sangue humano... Sangue...
A sede de sangue voltava, enquanto as espirais coloridas sumiam pouco a pouco do meu campo de visão.
Sangue... aah, apareça alguém logo...
Ouvi passos vindos do corredor, cujo som aumentava à medida que se aproximava de onde eu estava deitado.
Passos leves, de bicho. Oh, um animal. Também vai servir...
Parece que mais um sintoma de vampirismo se manifestava agora: meus sentidos começaram a ficar aguçados. Minha audição estava ficando mais amplificada, podia sentir. Conseguia distinguir agora de que bicho se tratava. Pelo cheiro... é um cachorro vadio. Espere: há mais cães vindo para cá. Não é um único cão, são... parece que são sete.
Venham, venham logo, cãezinhos... Deixem-me livrar-lhes do sofrimento de terem de viver nas ruas, sem dono... não vai doer...
Mas, quando os cães apareceram diante de mim, tomei um susto.
Eram... os cães demoníacos!
Rosnantes, ameaçadores, e dispostos a brigar e não fugir se eu resolvesse gritar.
Me levanto depressa do chão, e vejo que eles já preparavam o bote para cima de mim.
Já sentia que gritar não adiantaria. Vou ter de enfrenta-los se quiser mais sangue para minha nutrição.
Tiro minha mochila das costas, jogo no chão e me posiciono para o combate.
Vocês... aah, vocês causaram desgraças, seus... não, não causaram, mas teriam causado se eu não tivesse espantado vocês, demônios. Aah... por causa de vocês, tive noites de sexo... mas algo me diz que não posso deixar vocês vivos...
Contei sete cães, e agora estes estavam dispostos ao desafio.
O que parecia ser o alfa da alcateia começou a me olhar de uma maneira estranha, e, estranhamente, eu estava conseguindo entender o que ele estava “falando” com aquele olhar – como se eu conseguisse ler sua mente.
Agora vamos devorar você, “falou” o alfa com o olhar. Agora você está sozinho. Agora você não está protegendo ninguém. Vamos comer, turma. Hoje o prato do dia é Macário... E ele não vai nos assustar com seu grito. Tenta nos espantar com teu grito, Macário... Ih, ih, ih... Diz pra gente passar e dar o fora... Grita “xô”...
Não, demônios, eu não vou gritar, “falei” com o meu olhar agora. Eu vou é trucidar vocês para que não tentem trucidar ninguém.
Você é mesmo capaz disso, Macário? Mas que boa ideia, eles retrucaram com seu olhar – até pensamentos eles conseguiam ler? Desgraçados, demoníacos! Cães das trevas!
Que boa ideia. Depois de você, prosseguiram, vamos atacar a sua garota. Aquela, que íamos devorar àquela noite...
Geórgia?!
Essa não... Lembrei que a Geórgia havia marcado um encontro comigo esta noite! Não!
A Geórgia não, seus desgraçados filhos de uma... uma cadela!
Ah, não! Ninguém ofende nossa mãe... ela está morta!
E o primeiro avança, rosnante, salivante.
Você também estará morto!
Consegui segurar o cachorro no ar, pelo pescoço. E já começava a estrangulá-lo. Ele pôs meio metro de língua para fora...
Mas os outros começaram a avançar pelos lados. E começou uma verdadeira luta por sobrevivência.
Fui mordido, senti dentes vindo em minha direção, senti arranhões, senti minha roupa sendo rasgada.
Mas lutei.
Lutei e venci.
Não sei como, mas consegui.
Nesse instante, minha mente apagou. E me senti tão lobo quanto aqueles lobos. Lutei, cravei dentes e unhas, apertei pescoços, sem ter muita consciência... Enquanto também era mordido, cravavam-me unhas, tentavam subir em meu corpo. Um de nós terminaria morto, e não seria eu... que já estou morto, sou vampiro... e tenho poderes!!!
Também mordi, e suguei sangue.
A luta terminou rápido.
E, quando recobrei os sentidos, eu estava triunfante. Até soltei um grito.
Eu que terminei a luta vivo! VIVOOOO!!!
Estava arranhado, machucado, a roupa rasgada em muitos pontos e suja de sangue e poeira de construção, mas ainda em meu corpo. Senti sangue em minha boca. Senti sangue em minhas mãos. Passei a língua em meus dentes: ah, agora sim sinto os caninos pontiagudos. As mordidas que levei não foram profundas, pois foram dadas nas partes em que eu usava roupas. Mas conseguiram abrir rombos na calça, no casaco, na camiseta. Mas eu estava vestido. E me sentia na plenitude de minhas forças. Aah, o sangue de cachorro demoníaco era tão nutritivo quanto o do rato!
À minha volta, três cães mortos. Não foram feitos em pedaços. Mas também tiveram pescoços quebrados, ossos quebrados, sangue sugado. Os outros cães sobreviventes fugiram.
Eu estava mudando. Eu me sentia mais poderoso, agora.
Eu sou um vampiro! Tenho poderes! Tenho agora muita força, agilidade, sentidos aguçados... Basta agora manter o nível de sangue em dia!
E não vai ser problema para mim, agora, viver essa vida: eu já levava uma vida noturna, então, agora só preciso levantar algumas horas mais tarde para...
Ah, vou pensando nisso pelo caminho... vou sair daqui agora antes que alguém veja o resultado da chacina que provoquei: três cães mortos!
E, pegando a mochila e o celular do chão, ganhei a rua do mesmo jeito que entrei no local.
Talvez, como vampiro, agora, fique mais fácil para eu localizar o vampiro que me transformou nisso. Ele vai ter de aparecer, pelo menos para me ensinar alguns segredos da vida de vampiro. De acordo com a literatura dos vampiros, é assim: um vampiro mais experiente precisa orientar o vampiro novato em sua nova existência, ou ele se tornará um reles selvagem, e ameaçará o segredo da existência dos vampiros.
Esta noite não vou para o bar... vou é barbarizar.
Aah, que trocadilho, ah, ah!
Ali próximo daquela construção, havia um prédio com gente morando. Procurei uma vidraça fechada. Encontrei uma com a cortina fechada por dentro. Ia servir: eu tenho que ver meu rosto, se não sofreu nenhuma alteração...
Não sofreu. O rosto ali refletido era o já conhecido rosto de Macário, só com o cabelo desgrenhado, com sangue nos cantos da boca, e, ferido e com a roupa rasgada, parecia um mendigo.

Não era rosto de morcego. Parecia ainda o Macário quando costumava ser humano. Acho que aquela aparência monstruosa só se manifestava em momentos de raiva. Ou talvez fosse só um delírio. Um delírio que Créssida e Maura compartilharam... Bem, deve haver explicação para isso, também. Que vou procurar com o vampiro que agora vai ter de me treinar. Me aguarde!

Próximo episódio daqui a 15 dias.
Até agora, como a série está? Assustadora o bastante? Bizarra o bastante? Deve continuar? Deve ser censurada? Não deve? Manifestem-se! Deixem um comentário...
E, por enquanto, é isso. Aguardem novidades. A bizarrice deve continuar no próximo capítulo...
Até mais!

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