Já deu quinze dias, onde muita coisa aconteceu. Quinze dias desde a publicação do último capítulo de meu folhetim ilustrado, MACÁRIO. Então, hoje é dia de episódio inédito!
A história, no entanto, está recém começando. Cada vez mais, o narrador adia o clímax da narrativa, estendendo os fatos e o suspense. Mas a gente vai amarrando os nós narrativos aos poucos... é assim que as boas narrativas funcionam.
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de canibalismo, de fanservice e de maus tratos a animais.
Créssida e eu saímos do hospital, muito
consternados, como se tivéssemos saído de um enterro. Nem mesmo Maura conseguiu
achar alguma piadinha para a situação que presenciamos – a enfermeira estava
igualmente consternada.
Loreta ainda ia ficar mais um dia no
hospital, se recuperando da mordida que levara do vampiro. Ou seria do “maníaco
mordedor”? Bem, de toda forma, ela teria alta amanhã, e parecia mais tranquila
em saber que não ia virar vampira, mas Créssida teve algum trabalho para
convencê-la disso. Teve de ser a Créssida, eu não saberia o que dizer neste
caso, não sou tão íntimo da coitada – a ponto de saber seus segredos mais
pessoais, o que lhe deixava mais calma, etc.
Mas o que deixou a nós dois realmente
consternados foi o drama do menino Maicon, o “pivete”.
- Coitadinho do menino. – falou Maura,
deixando uma lágrima correr sob seus óculos. – Ele agiu feito um marginal,
roubou uma bolsa, mas... viu o que houve com ele? Que cortaram a orelha dele
num acesso de “justiça com as próprias mãos”?!
- Sim... – respondi, murcho.
- É de dar pena... Ainda que fosse para fazer
justiça, o malvadão não precisava fazer assim... É um malvadão, mesmo, bandido
(soluço)... Ficar cortando a orelha do coitadinho (soluço)... e sabe-se lá o
que ele vai fazer com a orelha, decerto fazer um colar (soluço)... É assim que
se educa agora?!
Créssida derramou mais lágrimas. Eu estava
tentando segurar as minhas – por orgulho masculino, “homem não chora”.
- Aquele menino nasceu para ter azar na
vida... – falei. – Digo, não basta ser da periferia, e negro, sabe como é,
Créssida... Ter de roubar para comer, se é mesmo pra comer que ele teve de
roubar a bolsa... Ainda ter a orelha cortada por um “justiceiro”, e levar
bronca da autoridade... Ainda bem que você interveio, Créssida. Fiquei admirado
com a sua desenvoltura junto ao homem.
- Minha mãe também trabalha em Conselho
Tutelar, Macário, na minha cidade, e eu mais ou menos sei como ela teria agido
nesse caso. Se tivesse sido ela a vir ali cuidar do caso do moleque... Mas não,
tinha de ir aquele grosso (soluço)... E ainda fazer escândalo no hospital, hein
(soluço)...
- E o menino parecia preocupado com o
parceiro dele, que ele disse que foi esfaqueado... Ele ainda ficou triste em
não saber o que houve com o amigo.
- Nem tinha como, não é mesmo? O menino, o
Maicon, foi levado por estranhos ao hospital, e dizem que ele deu entrada
sozinho, digo, quem quer que seja levou-o para o hospital e foi embora logo
depois. Será que os pais já foram avisados? (suspiro) Quanto ao outro, ele
ficou sem saber o que houve... Decerto seu corpo ficou jogado ali, na rua, para
que os ratos devorem... E quanto ao terceiro colega, que fugiu e o abandonou
(soluço)? – secando as lágrimas, alterou o tom de voz, de triste para sério: –
Tem uma porção de coisas esquisitas nessa história.
- Pois sim... e, se chuparam o sangue dele
também, talvez o tenham feito pelos talhos na cabeça...
- Insisto. Tem coisas muito esquisitas nessa
história. E não digo apenas na história do Maicon, o da Loreta também. O que
ela falou... Bem, confirma a minha tese, é um maníaco mordedor, um psicopata.
Ela disse que o cara apertou um pano com clorofórmio no nariz dela. E comigo
foi uma pancada na cabeça. Se fosse um vampiro, teria sido um ataque direto, o
cara não teria se dado ao trabalho de anestesiar a vítima antes... Pelo menos
não com uso de força. Afinal, Macário, você já viu filmes, leu livros de
vampiro? Decerto sim, né? Você já viu vampiro usar clorofórmio antes de morder
as vítimas? Ou bater na cabeça da vítima antes de...? Não, pelo que eu sei,
vampiros costumam hipnotizar a vítima antes de morder. Ou então simplesmente se
jogar em cima dela e dominá-la, rapidamente, antes dela perceber, e... Tem
muita coisa esquisita aí... Claro que tem.
E deixou cair mais uma lágrima.
- É... não pense que eu também não acho isso
muito esquisito... – foi tudo que eu consegui responder de volta.
E ficamos calados, até entrarmos na sala de
aula – e era a última aula da semana, era uma sexta-feira. Apenas quando
Créssida sentou no seu lugar e não olhou mais para mim, é que deixei a lágrima
cair.
O que mais me consternava não era tanto o
azar do menino, que a esta altura já estava sendo reconduzido à Casa de
Correção, a instituição destinada a recuperar os adolescentes infratores, e já
estava levando um novo esporro daquele “assistente social”, fora das vistas das
testemunhas. Não era tanto o jovem Maicon ter tido a orelha decepada por um
“justiceiro”, e essa mesma orelha ter sido usada como prenda para a garota que
havia sido lesada anteriormente...
Era mais o fato de que eu conhecer tanto a
vítima do assalto em que Maicon se envolveu... quanto o “justiceiro”.
Eu devia saber... havia algum motivo para
Breevort, da turma do Luce, cultivar aquelas unhas compridas feito garras. A
sua agressividade não se resumia à tatuagem tribal em seu rosto, ou à sua
cabeça raspada. E ele parecia tão simpático quando conversava comigo, no bar,
de certa forma se contrapondo à aparência agressiva... E, de forma indireta,
acabo descobrindo que ele atua como justiceiro violento nas ruas...
Então... foi ele quem recuperou a bolsa da
Geórgia e a deixou na minha porta. Ele deve saber onde moro. Decerto, Âmbar
havia pedido a ele, no ensejo, para deixar o celular que ela me deu de
presente. E isso me deixou ainda mais apreensivo. Mal conseguia prestar atenção
à aula.
Eu estava, ainda, me sentindo muito mal. Me
sentia horrível de eu estar feliz, enquanto inocentes sofriam. Porque, enquanto
um assaltante era torturado na rua, eu fazia sexo (consentido) com a vítima do
assalto. E ainda fiquei com a orelha do assaltante. E, enquanto levava uma
garota para a minha cama, outra fora atacada por um vampiro, e teve seu sangue
sugado. E eu havia dormido com essa garota anteriormente...
O mundo é injusto e cheio de contradições...
e eu estava contribuindo para que permanecesse assim.
Deixei mais uma lágrima cair.
Eu que sou o “monstro”, não os frequentadores
do bar.
Depois da faculdade, o bar. Trabalhar.
Não tem outro jeito, vou ter de trabalhar
naquele bar. Contribuir um pouco mais com a injustiça e a maldade do mundo. E turbiná-las
com álcool.
Eu estava mal, mas tinha de seguir em frente.
Respirei fundo.
E pensei comigo: por que me sentia mal por
causa dessas desgraças? Não fui eu que suguei o sangue da Loreta, nem fui eu
que decepei a orelha do Maicon...
Ao menos isso poderia me deixar tranquilo.
E creio que não tinha muito que me preocupar.
Afinal, hoje, ia ser a vernissage do tal artista italiano que os “monstros”
estavam promovendo.
Cheguei ao bar, e ele ainda não estava cheio.
Por dentro.
E nem aberto estava ainda.
Havia gente aguardando do lado de fora, já
havia a aglomeração dos “monstros”, mas o bar ainda não estava aberto. Ué, mas
sempre que eu chego, o bar já se encontra aberto...
Interpelei um dos “monstros” que estavam
esperando ali na porta.
- Com licença.
- Opa! Macário! Você chegou agora? – fui
recebido com entusiasmo.
- Pois é, cheguei agora, e encontro o bar
fechado...
- Está interditado. Digo, só uns lá dentro,
desde cedo, ajudando a montar a exposição do Galvoni. Decerto também já devem
estar bebendo... e nós aqui, do lado de fora, nesse frio. – e a “monstra” que
disse isso usava um vestido tubinho, sem mangas.
- Ainda estão ajeitando tudo?
- Parece que demoraram, ouvi dizer, para
trazer os quadros, e o Galvoni também se atrasou...
- E desde que horas vocês estão esperando?
- Chegamos faz... hum... quinze minutos.
Marcaram a abertura da exposição para as dez e meia e... ah... são dez e quinze!
– respondeu um dos “monstros”, olhando um relógio de pulso. – Mas você também
vai servir as bebidas, né, Macário?
- Hã... claro, claro. Eu já vou entrar. Com a
licença de vocês.
E, sob os sorrisos esperançosos dos
“monstros”, que faziam uma chamativa figura com suas aparências excêntricas em
plena rua, na fila do “point”, aguardando a abertura da porta... enfim, sob os
olhares dos “monstros”, me dirigi à entrada dos empregados.
Mal abri a porta, dei de cara com o radiante
Luce, trajando um terno meio desalinhado, pois nem abotoado estava, e com o
cabelo pintado em um tom cinza-escuro, quase prateado, penteado para trás e
fixado com grossa camada de gel, que o fazia brilhar com os reflexos das
lâmpadas. Por pouco eu não o reconhecia, sem o casaco com a gola alta – só o
reconheci porque já tinha mais ou menos fixo aquele olhar que ele sempre me
dirige quando olha em meus olhos. Ele estava parecendo um estudante de um
internato para filhos de ricos, como aqueles que aparecem nos filmes
estadunidenses e europeus, com uniforme e tudo.
- Ah, Macário! Estava demorando, amigão!
- Luce?! – exclamei, assustado.
- Qual o motivo da surpresa?
- Aqui é a entrada dos empregados, sabe? O
acesso é vedado aos clientes!
- Ah, eu sei, mas eu supus que você entraria
por aqui. Teu patrão deixou-me entrar aqui para ver se você já tinha chegado...
- E por que a porta da frente ainda está
trancada, e com gente esperando do lado de fora?
- Estamos dando os retoques finais na
exposição do Marto Galvoni. Estivemos desde as oito ajeitando as pinturas nos
lugares onde os clientes possam ver. Tivemos um imprevisto, os quadros podiam
ter chegado mais cedo, mas houve um atraso e... Mas e você, onde estava? Ah, é,
você estava na faculdade, não é? Tinha aula... Ah, deixa pra lá. Dentro de uns
dez, quinze minutos o bar terá a entrada liberada, e... Vamos, Macário, se
apronte rápido. O Galvoni quer lhe cumprimentar. Ah, a propósito, estou bem
apresentável? Minha roupa está boa? Meu cabelo não despenteou?
- Hã... está tudo certo, Luce. Sua aparência
está ótima... Hã... Mas podia abotoar esse terno, não?
- Meu terno? Oh! – e abotoou o terno. – Ah,
obrigado, Macário, eu às vezes fico com a cabeça nas nuvens e não reparo em
muitas coisas... Com sua licença.
E se retirou, em um misto de nervosismo e
euforia.
E, sem discutir, fui me vestir para o
trabalho: avental, gravata borboleta. Os outros garçons já haviam se preparado
e já estavam a postos no salão, então estava sozinho no vestiário.
Saí do vestiário. E, no balcão, a postos, estavam
alguns membros da “patota” do Luce, todos me cumprimentando alegremente. Até a
Âmbar estava ali, sorridente, nada deprimida. E o Mc Claus a seu lado, alegre,
como se não desconfiasse de nada – talvez por isso ela não dirigiu-me palavra
alguma mais. O gordo estava bem manso, ao contrário do sonho que tive em que
ele me estrangulava. Mas não vi as outras garotas, Andrômeda e Morgiana. Deviam
estar no banheiro.
E ali também estava o Breevort, sorridente,
simpático, naquele porte altivo de lutador de MMA. Sem poder evitar, eu o
cumprimentei secamente. Mas não podia comentar nada com ele. Afinal, ele havia,
na noite anterior... ei: hoje ele não estava com as unhas compridas. Tinham
sido cortadas. Já começava a se livrar das provas de seu crime, seu calhorda?!
Pensei.
- Macário, que houve? – ele perguntou.
Só aí reparei que estava amarrando a cara.
- Hum... não, nada. Nada.
- Como assim, nada? Por que você amarrou a
cara pra mim?!
- Eu? Oh... Não, é que eu ainda estou
sentindo uma... hã... uma dor no joelho. Levei uma topada em um canteiro enquanto
vinha para cá.
Que mentira convincente...
- Puxa... Espero que isso não o impeça de
trabalhar.
- Não se preocupe... – sorri amarelo. – Já
está passando.
E ficou por isso. E o Breevort nem pareceu
levar a mal. Estava muito sorridente, simpático. E se afastou, foi ajudar o
Flávio Dragão e o Jorge Miguel a ajeitar uns quadros.
Aí, alguém chega atrás de mim. Era Luce de
novo, acompanhado de um homem alto e esquisitão. Luce estava muito sorridente,
mas o homem estava com a cara muito amarrada. Estávamos em três atrás do
balcão, portanto.
- Macário, aqui está o homem do momento:
Marto Galvoni. Signore Galvoni, questo è Macário, nostro bartender. – ele me apresentou ao homem, num italiano
macarrônico.
- Hã... prazer em conhece-lo, Sr. Galvoni.
- È
bello incontrarvi. – respondeu o artista, sem alterar a cara amarrada numa
expressão arrogante. – Macário, no? Sei il tipo di bevande... digo, é você o
rapaz das bebidas de quem o Luce aqui tanto fala...
Me surpreendi quando Galvoni passou a falar
do italiano para um português com pouco sotaque, como se estivesse sendo
dublado, porém, sem perder aquele jeito de falar “dramático”, típico dos
italianos. Bilíngue, hein? Pelo jeito, Galvoni costuma passar um tempo no
Brasil, e outro na Itália. Mas o que me deixou apreensivo foi sua aparência. O
sujeito era alto, parecia velho, pois até rugas apresentava no rosto; careca, e
também possuía uma tatuagem em um lado no rosto, bem parecida com a do Breevort.
Aliás, ele também tinha tatuagens na cabeça – um morcego e uma teia de aranha
na nuca – e nos braços, praticamente cobertos de desenhos. Ele estava vestido com
uma calça folgada, com vários bolsos, presa aos ombros com suspensórios, coturnos
e camiseta sem mangas, para deixar as tatuagens dos braços bem evidentes; com
essa vestimenta que lembrava a de um soldado, destoava, assim, das roupas que
Luce usava (aliás, parecia que o Luce era o único cliente vestido mais
formalmente, de terno, enquanto os outros usavam as roupas transgressoras de
sempre). E as unhas da mão do artista eram compridas, como garras, e cobertas
com esmalte escuro. Para um veterano, ele era muito transgressor.
- Hã... você... hum... sua figura é
interessante, senhor, hã... Signore.
– falei, com sincera timidez.
- Pensi
davvero? Digo, você acha mesmo? – Galvoni pareceu surpreso. – Tua aparência também non é desprezível, Macário.
- Hum... obrigado. Er... dá pra ver que o
senhor é artista. Artista underground, certo?
- Ah! Tu conheces arte, Macário? – ele abriu
um sorriso meio forçado. – Tens arte na tua vivência?
- Hum... hã... sim, sim. Eu... Eu gosto de
arte, sim. Visito museus... hum... quando tenho tempo sobrando. Tenho algum
conhecimento sobre a arte “udigrudi”, como chamamos no Brasil... Conhece Hélio
Oiticica? Não? Aliás, tenho amigos grafiteiros, eles dificilmente seriam
aceitos numa galeria de arte, se é que me entende... Eles também se tatuam
bastante, e não estão nem aí para a opinião alheia...
Estava mentindo, mas creio que o italiano
acreditou. Ou não? Seu sorriso se fechou novamente.
- Creio que vocês dois vão se dar muito bem.
– interveio Luce, sorrindo. – Claro que vão. O Sr. Galvoni já fez sua parte na
organização e na montagem desta exposição; agora, o sucesso deste evento fora
do comum vai depender do nosso querido e estimado Macário. O Galvoni nos
encantará com seus quadros, o Macário com seus drinques. Temos bebida
suficiente para esta noite?
- Bem... não sou eu quem cuido do estoque,
e...
- Temos algum tempo ainda. La notte è um bambino, ou melhor, a
noite é uma criança, como vocês dizem... – interrompe Galvoni, e estende a mão
para o salão. – Não gostaria de ver minhas
pinturas antes de começarmos, Macário?
- Hã... Claro. – aquele cara já estava
começando a me dar medo. – Os quadros. Bem, eu não conheço teu trabalho, Sr.
Galvoni, então, é uma boa ideia. Boa ideia. Quer dizer... tantos artistas
aparecem por aí, a gente mal tem tempo de conhecer os trabalhos de todos
eles... Nem temos tempo de saber se um é diferente do outro... E nem de lembrar
os nomes deles...
- Beh,
è naturale. – responde Galvoni,
com alguma simpatia e compreensão. – Não costumo
vir a este paese, venho aqui, no
mínimo uma ou duas vezes por ano, mas o tempo que passo aqui é suficiente para
dominar o idioma e diminuir a mistura de línguas... Beh, costumo passar mais tempo excursionando pelo Europa, ecco. Na Europa, sim, eles entendem de
arte, de todo tipo de arte. Bem diferente deste paese sem apreciação por arte... – Demonstrou, aí um típico
eurocentrismo arrogante. O que mais se podia esperar de um artista europeu?,
pensei. – Até agora estivemos separados pelas circunstâncias... Eu na Europa,
tu aqui. Só o Luce aqui para me contar o que acontece neste paese. Fique à vontade, bello, eu ainda tenho de organizar algumas coisas antes da abertura da
porta. Quero verificar se está tudo certo. Não gosto que nada dê errado nas minhas exposições de arte, ecco.
E se afastou, ladeado pelo esfuziante Luce,
que agia meio como um tiete do italiano.
Realmente, esse Galvoni é intimidador.
E, de repente, me ocorreu uma ideia... ele
também se encaixa na descrição que o Maicon deu para o homem que arrancou sua
orelha. Alto, careca, unhas compridas, uma tatuagem no rosto. Será que foi ele,
não o Breevort, que... Hum, há quanto tempo será que ele está no Brasil? Será
que nesse meio tempo ele se dedica a...?
Ah, depois eu penso nisso. Melhor aproveitar
e ver o trabalho desse tal pintor que eu não conhecia até hoje, e ver com o que
estou lidando.
Voltei minha atenção ao salão. O espaço
estava ocupado pelas pinturas do tal artista italiano. Os pôsteres que ficam
nas paredes haviam sido substituídos pelos quadros; e, não tendo espaço para
todos os quadros na parede – e eram muitas pinturas – nem como acomodar cavaletes
no espaço onde todos passavam, haviam quadros equilibrados, em telhado
triangular, apoiados um no outro, nas mesas de sinuca – hoje os clientes não
iam poder jogar. Pareceu uma solução interessante, até.
Saí do balcão para olhar os trabalhos. Os outros
garçons também estavam olhando os quadros, e amarravam a cara. Ouvi um deles
resmungar: “credo, coisa medonha... e esse cara vem expor aqui... e parece que
só aqui mesmo ele pode expor essas coisas, não aceitaram num museu...”
Bem, no contexto, e olhando os quadros, esse
comentário pareceu compreensível.
Eram desenhos, aparentando serem gravuras em
tela de tecido, em linha-clara de preto-e-branco, com inserções de cores a pinceladas
de tinta; os desenhos tinham um tom figurativo meio surrealista, meio mórbido. Sobre
o preto e branco, entre as cores incidentais, predominava o vermelho sanguíneo
em diversas situações. E havia a presença constante de monstros, pessoas
parecendo ser torturadas, esquartejadas ou atropeladas por tênis gigantes, mulheres
sensuais com roupas sumárias, todos em situações politicamente incorretas, altamente
bizarras, cheias de partes de corpos cortados, sangue e ossos – tinha até
animais mortos ou sendo maltratados. Mas, por algum motivo, as pinturas não
pareciam assustadoras. Pelo contrário: parecia a violência caricatural das
histórias em quadrinhos de humor negro, que não assusta – ou versões
caricaturais das ilustrações da Heavy
Metal. Nada muito realista ou impressionista. Parecia aquele estilo de
violência que podia ser grafitado nos muros, à vista de muita gente, e que não
impressionava muito, ou artes de capas de discos de rock. Esse pintor tinha
mesmo muito estilo – e ideias muito bizarras. E tinha público cativo entre os
“monstros”, é claro – as pessoas comuns pensariam duas vezes antes de dizer se
aprovavam ou não daquela violência caricatural gratuita.
Um dos quadros pendurados na parede chamou a
minha atenção: uma mulher vestida como uma vaqueira, de roupas muito curtas,
gineteando um javali saltitante. E só as roupas dela foram coloridas. E a
vaqueira exibia um decotão generoso. E essa mulher parecia familiar...
- Impressionante, não?
Olhei para o lado: eram as garotas. Âmbar,
Andrômeda, Morgiana. E havia uma quarta garota com elas, vagamente familiar. As
quatro formavam uma escada de alturas: Morgiana era a mais alta, Andrômeda em
segundo, Âmbar em terceiro e a última garota era a mais baixa.
- O... oi, como vão? – sorri amarelo.
- Oi, Macário. – cumprimentou Morgiana, tão
bonita com aquela aparência de adolescente, camiseta larga, com uma manga caída
e mostrando o ombro, e a calça jeans justa, que ajudava a evidenciar seu corpo
esguio, cabelos negros escorridos e brilhantes, sorrindo e mostrando aqueles
dentes brancos e serrilhados como os de um tubarão. – E aí, gostou dos quadros?
- Estou impressionado. Esse Marto Galvoni é
mesmo... hum... excepcional. São gravuras?
- Não. – responde Âmbar, tão atraente com
aqueles trajes sensuais, blusa decotada, barriga de fora, minissaia com meia
arrastão (como se ela não vestisse outra coisa), cabelo pintado de rosa claro
e, que estranho, suas unhas voltaram a ficar grandes e pontudas, talvez sejam
apliques. – É tudo desenhado direto em tela. E com acréscimo de cores a tinta.
Legal, né? Cada um destes quadros é único, não há cópias.
- É... e eu vi que este quadro foi o que
chamou mais a sua atenção... – falou Andrômeda, tão elegante naquele vestido
branco decotado, de caimento perfeito sobre o corpo “cheinho” e curvilíneo, um
cinto passando pela cintura, o cabelo mullet cor de rosa, a língua bifurcada
mal disfarçada na boca. – Notou alguma coisa?
Pior que notei: a garota do quadro era ela!
Andrômeda! Mas, no quadro, seu cabelo era prateado e bem mais comprido, e
estava diferente porque estava em movimento. Mas aí olhei com atenção para a
boca aberta da retratada: embora discretamente, sua língua também era
bifurcada. E, puxa... a menos que o pintor tenha distorcido, caricatamente, as
proporções corporais de... não, agora estou reparando mesmo. Nunca havia
reparado direito que a Andrômeda tinha uns “peitões” bem arredondados e firmes
– uma Elvira, Rainha das Trevas, de cabelo rosa. Talvez porque nos outros dias
Andrômeda usava decotes mais fechados; hoje ela estava com um decote mais
pronunciado. Não tanto quanto o da Âmbar, mas pronunciado, e deixando reparar
que tinha “melões”... Engoli em seco.
- Você... você posou para o pintor? –
procurei não deixar evidente que estava muito de olho nos seios de Andrômeda.
- Todas nós posamos. – responde Âmbar –
Trabalhar com Marto Galvoni é uma honra, sabe? Olhe lá, ali está o quadro para
o qual eu posei...
O quadro estava entre os equilibrados nas
mesas de sinuca. Arregalei o olho. No tal quadro, Âmbar pousava como uma
fadinha, de vestidinho curto, estilo Sininho, do Peter Pan de Walt Disney.
Estava bem sensual. Mas essa fadinha, acompanhada de outras três fadinhas,
igualmente sensuais, estava comendo partes de uma mão humana gigante, e mostrando
os dentes afiados e garras nas mãos, e sangue escorrendo pela boquinha.
- Uau... Nossa. – foi o que consegui dizer.
- Eu que sugeri a pose.
E só de pensar que, no sonho, ela tentou me
devorar...
- Este aqui é o meu, olhe. – apontou
Morgiana.
Pendurado na parede, bem ao lado do quadro de
Andrômeda, estava o quadro onde Morgiana era retratada como uma sereia. Estava
bonita, com um rabo de peixe e um sutiã de conchas, mas ao mesmo tempo
terrível: ela tinha uma barbatana de tubarão saindo de suas costas, visível sob
o cabelo esvoaçante; e ela estava comendo algo que parecia uma nadadeira de
baleia, de forma selvagem, puxando a carne com a boca, como quem devora uma
pizza. Embaixo, havia partes de uma carcaça de uma criatura marinha morta, talvez
fosse mesmo uma baleia.
- Que tal?
- Incrível...
Comparei os quadros: eram mesmo as três
garotas. As situações em que estavam retratadas eram bastante incomuns e
bizarras. E, observando melhor, eram politicamente incorretas e antiecológicas.
Seria uma forma de crítica por parte do artista? E elas nem pareciam preocupadas
com o meio ambiente! Uma pessoa comum não aprovaria que mulheres fossem
retratadas maltratando bichos com gosto...
- Que acha, Macário? – perguntou Andrômeda,
com o olhar cheio de expectativa.
- Bem... hum... impressionante. Muito...
hum... bizarro, mas... hum... impressionante. Mas vocês estão muito bonitas nos
retratos. Apesar da bizarrice das situações, vocês estão... muito bonitas.
- Aai, você acha mesmo? – Âmbar até corou.
- Claro... O Galvoni quis dar uma de... hum,
como é mesmo o nome do... ah: Tanino Liberatore, hein?
- Hummm... você também leu Ranxerox? –
perguntou Andrômeda.
- Meu pai tem um encadernado das histórias do
Ranxerox em casa... Conheço a peça. Dane-se o politicamente correto... eh,
eh...
Sabia que ter um pai fã de gibis antigos, que
tinha por hobby escavar sebos atrás de edições antigas de quadrinhos de
diversos países, ia ser útil algum dia...
- Você tem cultura, meu rapaz... – responde
Andrômeda, sorridente. – Você tem cabeça. Você é diferente de tantos que vemos
por aí...
- Oras... – foi minha vez de corar.
- É sério mesmo que estamos muito bonitas nos
quadros? – pergunta Âmbar, como se estivesse duvidando de minha palavra.
- Sério, Âmbar. Todas vocês...
- Aai, obrigada... – Âmbar corou. – E como
está de ontem para hoje?
- Bem, eu que pergunto. Como você está de ontem para hoje, depois de
toda aquela bebida?
- Bem... eu acordei hoje numa ressaca
infernal, mas estou melhor. Nada que um café sem açúcar não resolva.
- É, e foi necessário um barril de café
amargo, hein, amigona? Ah, ah... – ironizou Andrômeda, mas Âmbar nem se
importou.
- Sinto muito, Macário, acho que dei vexame
ontem, não foi?
- Não, nada, Âmbar. Nenhum vexame. Você
sequer vomitou no chão. Eu fiquei preocupado porque você corria o risco de
entrar em coma alcoólico... Digo, você bebeu como se não houvesse amanhã...
- Mas se você tivesse ciência da vergonha...
digo, você me viu assim, bêbada, e... Me senti com a cara no chão quando
percebi que você me viu em um estado deplorável...
- Ah, nem esquenta, Macário. – interrompeu
Morgiana. – Ela aguenta. Ela bebe há anos, e já está praticamente mitridatizada
dos efeitos do álcool. Claro que não pode dirigir depois, mas...
- Peraí. Praticamente como? – pergunto, sendo
o termo novo para mim.
- Mitridatizada. Sabe o que é isso, Macário?
– intrometeu-se Andrômeda.
- Hã... não.
- Bem, quer dizer que...
- Aham!
Morgiana já ia explicar, mas alguém nos
interrompeu. Era a quarta garota, que estava sendo deixada de lado.
- Ei, e eu?! Não posso falar com o Macário
aí?
- Ops! Desculpe, amiga. Ah, Macário, esta aqui
é a Filomena. – apresentou Andrômeda.
Eu reconheci a garota. Ela tinha cabelo
claro, cor de palha, comprido e escorrido, e estatura baixa, mas o corpo era
cheio de curvas, evidenciadas nas roupas justas, a calça jeans rasgada, a
camisa com um nó abaixo do busto e a barriga de fora, que lhe davam um ar de
vaqueira. Lembro de ter visto essa garota tomando uma piña colada às lambidas, como uma gatinha. Seus olhos, aliás,
lembravam os de um gato. Ou devia ser apenas impressão.
- Oi, Macário. – ele falou com uma vozinha
suave. – Desculpe não ter conseguido falar com você antes, mas...
- Não tem o que se desculpar... hã...
Filomena.
- Na verdade, seria Philomene, na pronúncia
francesa, mas, se quiser, pode me chamar simplesmente de Fifi... Muita gente só
me chama assim. – até o sorriso dela lembrava o de um gato.
- Hã... é claro. Bem, não tem o que se
desculpar, hum... Fifi. Eu sou um cara ocupado, e... bem... não te vejo no
círculo de amigos das... hum... suas amigas.
- Deve ser porque... hum... você vê, não é?
Sou muito baixinha. Sumo na multidão... Eu...
- Não, não te acho tão baixinha assim.
A baixa estatura deveria ser um complexo para
ela. Mas eu acho que ela estava exagerando, Fifi era apenas uma cabeça, mais ou
menos, mais baixa que as outras garotas – exceto Morgiana, em relação a esta já
era duas cabeças mais baixa. Nem chegava a ser uma anã, mas ela devia se ver
assim, perto de Morgiana, ou mesmo de Andrômeda, ou até mesmo de Âmbar.
- Você não me acha muito baixinha?!
- Que nada. Conheço muitas garotas com a sua
estatura, mais baixas até, e nenhuma delas vê isso como algo de errado.
- Você é tããão gentil... nyah... – ela ficou
com o rosto vermelhão, e deixou sair um miado. – Olha lá o meu quadro...
No quadro, apoiado ao lado do de Âmbar, Fifi
posava nua, deitada de bruços sobre uma pele de onça, numa pose sensual. E,
pelos ossos que ladeavam sua figura, a pele de onça havia sido recém-extraída.
Pelo olhar selvagem da retratada, pelos dentes caninos saindo de sua boca e
pelas orelhas felinas que saíam de seu cabelo, sugeria-se que a própria Fifi
teria esfolado a pobre onça.
Esse Marto Galvoni era mesmo antiecológico e
politicamente incorreto.
- Ah, Macário, não se preocupe não, sei o que
você deve estar pensando agora, mas nenhuma onça foi morta de verdade para
fazer este retrato. – explicou Fifi. – O tapete de onça era velho mesmo, foi
extraído tempos antes, mas o Galvoni insistiu em espalhar uns ossos no chão
para dar uma ideia de... hum... como posso explicar...
- Ah, ainda bem... – falei, respirando
aliviado em saber que não foi tão politicamente incorreto assim. – Você...
hum... é bem retratável, Fifi. Quem vê esse quadro não diria que você é
baixinha...
- Aai, obrigada, Macário... nyah... Você é
mesmo tãããão gentil... As garotas falam tããão bem de você, Macário... E estavam
certas...
- Hã... talvez nem seja tanto assim... Sou só
um bartender.
- Ah, Macário, para que se rebaixar assim? –
faliu Âmbar. – “Só” um bartender?
- Você é o melhor que a gente conheceu até
hoje, meu amor. – falou Andrômeda.
- E você ainda é o mais encantador que já
encontramos. – foi a vez de Morgiana se insinuar, e aspirando meu corpo. – Que
perfume você usa?
- Hã... só o mais ordinário dos desodorantes
que vendem no supermercado. – respondo, sem jeito.
- Não... acho que não é o desodorante... –
falou Fifi. – Tem algo em você que deixa as mulheres piradas só em olhar pra
você...
Puxa vida... as quatro garotas estavam me
cercando! Elas fulminavam-me com um olhar apaixonado e, ao mesmo tempo,
cortante, como se estivessem prestes a me devorar ali mesmo, em meio aos
quadros. E aí, Galvoni acabaria me retratando com o corpo todo devorado... O
que elas viam em mim? Comecei a me sentir desconfortável. Aí, ouço uma quinta
voz feminina atrás de mim:
- Ei! Macário!
Me virei: era Geórgia.
Ela estava bonita. Embora seu cabelo
permanecesse uma juba indomável, ela escolheu uma boa roupa. Digo: hoje ela
estava de cinza, e parecia uma ninja estilizada, de blusa não decotada (na
verdade, fechada com zíper até em cima, no pescoço), sem mangas, minissaia com
meia arrastão, uma faixa de tecido transparente, igualmente cinza, no abdome,
unindo a blusa e a saia, sapatos de cano baixo, braceletes de couro. E trazia,
a tiracolo, uma pasta de papel.
- Geórgia.
- Resolvi vir na exposição! E olhe – ela
mostrou a pasta de papel – trouxe umas amostras de poemas! Quem sabe me
permitam recitar algum aqui...
- Legal...
- Mas e você? Pensei que você trabalhasse
aqui, mas vejo você aí, na maior intimidade com as garotas aí...
- Eu... Oh! Já abriram as portas do bar e eu
aqui!
Agora que eu reparei que as pessoas começaram
a entrar no bar, e já estavam se concentrando para admirar os quadros. Corri
para o balcão, acho que vão querer bebida agora. Nem olhei para as garotas, se
elas estavam esboçando alguma reação à chegada de Geórgia. Momentaneamente,
consegui evitar uma saia justa. Decerto já iam começar a fazer perguntas,
muitas perguntas.
Mas as cinco garotas não perderam tempo, se
acotovelaram no balcão. “Atropelaram” os homens que se acotovelavam ali (“Dê
licença, sim, gato? Damas primeiro...”) e se concentraram. Até Geórgia chegou
junto ao balcão, decerto se perguntando o que estava acontecendo, mas não tinha
como obter resposta.
- O... o que vão querer? – procurei não
perder tempo.
- Eu já disse, Macário, vodca com suco de
laranja! – manifestou-se Geórgia, antes das demais.
Mas as outras ficaram caladas. E me
olhavam... como vou dizer? Não sei explicar exatamente como Âmbar, Andrômeda,
Morgiana e Fifi me olhavam. Em princípio, parecia um olhar enviesado. Mas aí...
minha cabeça começou a se encher de pedidos.
Era óbvio. Margarita para Andrômeda, licor
vermelho para Morgiana, uísque para Âmbar, e piña colada para Fifi – e capriche no leite condensado, moço. E,
bem, não eram só elas. Logo, os outros clientes começaram a enviar seus pedidos
telepaticamente. E, praticamente sem olhar para mais ninguém, me tornei o robô
preparador de drinques. Trabalhei maquinalmente, como trabalhei desde que os
“monstros” entraram em minha vida.
E ninguém mais me dirigiu palavra pelas duas
horas seguintes. As conversas se concentraram mesmo para o lado do homenageado
da noite, Marto Galvoni. Ele, que estava se servindo moderadamente de drinques,
circulava pelo salão, conferindo os quadros, cumprimentando pessoas. Nas vezes
que consegui voltar meus olhos para o salão – também teve pedidos de chope, eu
enchendo as canecas naquela máquina no balcão, o que me dava oportunidade para
olhar para o salão – havia gente cercando o artista, conversando com ele,
elogiando sua arte. Bem, a maioria dos seres humanos não ficaria tão
entusiasmada em elogiar a temática politicamente incorreta do Sr. Galvoni, mas
para “aqueles” seres humanos, tão transgressores em suas aparências que nem
humanos pareciam, tal temática, cheia de sangue e animais mortos, caía como uma
luva.
E Luce... ele só desviava os olhos do
italiano para olhar nos meus. E eu voltava para as bebidas.
Por um instante olhei de novo o salão:
Geórgia não estava no balcão. Depois que tomou sua dose de vodca, foi se
misturar aos outros, decerto descontente de não poder falar comigo, e,
evidentemente, estava deslocada do resto do mundo – pelo menos, daquele mundo
criado dentro do bar. As conversas dos “monstros” faziam tanto barulho quando
ondas quebrando na praia. E Geórgia não conseguia falar com ninguém, não
conseguia mostrar a ninguém os seus poemas. Aliás, nem sabia com quem falar.
Consigo desviar os olhos das bebidas e olho
de novo o salão, e fico apreensivo: Breevort começou a flertar com Geórgia, que
resolvera voltar ao balcão em uma oportunidade! Vejo os dois ali, conversando.
E, aparentemente, Geórgia ficou interessada no tipo. Engoli em seco. No bilhete
que acompanhava a orelha decepada, Geórgia foi alertada que “encontraria seu
salvador”. E era o que estava acontecendo. Isso, se estiver confirmado que
Breevort era o “salvador” da moça. E eu não podia falar nada...
Mas eu não podia ficar de olho em Geórgia.
Estava preocupado, mas eu tinha meu trabalho para fazer. Não podia decepcionar
sequer o italiano. Não deve ter sido simplesmente por sugestão de Luce que ele
escolheu este bar, e o horário mais estranho para uma vernissage – logo após as
dez da noite e adentrando a madrugada de sexta para sábado?! São todas
criaturas da noite, como eu. E eu... só tinha de entrar no clima. Já que eu era
o bartender “oficial” da turma. Não sei bem por quê...
E houve uma hora em que o Galvoni resolveu
fazer uma performance artística: pediu para instalarem um cavalete no meio do
salão e colocou ali uma tela. E ali, sob os olhos do público, pintou um quadro,
ao vivo. Não consegui ver o que ele desenhou: Galvoni posicionou o cavalete e o
quadro de costas para mim, e, além disso, tinha aquela multidão cercando, de
modo que eu só conseguia, do balcão, ver a cabeça dele. O mais interessado na
performance era Luce, que não saiu do lado de Galvoni nem um minuto. E, ao fim,
quando o italiano terminou de pintar, houve uma salva entusiasmada de palmas.
Mas ainda não consegui ver o que ele havia pintado... ele escondeu o quadro até
o fim da festa. E ninguém ali se deu ao trabalho de explicar ao bartender o que
fez o italiano... Ao bartender, só restava continuar preparando drinques para
aquele povo sedento de álcool, tinta e sangue...
Bem, o importante é que a exposição, aparentemente,
fez sucesso. Ao final do expediente, ali pelas três da manhã, Galvoni conseguiu
vender todos os quadros que colocou na exposição, ali mesmo no bar. Ele fez um
bom dinheiro. Eu vi: os “monstros” começaram a negociar quadros ali mesmo. Se
encantaram e negociaram ali mesmo, na balbúrdia. E, quando quase todos os
monstros já tinham ido embora, os quadros já haviam sumido, todos. Não havia
mais nas paredes, nem nas mesas de sinuca. E eu vi “monstros” levando quadros
embaixo do braço. Não vi se pagaram à vista, com dinheiro, ou se iam pagar
depois, ou se pagaram com cartão de crédito, cheque, etc... Até as garotas
levaram seus respectivos quadros, Morgiana, Âmbar, Andrômeda, Fifi. Mas até
isso eu já podia juntar ao meu “currículo”: eu “animei” uma feira de “arte”.
Luce e Galvoni estavam entre os poucos “monstros”
que ainda não foram embora – além deles, só estavam o Beto Marley, o Jorge
Miguel e, claro, o beberrão do Flávio Urso. Até Breevort já tinha ido embora, e
Geórgia foi com ele!
E os dois foram me cumprimentar. Galvoni veio
trazendo, escondido nas costas, um quadro que escapou da “devassa”, não vi de
onde tirou...
- Parabéns, Macário, meu velho! –
cumprimentou Luce, esfuziante. – A exposição foi um sucesso!!! Viu só?!
Vendemos praticamente tudo!!! E parte desse sucesso foi graças a você, nosso
garçom oficial!
- Que é isso, Luce... – respondo, encabulado
com todo aquele entusiasmo, como se eu tivesse desarmado uma bomba ou ganho um
prêmio Nobel ao invés de servir drinques. – Só fiz meu trabalho. E o Galvoni
fez sua parte, afinal, os quadros eram dele...
- Cada qual com sua arte. – responde Galvoni,
sem se alterar. – E seus drinques não são desprezíveis. Na verdade, são os
melhores que eu já tomei neste paese.
- Obrigado.
E olha que ele bebeu pouco. Só duas doses de dry Martini e uma de cosmopolitan. Em
verdade, ele foi o que menos bebeu em toda a “festa”. Eu contabilizei segundo o
que pude ver. Enquanto outros clientes beberam mais: Âmbar bebeu muito,
Andrômeda bebeu muito, Morgiana bebeu muito, Fifi bebeu muito, Beto Marley
bebeu muito... todos beberam muito. Só Luce e Galvoni beberam pouco (Luce tomou
um drinque a mais, apenas, mas podia dizer que estava no “clube” dos mais lúcidos
dali).
- Macário, pela sua disposição em seu
trabalho, eu quero lhe ofertar um presente.
- Não, Sr. Galvoni, não precisa se
incomodar... – falei, sem jeito.
- Não, Macário, você merece. Você é
justamente como o Luce falou. Então, gostaria que aceitasse isto.
E me mostrou o quadro – era o quadro que ele
pintou ao vivo, diante do público.
Então, aquela pintura era para mim? Bem, é o
segundo presente que recebo em menos de 24 horas...
E, surpreso, vi que era um retrato meu, de
meio corpo!
Porém, eu estava com uma expressão
assustadora, um olhar psicopata, numa pose de James Bond. Na minha mão direita,
erguida à altura do rosto na face oposta, uma taça. E, dentro dessa taça,
mergulhado num líquido vermelho, havia um olho! Engoli em seco. E, meio sem
jeito, respondo:
- Hã... eu... não sei o que dizer, Sr.
Galvoni. O... obrigado. Hum... grazie.
- Não tem de quê, Macário. – respondeu,
sorrindo.
- Se você não quiser o quadro, eu quero. –
falou Luce.
- Não, Luce, o quadro é para o Macário. Pintei
especialmente para ele. Aceite, bello.
- Hã... está bem, aceito.
Pego o quadro, e já ia saindo com ele sob o
braço, quando Luce me chamou:
- Oh, Macário. Só para avisar: nós voltaremos
aqui apenas na quarta-feira. Iremos todos fazer uma viagem neste final de semana,
e só vamos voltar na terça, quarta-feira, se resolvermos não estender um
pouco... Portanto não estranhe se não nos vir amanhã, tá?
- Hããã... e... está bem, Luce. Boa viagem,
seja lá onde vocês irão. E... vão todos vocês? Todo o grupo que esteve aqui?
- Hã... é claro, Macário. É uma excursão.
- Ah, bem. Boa viagem.
- É, e vai ser bom para você, não é?
Descansar um pouco de nós, garanto que você já deve estar cheio de nos ver...
- Que é isso, Luce.
Respiro fundo, e me dirijo ao vestiário, para
largar o quadro. Ainda tinha de auxiliar na limpeza do bar.
Todos agora foram embora. Digo, apenas um
ficou até o fim: Beto Marley, que foi quem me fez tomar uma cerveja por sua
conta. Hoje, seus dreadlocks não estavam se mexendo. E essa cerveja estava com
um gosto estranho...
Bem, aqui estou eu, de volta ao meu
apartamento, trazendo minha mochila e um quadro.
Desta vez, fui dispensado pelo final de
semana. Ia ter o sábado e o domingo para colocar minha morada em ordem, fazer
uma faxina... ou talvez só dormir, depois de trabalhar e estudar feito um
condenado a semana toda. E de fazer sexo como se não houvesse mais futuro. É:
neste final de semana não vai ter garotas. Já tive o suficiente esta semana.
Olhei de novo para o meu retrato. Bem, é
certo que a intenção do Sr. Galvoni era a melhor ao pintar meu retrato, mas a
expressão com que fiquei neste retrato, eu não sei não... eu era assim mesmo?
Viridiana já havia me falado que eu tinha um
olhar de predador, de lobo – e era assim que eu estava retratado. Mas o que
Galvoni queria dizer com aquele olho mergulhado no líquido da taça? Respiro
fundo. Estou verdadeiramente me sentindo um monstro.
Guardo o retrato em um canto da casa onde não
fique na vista de quem chegar. O que pensaria alguém que chegasse no meu apartamento,
e me visse retratado daquela maneira em um quadro feito ao vivo?! Depois eu
decido o que fazer com aquilo... Só aceitei ficar com a pintura porque Galvoni
insistiu. Afinal, eu fui responsável pelo sucesso da inusitada exposição...
Minha preocupação maior, naquele momento, era
com Geórgia. O que ela estaria fazendo agora, na companhia de Breevort? Como
ela reagiria se descobrisse que o cara com quem ela flertou naquela noite foi
quem arrancou a orelha do menino que havia roubado sua bolsa?! Estava mais que
certo, o “justiceiro” era ele.
Olho para a orelha ali naquela caixinha de
joalheiro, chateado.
Depois, para o retrato, que captara o meu
“melhor lado”.
E depois, para o celular novo, que ganhei de
presente, que ficara carregando, em casa.
Tiro o carregador da tomada. E fico olhando,
abestalhado, para o aparelho. O celular já estava com o chip do antigo, que
fora destruído, mas será que eu testo o celular agora, ligando para Âmbar,
talvez perguntando a ela para onde os “monstros” iriam excursionar? Hum...
Não. Melhor não agora. Estou cansado. Vou
deitar e dormir, agora. Amanhã, quando eu levantar, eu testo, ligando para os
meus pais, isso sim. Âmbar que espere mais um pouco.
Deixei o celular de lado e fui para o
banheiro, escovar o dentes, urinar, e aí me jogar na cama.
Mas, quando entrei em meu quarto, só de
cuecas – deixei minhas roupas no tanque para lavar durante o dia – percebo que
a noite ainda não havia terminado...
Não me diga que isso está acontecendo de
novo!
Mas desta vez, era Andrômeda que estava me
esperando ali.
Próximo capítulo, daqui a 15 dias.
Reparem que hoje teve menos texto e ilustrações. Nestes 15 dias, aconteceu muita coisa, e meio que tive de concluir este capítulo às pressas. É muito estresse. Mas as coisas vão voltando ao devido lugar aos poucos. E estamos fazendo o possível para que o próximo episódio entre no ar, sem falta, daqui a duas semanas.
E vocês, o que estão achando? Deixem uma opinião! MACÁRIO continua ou para?!
E aguardem novidades para este novo ano de blog - estamos correndo para cumprir 10 anos de Estúdio Rafelipe, sempre pensando no bem-estar do leitor. Ou pelo menos no que nós, aqui, entendemos como "bem-estar" do leitor, nestes tempos de Lava Jato, dinheiro em malas, furacões, bombas H e Pato Donald Tramposo.
Até mais!
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