sábado, 29 de outubro de 2011

Filme: CARLOTA JOAQUINA - PRINCESA DO BRASIL

Olá.
Hoje, volto a falar de filme. E, novamente, de filme brasileiro.
Este filme é um dos mais conhecidos da nossa cinematografia, ainda por cima. Muita gente já comentou, discutiu e utilizou-o como recurso didático para as aulas de história. E isso que se trata de um filme relativamente recente.
Estou falando – e pelo título vocês já deduziram – que se trata de CARLOTA JOAQUINA, PRINCESA DO BRASIL, clássico do cinema nacional.


Bem, muito se falou desse filme – e se fala até hoje, haja visto que, em 2008, o Brasil comemorou os 200 anos da chegada da Família Real Portuguesa à então colônia do Brasil, em 1808. Esse evento acelerou o nosso processo de independência política, conforme muitos já devem ter estudado nas aulas de História na escola. Muito se falou do filme – mas nem sempre de forma positiva.
Bem. Antes de tudo...
CARLOTA JOAQUINA, PRINCESA DO BRASIL, foi lançado em 1995, e foi dirigido por Carla Camurati, que também co-escreveu o roteiro (com Melanie Dimantas e Angus Mitchell). Esse filme marcou a retomada das produções cinematográficas brasileiras, depois de um hiato nas produções devido à crise econômica de 1992 e as políticas do presidente Fernando Collor de Mello que praticamente desmantelaram a cultura nacional – incluindo o cinema. Ou melhor, foi um dos filmes que marcaram a retomada: ele foi precedido por Lamarca, de Sérgio Rezende (1994), que, assim como CARLOTA JOAQUINA, tem um fato histórico como pano de fundo. Bem. Com um elenco bem conhecido da televisão e do cinema, CARLOTA JOAQUINA se propõe a fazer uma cinebiografia da princesa espanhola Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830), esposa do imperador D. João VI, o então Príncipe Regente de Portugal que veio ao Brasil, trazendo sua corte, para fugir da invasão de Napoleão Bonaparte ao seu país. É a bem conhecida história da vinda da Família Real ao Brasil, contada tendo por base a vida da princesa, que é retratada de forma negativa no filme.
Bem. O filme em questão, apesar do sucesso de público, é praticamente odiado pelos historiadores, pois os fatos e personagens são retratados, embora com alguma fidelidade histórica, de uma forma muito caricatural. O filme, em que a diretora lança muito mão da “licença poética” e da liberdade de criação, reforça alguns dos estereótipos que a história tradicional sempre atribuiu à vida de D. João VI, e transforma o fato histórico numa grande comédia farsesca. A própria diretora Camurati já havia afirmado que optou por esse caminho, atualmente tão discutido pelos historiadores, “porque não pode evitar”. Calma, vou explicando calmamente ao longo do artigo.
O filme – cujos personagens falam em três linguagens: inglês, espanhol e português de Portugal – inicia-se na Escócia, com a conversa, num rochedo a beira-mar, entre uma menina chamada Yolanda (Ludmila Dayer, a ninfa-bebê da novela Senhora do Destino, então uma atriz iniciante - 12 anos de idade na época, se não me engano) e um homem sábio, possivelmente seu professor (Brent Hieatt). É esse homem que conta à menina a história da princesa Carlota Joaquina.
A personagem é retratada desde sua infância, na Espanha (a Carlota menina é interpretada também por Dayer), em meio à corte espanhola, onde desde cedo mostrava que era inteligente, geniosa e muito mimada - mas também não muito bonita, embora dissesse que era mais bonita que a Infanta Margarida, a princesa retratada ao centro do famoso quadro do espanhol Diego Velasquez; depois, ela parte para Portugal – ela havia se casado, aos doze anos, com o Príncipe D. João por procuração, ou seja, ela só conheceu o marido meses depois do casamento, o que era uma prática muito comum entre as nobrezas absolutistas, como forma de preservar o “sangue real” – e acaba se decepcionando ao ver o marido, que até então ela só conhecia por retrato. Bem, na primeira parte do filme, a diretora faz um retrato da vida nas cortes absolutistas européias, como era o caso de Portugal e Espanha no início do século XIX. E a comparação entre a corte da Espanha – onde havia dança, música e mulheres de perucas extravagantes – e a de Portugal – marcada pela letargia, pelos maus modos (na cena do banquete de recepção, os comensais se empanturram e arrotam à mesa sem se importarem com quem está ao lado) e pela profunda religiosidade – é bem reveladora de como se processou a mudança de caráter da princesa Carlota. Mas alguns fatos são calcados na realidade – como de quando Carlota, na lua de mel, mordeu a orelha de D. João – outros não – como o próprio retrato de D. João, encarnado no filme pelo ótimo Marco Nanini: o Príncipe Regente é retratado por Camurati como um indivíduo medroso, sem vontade própria, que passa boa parte de seu tempo comendo e que se porta feito um débil mental.
E é justamente esse retrato caricaturesco que irrita os historiadores, uma vez que, na realidade. D. João VI nem era tão covarde quanto a historiografia pintou. Mas é verdade que ele era gordo, vivia carregando pedaços de frango nos bolsos do casaco para beliscar, raramente trocava de roupa e os seus assessores tinham de esperá-lo dormir para poder costurar os rasgões em suas vestes. Tudo isso é retratado no filme - porém, Nanini é pouquíssimo parecido fisicamente com o D. João real.
Pior também é o retrato de Carlota Joaquina, interpretada na idade adulta pela excepcional Marieta Severo: ela é retratada como uma mulher maquiavélica, geniosa, infiel e ninfomaníaca – no filme, ela se entrega com volúpia a diversos amantes, e chega a matar um deles, um jardineiro do palácio real, que “preferiu ver morto a vê-lo casado”. Mas é verdade que a rainha era feia de doer – e, convenhamos, comparando com os retratos de época, ao menos Marieta Severo é fisicamente parecida com a Carlota Joaquina real. Também se orgulhava de ter uma grande coleção de sapatos, “um sapato para cada dia do ano”. E, além disso, Carlota Joaquina vive tramando contra o marido. Felizmente. D. João não era tão idiota quanto se fazia crer, e dava um jeito de debelar os planos da mulher. E olha que, apesar de terem tido filhos, os dois viveram separados pelo resto da vida. Mas, no filme, Camurati diz que “muitos eram os filhos de Carlota Joaquina, poucos eram os de D. João” – Carlota deu à luz nove filhos, mas ainda se discute quantos ela teve com D. João; o filme sugere que D. João era pai de apenas quatro.
Outra personagem que merece menção no filme é a mãe de D. João, a rainha D. Maria (Maria Fernanda). A então rainha de Portugal, ao perder o filho primogênito, enlouquece, e D. João é obrigado a assumir seu lugar na regência do império português, o que causa-lhes muita apreensão, pois ele não fora educado para assumir o trono. E é bastante caricatural a cena em que D. João, ao receber a notícia de que deveria assumir a regência, se recusa a sair da cama. A loucura de D. Maria é bem retratada no filme, com seus gritos histéricos, seus delírios e suas penitências.
A segunda parte do filme trata justamente da fuga da Família Real para o Brasil – que a historiografia trata como sendo um plano antigo de Portugal para o caso de uma agressão estrangeira. Ora, quem estuda História sabe que a fuga havia sido estimulada pela Inglaterra, então aliada comercial de Portugal. Ou melhor, Portugal estava cheio de dívidas com a Inglaterra, então um país próspero devido à incipiente industrialização – e que ficara com boa parte do ouro extraído do Brasil, como pagamento das dívidas da metrópole.
Ora: em 1806, o Imperador da França, Napoleão Bonaparte, iniciou uma política de expansão imperialista para dominar a Europa e vencer a Inglaterra. Para tanto, após algumas derrotas militares sofridas em luta contra a Inglaterra, Napoleão decreta o Bloqueio Continental, segundo o qual os países dominados pela França não poderiam comerciar com a Inglaterra. Portugal recusou-se a aderir ao Bloqueio, e por isso Napoleão ameaçou invadir o país, em 1808. Desse modo, a opção que D. João teve foi fugir para o Brasil, sob a escolta de navios ingleses.
Essa parte é retratada no filme também, através dos diálogos entre D. João e o representante inglês, Lord Strangford (Chris Hieatt). Já a parte da fuga para o Brasil, feita às pressas, é bem retratada no filme: D. João e sua corte saíram de Lisboa sem avisar o povo, e ainda deixaram bagagem no porto. E é retratado com fidelidade as penosas condições nos navios, cheios de gente, com pessoas vomitando para todos os lados, enfrentando uma infestação de piolhos, que obrigou a princesa a andar com um lenço amarrado na cabeça – mas que foi interpretado pelas mulheres brasileiras como sendo a última moda em Portugal, e por isso copiado. Ah: interessante é que em boa parte do filme, a princesa Carlota vive coçando a cabeça.
A cena da chegada ao Brasil é marcada pela liberdade poética de Camurati: é bastante irreal historicamente a parte em que a Família Real desembarca na Bahia cercados de aborígenes pintados. Ora, e ainda por cima a diretora não retrata o episódio da Abertura dos Portos às nações amigas, a assinatura do tratado que favorece à Inglaterra despejar aqui na colônia seus produtos industrializados.
Mais tarde, a Família Real, após uma breve passagem por Salvador, vão para o Rio de Janeiro, capital da Colônia. Alguns fatos retratados no filme merecem destaque: o retrato das ruas do Rio de Janeiro, caóticas, apinhadas de gente – principalmente escravos; as portas sendo marcadas com as letras PR (como a Corte Portuguesa veio meio que de surpresa, foram requisitadas muitas casas de gente abastada para acomodar as mais de 10 mil pessoas que vieram com D. João – e, como muitas vezes os moradores tinham de ser despejados para que as casas fossem ocupadas, PR, sigla de “Príncipe Regente”, ficou conhecido como “Ponha-se na Rua”); as dificuldades passadas pelas pessoas que foram despejadas (como na cena da família que precisa ocupar um chiqueiro depois que receberam o PR na sua porta, e na cena em que uma mulher se submete à inescrupulosidade de um vendedor na hora de comprar um frango – com a vinda da Família Real, muitos vendedores faziam subir descaradamente o preço dos víveres –, mulher essa que mais tarde se torna nobre, e amiga pessoal de Dona Carlota); os bastidores da fundação do Banco do Brasil (cujos cofres D. João esvaziou antes de voltar a Portugal); a distribuição de títulos de nobreza a uma elite perdulária e corrupta, sedenta por favores reais (recurso inclusive utilizado por D. João para afastar os amantes de D. Carlota dela); a morte de D. Maria, tornando D. João rei do Império Português de fato (porém, Camurati passa por alto a elevação do Brasil a Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves, em 1816). E, mesmo no Brasil, D. João porta-se como um rei gordo, comilão e preguiçoso. Ah: em uma das cenas, ele desce da carruagem em que está passeando com a filha, a Princesa Maria Teresa (Beth Goulart) para fazer cocô em um penico – e esta chama sua atenção quanto à sua roupa.
E vemos também o modo como Dona Carlota se porta no Brasil: ela odiou nosso país desde antes de pisar em nosso solo; exigia que, quando ela passasse na rua, todos se ajoelhassem diante dela; e inclusive tentou convencer D. João a torná-la a rainha da Região do Prata (correspondente ao Uruguai e parte da Argentina), então parte do Império Espanhol - e, nessa empreitada, ela tem a ajuda de um dos amantes, José Presas, que mais tarde é deportado e escreve um livro contando intimidades de D. Carlota, um recurso para se vingar dela. Porém, seus planos são constantemente frustrados pelo marido, que alega não ter dinheiro para tal empreendimento. Numa cena, a Princesa cogita inclusive vender as próprias jóias para custear suas pretensões ao trono do Prata. Enquanto isso, ela se entrega com volúpia aos amantes – o caso mais dramático é o de Fernando Leão (Norton Nascimento), ao qual D. João entrega-lhes o título de presidente do Banco do Brasil (na cena do velório de D. Maria, Dona Carlota se entrega ao amante enquanto todo mundo está triste – e o fato é ainda presenciado por D. João). Mais tarde, Carlota Joaquina tenta se reconciliar com ele, inclusive tramando a morte da esposa dele, que anteriormente foi tirar satisfações com ela. Nessa parte, a princesa Carlota se comporta de uma forma muito patética.
Ah: um outro personagem que merece menção é D. Pedro (Marcos Palmeira), o proclamador da independência do Brasil e futuro D. Pedro I, nosso primeiro imperador – e que inaugurou a nossa dívida externa. Ele é retratado como um rapaz epilético e que, assim como a mãe, gostava de sexo. No filme, é retratado o caso que D. Pedro teve com uma cantora de ópera chamada Noemi, que fora afastada por D. João, grávida de Pedro, e que, mais tarde, envia ao Príncipe o corpo do filho morto.
E o filme também corre assim, até o final, quando a família real volta à Europa. É bem reveladora a cena em que Carlota Joaquina limpa os sapatos na amurada do navio, dizendo que desta terra não queria levar nem o pó, e depois joga os sapatos no mar. Carlota Joaquina acaba morrendo sozinha e pobre no castelo da Quinta do Ramalhão – o filme sugere que ela se suicidou envenenada. E que D. João teria sido envenenado – questão ainda muito discutida.
Bem. No aspecto técnico, o filme tem uma boa cenografia, com os figurinos extravagantes de Tadeu Burgos, Marcelo Pires e Emilia Duncan, que reproduzem à exatidão os vestidões e perucas extravagantes das mulheres das cortes e os fardões dos homens (mas fizeram economia nas roupas de D. Pedro, que em algumas cenas aparece sem camisa sob o fardão), porém esses trajes, por vezes esfarrapados, evidenciam o clima de decadência pelo qual passavam as monarquias absolutistas da época (no início do século XIX, por conta da Revolução Francesa, as monarquias tradicionais europeias, sobretudo a de Portugal, estavam com seus dias contados); a fotografia de Breno Silveira, no entanto, é muito escura, claustrofóbica, não dá quase nenhum alívio aos olhos do espectador. Nas cenas iniciais, as cortes portuguesa e espanhola são retratadas como locais escuros, com pouca luz e cheios de decorações extravagantes, em contraposição ao ambiente fartamente iluminado e exuberante do Brasil; e, além disso, os cenários são todos sujos, em ruínas, com gente correndo por todo lado – a cena campeã nesse quesito é a da fuga da Família Real, processada sob uma tempestade, e no final as ruas estão apinhadas de lixo e gente deitada.
A música de André Abujamra e Armando Souza faz diversas misturas que, embora historicamente deslocadas, se encaixam com o clima de cada cena – samba “chorinho”, música clássica, flamenco e música de tourada. (Ah, em tempo: as cenas em que a Carlota Menina dança flamenco também são historicamente deslocadas, devido a Espanha também ser um país profundamente religioso). Mas o roteiro do filme é que é muito criticado, por fazer uma comédia farsesca com o tema histórico. Mas que culpa Camurati teve se a historiografia disponível na época retratava os personagens históricos de um modo tão caricatural? Foi por isso que ela não pode evitar: quando ela estava pesquisando sobre os personagens, se deparou com tipos tão caricaturais que foi irresistível retratá-los assim. (Citado por Laurentino Gomes na obra 1808).
Mas, ainda assim, o filme representa um bom recurso didático para as aulas de História – desde que acompanhadas da explicação do professor, é claro. E não devemos esquecer também que coisa pior já foi produzida: a minissérie da Globo O Quinto dos Infernos, de 2002, faz um retrato da mesma época, mas é lembrada como uma das maiores vergonhas da TV brasileira. Mesmo não sendo uma aula de História, CARLOTA JOAQUINA é muito divertido. E é um marco. Ponto para Camurati. O filme ainda pode ser facilmente encontrado em DVD - distribuição da Europa Filmes. Pode não ser uma representação fiel da história, mas sabe como é o cinema. E nada melhor do que a última frase do narrador do filme para sintetizar isso: "O problema da História é que, quanto mais se lê, menos se sabe. Cada um tem sua versão para os fatos. 'Quem sabe?', esta é a resposta". Funciona como uma mea-culpa para Camurati - e também para o cinema e as artes em geral.
Para encerrar: um cartum meu que eu fiz retratando um dos hábitos de D. João: sua bem conhecida falta de higiene. Na verdade, esta era uma idéia antiga de tira, mas que resolvi realizar justo para esta ocasião.
É isso aí.
Até mais!

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