segunda-feira, 18 de junho de 2018

MACÁRIO - Capítulo 37: "As Últimas 48 Horas Livre (Parte 2)"

Olá.
Quinze dias se passaram, e quase que eu não termino o serviço a tempo.
Os que conseguirem desviar suas atenções da Copa do Mundo, prestem atenção ao episódio desta semana de meu folhetim ilustrado para adultos, MACÁRIO.
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de demonstração de degradação humana e de consumo de alimentos impróprios.



A noite passou depressa depois de Cliodna, Moira e Morgiana saíram do bar.
O último a sair, naturalmente, fui eu.
Mas saí do trabalho intranquilo.
Os Monstros resolveram não ficar para ajudar na arrumação do bar. Os garçons e eu que ajeitamos tudo, e eu fui encarregado de trancar tudo na saída – já que fui o último a sair.
Cinco da manhã. A cidade ainda escura, os postes ainda acesos, o sol ainda não começou a brilhar no horizonte – natural, por causa dos prédios que estavam na frente. Me pus a caminho do meu apartamento a pé. Para o apartamento que eu ainda podia chamar de meu. Porque, em breve, eu teria de morar com o Luce, o vampiro.
Seria mesmo seguro dividir um apartamento com um vampiro? Ainda que ele garantisse que não ia me morder mais?
Agora, eu estava desanimado. Principalmente porque não podia contar sobre isso para ninguém. Luce pediu segredo. E eu estava muito inseguro. Tais coisas aconteciam rápido demais. Mais rápido do que eu podia digerir. E eu não posso fazer nada – ainda.
Suspirei. E continuei andando. Muito desanimado. E só esperando ter agora uma noite de sono protegida contra invasões de portais mentais, contra mulheres e entidades femininas que se alimentavam de fluidos sexuais. Chega de sexo esta semana. Essas mulheres não conseguem se satisfazer, e agora tentam sugar o máximo dos meus fluidos. Quando não querem meus fluidos, querem minhas energias, minha disposição. Por isso apareciam no meu apartamento, sob o pretexto de apenas conversar, e por fim me humilharem. Por que não consigo gritar que odiava as mulheres?! Está certo, cometi muitos pecados, mas eu precisava desse tipo de castigo?!
Dentre tantas pessoas no mundo, por que o escolhido para passar por esse tipo de situação fui eu?!
Eu assim refletia, desanimado, quando, de repente, ao passar pelo espaço entre dois prédios, fortemente sombreado, sou puxado. Alguém pega meu braço e me puxa violentamente. Levei um grande susto.
Essa não! Vão me assaltar!! Vão me sequestrar de novo!!! Vão...
- Ei, Macário, relaxa, somos nós.
Surpreso, dei de cara com o sorriso de dentes afiados de Richard, o punk, integrante dos Animais de Rua, a gangue.
Me afastei um pouco, de susto. E vislumbrei.
Não só ele estava ali, como o restante da gangue.
Richard, o punk. Ringo, o rapaz dos muitos braços, agora com apenas dois. Fido, o rapaz da língua comprida (literalmente). Aura, a transmorfa, transformada em... humana. Boland, o rapaz javali, com a face humana, desta vez. Gil, a garota dos braços extensíveis, agora no comprimento normal. Pauley, o rapaz dos alfinetes, com vários alfinetes no rosto. Eliane, a bruxa, com seu cabelo bicolor e um casaquinho sobre o vestido. E Fifi, a líder, com sua baixa estatura, as mangas da camisa e da calça dobradas para poderem caber nela, e sem as orelhas felinas.
Estando naquele momento circulando no mundo humano, todos eles tinham de assumir as formas humanoides. Ainda não vi a forma animal do Richard, ou da Gil, ou do Pauley, ou de...
- Oi, Macário. – cumprimentou Fifi, interrompendo meus pensamentos, com um sorriso amarelo e desagradável.
- Hã... oi, Fifi... – foi minha vez de ostentar um sorriso amarelo. – Oi, pessoal.
- Ooi, Macário! – a gangue toda cumprimentou, desta vez com simpatia.
Comecei a sentir o suor frio.
O que eles iam fazer comigo?
- Surpreso? – falou Richard.
- Muito. – respondi, com toda calma que pude reunir. – O que vocês...
- Você viu que a gente estava no bar, né? – falou Fido. – Auf!
- Como poderia deixar de reparar? – foi minha resposta. E dava para reparar que eles, todos, estavam levemente bêbados.
- Pois é – falou Boland – hoje a gente resolveu, todo mundo aqui, dar um rolê. E, claro, nossa primeira parada foi o bar, o nosso bar favorito...
- Com o nosso agora garçom favorito, né, amor? – falou Gil.
- Sim, sim. – falou Ringo. – Fazer um campeonatinho de sinuca, tomar umas biritas...
- É, e firmar uns negócios. – falou Eliane. – Afinal, é o Luce quem está ajeitando os próximos shows da nossa banda.
- Aí, as minhas parentas apareceram, pela primeira vez. – falou Richard. – As irmãs da Morgiana. Essas não costumam aparecer junto com a gente...
- É, eu notei que vocês não se dão muito bem. – respondi.
- Como sabe?
- Ué, você deu um gelo na Moira e na Cliodna, e elas também te deram gelo. Cada um agiu como se o outro não estivesse ali.
- Ah, pois é, né?
- Que olhos de águia você tem, Macário! É como se você pudesse ler nossa mente!!! – falou Aura, rindo ebriamente.
Suspirei. Ora, eles também podiam mandar pedidos de drinques, telepaticamente, para mim! Além disso, é puro método dedutivo de um futuro médico.
Richard continuou falando.
- Sabe, com a Morgiana eu me dou muito bem. Somos assim, ó – e Richard esfregou os dois dedos indicadores um no outro. – Mas com as irmãs dela... Elas não gostam muito de mim. É, é por causa da diferença social, mesmo. Afinal, elas são ricas, são médicas, digo, uma delas é dentista, mas enfim... e queriam que eu também fosse médico, e eu resolvi jogar tudo pro alto... Digamos que eu sou a ovelha negra da família, e a Morgiana está se tornando, também, e, que bom ver que eu não estou sozinho.
Que estilo de falar atropelado. O álcool ainda fazia efeito em suas veias.
- Mesmo entre os Monstros, Macário, os mundos são diferentes. – falou Fifi. – Há diferenças marcantes entre Monstros de uma mesma espécie no que diz respeito a... diferenças sociais. Sabe, ricos, pobres.
- Em algum lugar, caro Macário, também existe um vampiro pobre, um lobisomem rico... – falou Pauley.
- É, compreendo... – respondi.
- E ainda tem quem se ache melhor que os outros, só porque são ricos. – falou Eliane. – Não acontece apenas entre os humanos, mas também entre os monstros...
- Melhor deixar pra lá, pessoal. – interrompeu Fifi. – Vamos reclamar dos filhos da p(...) numa outra ocasião, ou vai estragar o restante da noite. Temos tanto a fazer ainda hoje... Nyah...
Todos concordaram. Ninguém ali estava a fim de estender aquele papo, falar de diferenças sociais. Eles me olhavam e esperavam uma reação minha.
- E... o que vocês querem de mim agora? – perguntei, inocentemente.
- Aonde você ia, Macário? – perguntou Aura.
- Eu ia para meu apartamento. – respondi.
- Ia, Macário, ia. – falou Fifi, sorrindo. – Hoje você vem com a gente.
- E...eu?! – arregalei o olho.
- Você, Macário.
- Para... para onde?!
- Dar um rolê com a gente. – falou Richard.
- Rolê com...?
- É, Macário, o Luce, a Âmbar ou a Morgiana não podem ficar com você só pra eles. Nyah... – falou Fifi, com um olhar lascivo. – Vamos dar uma voltinha por esse resto de noite, meu amor. Junte-se a nós.
- É, Macário, junte-se a nós. – falou Gil, olhando-me como se fosse uma criancinha esperançosa.
- Mas... – tentei recusar – Mas eu trabalhei a noite toda, e ontem eu tive uma porção de complicações... eu tenho de ir pra casa, à noite eu...
- Ah, Macário, por favor, venha conosco passear. Só um pouquinho... – falou Eliane. – Só estudar, trabalhar e ir pra casa, ninguém aguenta. Quando foi a última vez que você deu uma volta pela cidade, a esmo? Hummm?
- É só uma voltinha pela cidade, vai. – falou Gil. – Vem conosco, por favor...
- A gente promete que depois leva você para casa, antes mesmo do sol raiar. – falou Fifi, cruzando as mãos. – Por favor, Macário, só esta madrugada. Nyah...
- Diz que vai passear com a gente, Macário. – falou Aura, fazendo um olhar pidonho, os olhos esbugalhados como os de um gato triste, com as mãos cruzadas. – Oh, diz que vai, diz, diz, diz...
Fifi, Eliane e Gil começaram a fazer o mesmo olhar esbugalhado, de criancinha esperançosa.
Oh, não. Aquelas quatro garotas estavam captando meu ponto fraco. Como resistir a quatro lindas garotas pedindo insistentemente para ir com elas sabe-se lá onde? E ainda mais com um olhar pidonho?! Engoli em seco.
- Hã... tá. Tá bom, eu vou com vocês. – respondi, entre dentes.
- Yes! – Fifi exclamou, fechando o punho.
Os homens do bando se entreolhavam, com olhares decepcionados. Fossem eles, não teriam conseguido me convencer a... ir sabe-se lá para onde.
- Ah, cara, se eu fosse mulher!... – ouvi Ringo exclamar, baixinho.
- Só elas mesmo para convencê-lo assim. – concordou Richard, baixinho.
Franzi o cenho. Acham que eu não ouvi o que vocês murmuraram aí?! Reparei inclusive que Boland fez um olhar de ciúme para mim, já que sua namorada estava se derretendo para cima de mim. Voltando-me para as garotas:
- Eu vou com vocês, mas vocês prometem que, antes do sol raiar, eu estarei em meu apartamento?
- Palavra, Macário. – falou Eliane. – É só uma volta, para todos nos conhecermos melhor. Vamos conversar, passear.
- É. – falou Pauley. – Hoje é dia de fazermos nossas compras.
- Vem conhecer nosso modo de viver, Macário. Você vai gostar. – falou Ringo.
- Está bem. – falei, fazendo beiço. – Vamos logo. Para qual direção?
- Fido. – falou Richard, voltando-se para este.
Arqueei a sobrancelha. Mas, depois, comecei a entender.
Pouco depois que Richard chamou a atenção de Fido, este começou, como um cachorro, a farejar o ar. Sua cabeça virava para todas as direções. O nariz farejava sem parar. Até que, depois de um minuto, Fido apontou uma direção:
- Pra cá!
Apontou para a rua. E começou a correr na frente. Os outros foram atrás. E eu, por pura curiosidade, e para não faltar com minha palavra, fui atrás. Podia ter aproveitado para fugir, mas eles eram nove contra um. Alguém podia notar.
Dentre tantas pessoas no mundo, por que eu tenho de passar por isso?!
O grupo começou a percorrer a rua, passando por várias quadras, se afastando da direção do meu apartamento. Fido farejando o ar sem parar. Ah, acho que estou entendendo que tipo de criatura era ele. E o propósito da língua grande, da boca sempre arfante.
Cerca de quatro ou cinco quadras depois, Fido apontou para um beco.
- Aqui.
O beco estava cheio de sacos de lixo, e um ou dois cães vasculhando.
- O... o que vocês vão fazer? – perguntei.
- As compras, ora! – falou Pauley.
- Compras?! Mas... aqui é um beco!
- Claro que sim. – falou Ringo. – Esqueceu que somos freegans?
- Este aqui, Macário, é o nosso supermercado! – falou Richard.
Me lembrei que eles haviam falado, em certo momento, que recolhiam restos de comida no lixo.
Aí, os membros da gangue, guiados pelo faro aguçado de Fido, começaram a vasculhar os sacos de lixo. O local, aliás, ficava ao lado de um restaurante. Mas não era aquele mesmo beco onde passei apuros certa vez. E o local ainda era próximo a um poste aceso, que ajudava a iluminar bem.
Fifi puxou, não vi de onde, um pedaço quadrado de plástico, desses para forrar mesas, que ela estendeu no chão. E ela ficou em pé, diante do plástico, orientando os outros membros da gangue, que desamarravam os sacos de lixo, enfiavam as mãos dentro, vasculhavam (e havia um surpreendente cuidado para não deixar lixo cair para fora do saco), e tudo o que eles considerassem apropriado para comer, eles puxavam, e colocavam no pedaço de plástico. Restos de ossos com carne, pedaços de massa frita, restos de salada, folhas de alface, fatias de tomate, pedaços de pão... muita coisa desperdiçada, surpreendentemente aproveitável.
- Hoje a ida ao “mercado” vai dar boa! – exclamou Fifi, feliz. – Olhem só quanta comida aproveitável desperdiçaram hoje!
- Bando de porcos! – exclamou Boland.
- Veja só quem fala! – falou Aura.
- Eu fora! – retrucou Boland. – Não sou como esses humanos que deixam coisa no prato!...
- Os males do consumismo! – exclamou Eliane.
- Melhor para nós! – exclamou Ringo.
- Ah, lembrem-se, turma, não deixem lixo jogado por aí! – falou Fido.
Eu só observava, maravilhado, aqueles oito, entre moscas, baratas e cães vagabundos, vasculhando alegremente os sacos de lixo, como quem conferia os itens em uma loja durante uma liquidação. Não era muito diferente de ver mendigos vasculhando lixo. Mas aqueles “mendigos” eram mais limpos que os moradores de rua. Ver aquele pessoal agindo de maneira tão colaborativa, vasculhando organizadamente sacos de lixo, procurando comida, e depois deixando tudo mais ou menos organizado, voltando a amarrar os sacos de lixo depois de remexidos (isso foi o que mais me surpreendeu, a preocupação deles, ainda, em não deixar o beco bagunçado, em deixar tudo mais ou menos como encontraram, evitando assim suspeitas)... Os humanos não fariam melhor. Eliane era humana, mas, junto com aquele bando, fazia tudo muito melhor que um humano. O que a maioria das pessoas consideraria repugnante, chamava minha atenção.
Fifi não estava vasculhando o lixo. Sua tarefa era afastar os cães vadios que tentavam pegar uma parte dos achados deles.
Eles chegaram a me convidar para remexer o lixo com eles, mas me recusei, e eles não se abalaram. O máximo que eu podia fazer era vigiar, da rua, ver se não aparecia polícia, ou alguém que nos denunciasse. A última coisa que faltava era sermos todos flagrados por policiais nessa estranha operação. E, que estranho, não havia sequer um policial nas ruas passando naquele momento... E o barulho que eles faziam não chamava a atenção de ninguém próximo, nenhuma luz se acendeu nas janelas próximas.
- É, acho que aqui já deu. – falou Aura, anunciando que a atividade chegara ao fim.
- Mas não dá para todo mundo... – falou Richard, examinando o monte de comida catado.
De fato. Não era tanta coisa assim. Em certos termos, aquele monte de comida daria para quatro pessoas, um prato cheio para cada um.
- Não esquenta. – falou Fido. – Estou farejando mais comida em outro local. Ali está mais cheio.
Fifi juntou as pontas do plástico, formando uma trouxa. E depois, jogou a trouxa nas costas.
- Leve-nos até lá, Fido. – ordenou. – Isca, rapaz.
Fido recomeçou a farejar o ar. E, desta vez, anunciou a direção a seguir com um uivo. Todos foram atrás do rapaz cachorro.
Só me restava seguir aquele grupo.
Estava cada vez mais me afastando da direção de meu apartamento, e me aproximava do centro da cidade.
O grupo foi parar nos fundos de uma lanchonete, que estava fechada. Mas, nos fundos, já estava ali um contêiner cheio de sacos de lixo.
Os Animais de Rua praticamente mergulharam no contêiner, puxaram os sacos dali de dentro e começaram a vasculhar.
- Fiquem de olho ao redor, turma! – exclamou Fifi.
- Podem deixar comigo, eu vigio! – eu falei.
Todos sorriram. Por alguma razão, eu já estava me sentindo entrosado.
Fifi abriu a trouxa. E o pessoal acrescentou aos restos já colhidos mais coisas aproveitáveis – pedaços de pastel, restos de hambúrgueres e de cachorros-quentes. Incrível o que tanta gente deixava no prato da lanchonete. Tive a impressão de que eles haviam catado um hambúrguer inteiro, sem uma mordida sequer. Desta vez, deu para encher a trouxa.
E o pessoal ainda conseguiu algumas latas e garrafas com restos de refrigerante não bebido, praticamente pela metade. Aura conseguiu uma garrafa de refrigerante grande, e, com cuidado, foi despejando os restos de refri na garrafa, misturando os sabores. Refris de cola, limão, guaraná, laranja e uva, misturados, resultando em um líquido escuro. As latas esvaziadas ela ia colocando em uma sacola de lixo.
- Espere só para provar isto, Macário! – falou Aura, sorrindo. – Vários tipos de refrigerante misturados!
Engoli em seco.
Minutos depois, Fifi chamou nossa atenção.
- Depressa, depressa, vamos embora! Eu vi gente aqui por perto! Já tem o suficiente para todo mundo! Vamos, vamos!
Rapidamente, o pessoal amarrou os sacos de lixo, jogou tudo no contêiner e o fechou. E todos se colocaram em disparada, e eu também. Em alguns minutos, nos encontrávamos em uma praça.
- Ufa!... – suspiraram.
E foram falando:
- Se nos pegam...
- Será que fomos vistos?
- Acho que não...
- E aí, tem pra todo mundo?
- Acho que tem pro lanche...
- Esperem aí... – interrompi aquela conversa.
- O que foi, Macário?
Ali próximo, havia uma lixeira de praça. Meu olho havia batido em alguma coisa ali dentro, que identifiquei instintivamente. E, da lixeira, tirei um pacote de salgadinho ainda cheio pela metade.
- Olhem o que eu achei! – exclamei.
O pessoal vibrou de alegria. Até eu me espantei com aquele golpe de sorte. Achar aquele pacote quase cheio de salgadinho ainda fresco, e desperdiçado. E nem chegava a ser um salgadinho de marca de qualidade, era antes daquelas marcas de fundo de quintal, quase que apenas massa de milho.
- O Macário está pegando o espírito! – exclama Fifi, feliz.
- Viva Macário!! – os outros exclamaram. – Hurra!!
- Ah, turma, foi por acaso... Foi sorte. – falei, encabulado.
- Esse tipo de sorte que nos beneficia, Macário! – falou Eliane. – O que para outros é lixo, para nós é luxo!
- Ainda mais quando é salgadinho! – falou Boland.
- Fica de olho aí, Macário, quem sabe você não acha mais alguma coisa... – instruiu Fido.
Na mesma lixeira, havia ainda um resto de um churro, mas achei melhor não chamar a atenção: estava sujo de cinza de cigarro, então não ia dar.
- E aí, turma, vamos nos sentar em algum lugar para comer! – falou Gil.
- Vamos no lugar de sempre? – pergunta Ringo.
- Acho que vai ter de ser... – falou Fifi. – Vem, Macário, vem conhecer um de nossos lugares favoritos.
O grupo começou a voltar pelo mesmo caminho. Na direção do campus da universidade.
Fomos parar nos arredores, na beira de um córrego que passava por dentro do bairro, que já havia se convertido em esgoto, margeando a avenida que terminava no campus universitário. Próximo a esse córrego, a alguns metros, cresciam algumas árvores. E, do outro lado do riacho, calçada à beira da avenida. Sob o córrego, algumas pontes de concreto e madeira, passarelas para a área residencial que ficava atrás das árvores.
Carros circulavam pela avenida – já deviam ser seis da manhã. E o grupo, à beira daquele córrego que exalava um leve cheiro acre, sentado, observando o movimento da madrugada, o céu ainda escuro mas já exibindo o brilho da manhã, beliscando a gororoba que havia ficado na trouxa – os restos de comida, com a corrida, se misturaram. Até despejaram o salgadinho à mistura, e misturaram! Os nove membros comiam com as mãos, pegavam uma porção e simplesmente jogavam na boca.
Me convidaram para me juntar à refeição. Com certo receio, me juntei. O gosto da minha porção ficou estranho, mas ainda estava bom. Igualmente estranho estava o gosto da mistura de refrigerantes, que passava de um por um, todo mundo bebendo um gole da mistura pelo gargalo da garrafa.
E fiquei pensando em pessoas que passavam fome, naquele momento, no mundo. A mistura de restos de comida, para quem se alimentava todos os dias três vezes, pareceria uma coisa repugnante, restos de sanduíches, saladas, ossos, macarrão e salgadinhos. Mas, para quem estava privado disso, era um paraíso. E, ainda por cima, aqueles haviam desperdiçado muito do que poderia ser um tesouro para esses.
Espero que, dentro de algum daqueles carros que passavam na avenida, não esteja um conhecido meu. O que ele diria se me reconhecesse entre os mendigos que ali, sob as árvores de uma madrugada fresca, partilhavam uma refeição na beira de um córrego?
- Diz aí, Macário. Não foi divertido? – perguntou Ringo.
- Não foi uma incrível quebra de rotina, Macário? – perguntou Aura.
- Que tal a comida, Macário? – pergunta Gil.
- E a bebida? – pergunta Richard.
- Eu... eu ainda não sei o que dizer. – falei. – Vocês fazem isso todos os dias?
- Quando a grana está curta... – falou Fifi. – Mas podemos dizer que também somos os lixeiros do mundo. Nyah.
- O que ninguém aguentou comer, a gente aproveita. – falou Fido.
- E o que ninguém aguenta mais vestir, a gente também aproveita. – falou Eliane.
Olhei para ela com pena. Uma garota tão bonita, levando uma vida de marginalidade por opção. Aliás, comecei a olhar para todos com pena. Todos eles, ali, em uma vida semimarginal. Ora andando com a “elite” dos Monstros, comandada por Luce, frequentando um bar; ora circulando como cães vadios nas ruas, catando comida nas lixeiras dos restaurantes. E pensar que, a poucos dias de ir morar com um vampiro rico, eu estava ali, circulando pelas ruas com uma gangue...
- Ei, Macário, no que está pensando? – pergunta Fifi.
- Pensando se vocês realmente gostam desse tipo de vida.
- Como assim? – pergunta Richard.
- Será que tudo o que vi de vocês, Animais de Rua... a banda, a moradia, vocês pelos bares, o modo como se alimentam... corresponde a quantos por cento do que eu sei de vocês? Vinte e cinco? Cinquenta por cento?
- Bem – disse Eliane – vamos dizer que o que você viu sobre nós... já é setenta e cinco por cento do que você sabe.
- Setenta e cinco por cento... – murmurei. – E os outros vinte e cinco por cento, correspondem a quê?
- Bem... – Ringo já ia falando, quando, de repente, Fido ergueu a cabeça, assustando a todos.
- Que houve, Fido?! – pergunta Fifi.
- Estão aqui! – responde Fido.
- Quem está aqui?! – pergunta Fido.
- Eles, ué!
Todos, de repente, ficaram tensos.
- Eles?! – pergunta Aura. – Essa não!
- Temos de nos mandar! – falou Richard.
- Um momento! – pedi. – Eles quem?!
- Eles, os nossos inimigos, Macário! – falou Eliane.
- Quem?! – perguntei.
Aí, começo a ouvir rosnados vindos das árvores.
Tive um pressentimento ruim. Acho que sei de quem eles estavam falando...
Mas ninguém teve tempo para se mexer.
Devagar, eles começaram a sair de trás das árvores, rosnantes, salivantes, prontos para dar o bote.
Comecei a suar frio, os dentes rangiam.

Os cães demoníacos. Voltaram.

Próximo capítulo daqui a 15 dias.
Até aqui, como está ficando? A história melhorou? Piorou? Devo continuar? Parar?
Deixem sua opinião!
E até mais!

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