sábado, 14 de agosto de 2010

OS LUSÍADAS de Fido Nesti

Olá.
Hoje, vou falar novamente de HQ. E de livro, também.
Como muitos sabem, hoje em dia se multiplicaram, aqui no Brasil, as adaptações de obras da literatura mundial para HQ. Esse filão explorado pelas editoras, além de atender às demandas do PNBE - Programa Nacional de Bibliotecas das Escolas do Ministério da Educação - a fim de possibilitar a utilização de HQs como reforço na educação, também tem representado uma tábua de salvação para artistas nacionais. Sim: como é muito difícil encontrar HQs brasileiras nas bancas, e as publicações independentes têm sido a melhor forma de artistas talentosos da nossa terra divulgarem seu trabalho, pelo menos podemos encontrar HQs brasileiras, de artistas brasileiros, nas livrarias, como literatura. Ou como um primeiro contato para os jovens conhecerem clássicos da literatura, que apesar de serem os mais recomendados nas escolas, não são muito palatáveis por causa da linguagem rebuscada dos autores - os escritores escreviam para o público adulto e culto, não para os jovens - no século XIX e início do século XX, por exemplo, a maior parte da população brasileira era analfabeta e dificilmente tinha acesso à educação de qualidade.

Bem, chega de lamúrias. Hoje vou falar de mais uma adaptação de obra literária para HQ: OS LUSÍADAS EM QUADRINHOS, adaptação da obra de Luís Vaz de Camões por Fido Nesti.
Esta adaptação foi lançada em 2006, pela editora Peirópolis, que, dentro de sua série Clássicos em HQ, também lançou adaptações de D. Quixote, de Miguel de Cervantes, por Caco Galhardo, e O Corvo, de Edgar Allan Poe, por Luciano Irrthum, só para citar exemplos.
OS LUSÍADAS: CAMÕES, LET'S TWIST AGAIN
O subtítulo acima extraí de um poema de Luís Fernando Veríssimo, publicado em um de seus livros de crônicas, Orgias. Tudo para falar de Luís Vaz de Camões e sua obra máxima.
Camões (1524 - 1580) é um poeta português do qual muito já se escreveu. Representante maior do movimento renascentista em Portugal. Sua vida, inclusive, é cercada de lendas. Caolho devido a uma escaramuça sofrida na África, em luta contra os mouros, Camões teria iniciado seu poema épico, Os Lusíadas, quando trabalhava em Macau como provedor-mor. E os manuscritos desse poema épico, inclusive, ele teria salvado durante um naufrágio - mas, nesse mesmo naufrágio, pereceu sua amante oriental, Dinamene. Preso diversas vezes, Camões, no entanto, conseguiu publicar Os Lusíadas em 1572. Apesar do sucesso da obra, Camões morreu quase miserável. Lendas à parte, isso é tudo que se sabe sobre o autor de um dos mais prestigiados poemas épicos da literatura mundial.
Para quem não sabe, o poema épico é o gênero literário que narra feitos de grandes heróis ou momentos marcantes da história através de poemas longos divididos em cantos ou grupos de estrofes, sem métrica definida. Um poema épico, em sua forma, costuma ter: evocação das musas, apresentação dos personagens, dedicatórias, conflitos entre deuses gregos que nortearão os sofrimentos dos heróis (já que o gênero épico desenvolveu-se na Grécia Antiga), e a aventura propriamente dita. Os exemplos mais célebres de poemas épicos são: A Ilíada e A Odisséia, do grego Homero; A Eneida, do romano Virgílio; O Paraíso Perdido, do inglês John Milton; e, é claro, Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões.
Os Lusíadas ainda é um dos poucos poemas épicos publicados no Brasil na sua forma original, em versos - todos os outros épicos são publicados em forma de prosa ou adaptação, e são raras as edições no mercado que trazem as traduções no formato verso - ainda por cima, são as mais caras. Os Lusíadas é exceção por ser, é claro, em língua portuguesa.
O tema de Os Lusíadas é a epopéia do povo português, àquela época em constante expansão, e pioneiro nas chamadas Grandes Navegações. Foram os portugueses que se lançaram primeiro à navegação no Oceano Atlântico, contornaram o continente africano e chegaram às Índias, terra das especiarias, através de um novo caminho - o antigo, que ia através do Mar Mediterrâneo, estava travado devido aos intermediários venezianos e a dominação turca no Oriente Médio. O pano de fundo do poema é a famosa viagem de Vasco da Gama às Índias, justamente o navegador que encontrou o caminho marítimo através da África, em 1598. Numa época de tantas superstições e quando as teorias de Colombo sobre a esfericidade da Terra soavam como piada, a viagem de Vasco da Gama era um feito e tanto. Inclua-se ainda os riscos representados por tão longa aventura, quando as viagens marítimas matavam mais homens que as guerras empreendidas naquele tempo - por doenças, fome, naufrágios. Tanto risco, entretanto, valia a pena, pois o comércio com as Índias era lucrativo - as especiarias, produtos usados como conservantes de alimentos, entre outros usos (num época em que não haviam geladeiras), tinham grande valor comercial na Europa.
O herói do poema não é Vasco da Gama, mas o povo português. Camões glorifica os feitos de seu país, e Vasco da Gama seria o exemplo mais notório da aventura portuguesa pelos mares.
Bem. Os Lusíadas é composto de dez cantos, e 8.816 versos, cheio de episódios marcantes. Como todo bom poema épico, tem: evocação das musas para auxiliar o poeta, dedicatória (ao rei D. Sebastião de Portugal), conflitos entre deuses (no caso: Baco, deus do vinho, contra os portugueses, e Vênus, a deusa do amor, a favor deles); lamentações do poeta; e os episódios que compõem o épico. Em Os Lusíadas, os episódios mais importantes são:
1 - Inês de Castro - Numa narrativa ao imperador de Melinde, na África (onde Vasco da Gama aporta antes de zarpar rumo a Calicute, na Índia), Vasco da Gama conta a história da "mísera e mesquinha que despois de morta foi rainha" - Inês de Castro era amante do príncipe D. Pedro de Portugal, e que foi assassinada a mando do pai dele. Porém, Pedro, perdidamente apaixonado por Inês, mandou desenterrá-la e coroá-la sua rainha - aí se origina uma expressão muito famosa: "Agora é tarde, Inês é morta";
2 - Velho do Restelo - No momento em que Vasco da Gama ia zarpar de Portugal a caminho das Índias, ainda no porto, um velho maltrapilho de aspecto venerando, através de um longo discurso, prevê desgraças e a má sorte da viagem;
3 - Gigante Adamastor - Esta criatura mitológica é a representação do Cabo das Tormentas, no sul do continente africano - atualmente conhecido como Cabo da Boa Esperança - um local anteriormente temido pelos navegadores, já que não se sabia o que estava adiante dele. Vasco da Gama encontra Adamastor em sua viagem à Índia;
4 - Ilha dos Amores - Como prêmio pela expedição bem-sucedida, a deusa Vênus faz aparecer uma ilha de ninfas e prazeres para que os navegadores possam descansar antes de prosseguirem na viagem rumo a Portugal.
Não é à toa que Os Lusíadas é um clássico literário imortal. Hoje, vale mais por sua beleza poética, mas se tornou imprescindível.
FIDO NESTI
Nascido em 1971, Nesti faz parte da nova geração de quadrinhistas nacionais, que têm sua influência no underground. Filho de artistas, começou a desenhar bem cedo. Começou a publicar trabalhos no final da década de 80, e já colaborou com inúmeras publicações. Nas horas vagas, toca numa banda de rock.
Nesti já publicou ilustrações em diversas revistas brasileiras, como Época, Superinteressante, Mundo Estranho, Playboy e Veja São Paulo.
Os Lusíadas, para a editora Peirópolis, é seu primeiro álbum solo. Antes desse trabalho, seu único trabalho solo que se tem conhecimento é o mini gibi Dimensão Z, que Nesti fez para a coleção Mini Tonto da editora gaúcha Edições Tonto, publicado por volta de 1998. Fora isso, colaborou para muitos jornais e revistas.
Site oficial: http://www.fidonesti.com.br/ (em manuenção no momento que escrevo; porém, o blog dele ainda está ativo - http://ilustrissimo.blogspot.com/).
OS LUSÍADAS HQ
Neste álbum, Nesti mostra o clássico de Camões em seu traço peculiar, simples e ao mesmo tempo complexo em seus grafismos, com cores chapadas que tornam cada elemento perceptível.
A quadrinização do poema camoniano é convencional, alternando páginas com até nove quadrinhos fechados com páginas inteiras de uma só ilustração.
Outro acerto da adaptação foi ter tornado o próprio Camões personagem da narrativa. Sim: é ele quem conduz o leitor através da narrativa épica, que o traço de Nesti torna caótico e surreal, mas com um resultado muito bom. Na introdução, Camões começa contando sua própria história. Só aí ele começa a desfiar os episódios.
Nesti optou por quadrinizar os quatro episódios mais importantes da narrativa - Inês de Castro, Velho do Restelo, Gigante Adamastor e Ilha dos Amores. O que não deve ter sido fácil, visto que a linguagem rebuscada do poema de Camões torna difícil a visualização dos episódios. Com certeza foi difícil para Nesti traduzir em imagens os versos de Camões - ele, inclusive, procurou respeitar a métrica do poema camoniano para que a narrativa gráfica fluísse junto com o poema. O texto do álbum, é claro, é o próprio poema, com versos e tudo.
Talvez o problema é que, optando apenas pelos episódios importantes, todos intermediados pelas aparições de Camões - que dirige-se ao leitor numa linguagem menos formal, visto que o público leitor é mais "moderno", por assim dizer - , faltem as ligações necessárias ao leitor mais desavisado. Por exemplo, fica difícil saber que, após passarem pelo Gigante Adamastor, Vasco da Gama e sua frota chegam a Melinde, e depois a Calicute, e daí só na volta encontram a Ilha dos Amores. Nesti pula do episódio do Gigante direto para o da Ilha, sem intermediações. Bem, agora já foi.
Além disso, as imagens têm inúmeras referências a cinema, literatura e outros quadrinhos. Por exemplo: o topete usado pelo Camões de Nesti, e a barba negra e fofa de Vasco da Gama foram inspirados em Tintin e Cap. Haddock, os dois célebres personagens do francês Hergé. Além de cenas de filmes e livros como O Gabinete do Dr. Caligari, O Barão de Munchausen e Moby Dick. O ponto alto da adaptação é o episódio do Gigante Adamastor, no momento em que a criatura engole a caravela de Vasco da Gama: no interior do monstro, à espera do navegador, esqueletos que contam dramáticas histórias - e em negativo, contrastando com as imagens colortidas de Vasco da Gama.
Essa adaptação constitui um primor: ao mesmo tempo que é uma adaptação literária, é uma leitura pessoal de um texto conhecido. Por isso, já é um clássico das adaptações literárias do início deste século XXI, assim como O Alienista de Machado de Assis, por Fábio Moon e Gabriel Bá, e a versão de O Guarani de José de Alencar, por Ivan Jaf e Luís Gê.
Por isso, é recomendável, é elogiável, é imperdível! Tanto para quem busca compreender a linguagem camoniana quanto para quem aprecia quadrinhos anticonvencionais. Mais um acerto da editora Peirópolis.
Para encerrar, eu desenhei duas caravelas: uma dentro de uma garrafa, e outra fora. Usei como referência as caravelas desenhadas por Nesti neste álbum. Quer algo mais apropriado?
Até mais!

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