Hoje, vou falar mais uma vez de quadrinhos. Desta vez, vai ser de uma série bastante antiga, publicada há mais de vinte anos, nos EUA e no Brasil.
Lançada nos anos 80, esta série tinha tudo para ser uma HQ inovadora, tal como foi Batman - O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, e o Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons. Mas, hoje, ela parece datada, ultrapassada, clichê e, por isso, nunca foi republicada por aqui.
Estou falando de VIDEO JACK.
Esta série, publicada pela Marvel Comics, dentro do selo Epic (linha lançada na década de 80, de títulos dirigidos ao público adulto, mas que foi extinto nos anos 200 quando apareceu o selo Marvel Max), em 1988, foi lançada no Brasil pela editora Abril em 1989, como uma graphic novel de luxo. Com o sucesso comercial de séries dirigidas ao público adulto nos EUA dos anos 80, o Brasil não perdeu chance: algumas séries prestigiadas, que estavam fora da tradicional linha de HQ de super-heróis, saíram no Brasil principalmente pela editora Abril, que mantinha nos anos 80 uma boa linha de quadrinhos adultos. Eram revistas como a prestigiosa – e saudosa – Aventura e Ficção e o selo Graphic Novel. E, diferente de muitos quadrinhos publicados pela editora nos anos 80, que saíam em formatinho, VIDEO JACK saiu no formato original americano (16,5 x 26 em média). Na época, uma revista desse tamanho, publicada no Brasil em papel de melhor qualidade que o papel convencional para revistas, já podia ser considerada edição de luxo.
VIDEO JACK saiu nos EUA numa série em seis partes: no Brasil, foram três edições.
Seus autores? Antes é preciso dizer que VIDEO JACK, em sua totalidade, foi feita a várias mãos. Mas seus principais autores foram Cary Bates e Keith Giffen; ambos roteirizaram a história e Giffen desenhou a maior parte da série, com arte-final cheia de sombras de Dave Hunt e as cores chapadas de John Wellington. Ao longo da série, entraram desenhistas “convidados”, que desenharam alguns trechos desta surrealista viagem ao mundo da TV nos anos 80. Só não consegui encontrar o significado do "KMOHAN" que aparece nas capas.
Bem. Dos artistas principais da série, o nome de Keith Giffen é o mais conhecido. Desde os anos 70, ele atua como desenhista e roteirista de HQ – mas é mas bem-sucedido como roteirista, entre as editoras Marvel e DC. Entre outras atividades no ramo, ele é co-criador da série Omega-Men, para a DC Comics, dentro da qual, surgiu – com arte de Roger Slifer – o personagem Lobo, que, a seguir, reformulado por Alan Grant e Simon Bisley, se tornaria um dos anti-heróis mais violentos – e populares – das HQ (Giffen também escreveu alguns episódios); no final da década de 80, junto com o roteirista J. M DeMatteis e o desenhista Kevin Maguire, Giffen dá vida a célebre fase humorística da Liga da Justiça da DC Comics, que marcou época; e, no início dos anos 2000, os conceitos dessa fase foram retomados em mini-séries inéditas. Atualmente, Giffen atua como quadrinhista independente, depois de alguns anos afastado. Uma outra obra interessante de Giffen que saiu no Brasil foi a graphic novel Lovecraft, publicada pelo selo Vertigo da DC Comics, co-escrita com Hans Rodionoff e com arte do argentino Enrique Breccia, e que conta a história do famoso escritor de livros de terror H. P. Lovecraft.
Bão. VIDEO JACK tem por base da história o mundo da televisão nos anos 80. Foi mais ou menos nessa década que a televisão começou a se tornar uma preocupação, uma vez que televisão se tornou símbolo de vida sedentária, e já se observavam os índices de jovens e adultos que passavam a maior parte do seu tempo vendo TV do que exercendo outras atividades, como fazer exercícios e ler. E esse quadro se tornou cada vez mais agravante com a popularização do controle remoto e do vídeo-cassete. Atualmente, o posto da preocupação listada acima foi assumido pelo computador.
VIDEO JACK capta essa tendência, através de uma grande quantidade de referências a séries, filmes e programas de TV famosos nos EUA dos anos 80, sobre os quais foi construída a história de um rapaz que vivia para a TV... e que, agora, passou a viver nela.
Olhando hoje, VIDEO JACK já é uma série datada, inválida para os dias de hoje: muitos jovens nem vão reconhecer os programas de TV que são citados ao longo da série, como Kojak, Zorro, Além da Imaginação, Jornada nas Estrelas... Nem podem fazer idéia de como era um mundo onde a TV era a principal fonte de entretenimento e informação antes da popularização da internet. E, como HQ, o modelo usado na série hoje é considerado ultrapassado.
Como assim? Bem: a quadrinização da série aposta no modelo que fez sucesso com O Cavaleiro das Trevas: as páginas divididas em quadros do mesmo tamanho, sincronizados e orquestrados, às vezes com uma ou outra ousadia visual, como personagens que saem dos limites do quadro ou um quadro grande, dando ao leitor uma sensação de alívio. Na maior parte da série, as páginas se dividem em 12 quadros rigidamente retos, rigidamente separados pelas calhas (espaços entre quadrinhos), sem maiores ousadias – às vezes, os doze quadros formam uma só imagem na página, mas “desintegrada” pelas calhas entre quadros. Algumas páginas a seguir, a divisão dos quadros nas páginas muda: alguns trechos tem nove quadros na página, outros tem seis. Às vezes, uma imagem grande e inteira corta a hierarquia dos quadrinhos. (Bem, mas que já que a série tratava sobre o mundo da TV, por que não colocaram alguns quadros arredondados, em forma de tela de TV, para tornar a proposta mais coerente?) Mas, em boa parte da série, as imagens “espremidas” entre texto e quadros não ficam muito agradáveis de ler, muito embora os desenhos se encaixem bem nos espaços (e, nos primeiros capítulos, a arte se caracterizar por grandes closes que eclipsam o restante das cenas) e a colorização de Wellington, em cores chapadas, torne os detalhes compreensíveis. Mas o roteiro é cheio de lances, reviravoltas, acontecimentos insólitos, texto pretensamente inteligente, metalinguagem... No início, a série não parece funcionar muito bem, mas, alguns capítulos adiante, a qualidade melhora exponencialmente, e fica muito mais interessante acompanhar as aventuras do herói. E ainda mais quando entram os desenhistas “convidados”, cujo traço destoa do de Giffen e Hunt, tornando o conjunto ainda mais interessante.
A história? Vamos a ela.
VIDEO JACK trata das aventuras de um adolescente chamado Jack Swift. Embora ela não seja caracterizado como tal no início da série, é um jovem fascinado por TV – a mãe, viúva (ou separada, de acordo com as informações que aparecem adiante), acaba recorrendo à “babá eletrônica” para criar o filho na ausência do pai; e, por isso, Jack tem dificuldades de relacionamento com outras pessoas, por passar mais tempo vendo TV que conhecendo outras pessoas. Para se ter uma idéia, uma garota que ele convida para um encontro, a sardentinha Doreen, recusa seu convite, porque ele propõe que eles assistam TV na casa dele; e ela quer sair. Ele só possui dois amigos: o cachorro, Kojak, e o colega de escola Damon Xarnett, um delinqüente juvenil que sempre consegue convencer Jack a acompanhá-lo em aventuras arriscadas.
Damon mora com seu tio, o velho e excêntrico Zach. Esse senhor, sentido por causa da decadência moral pela qual a cidade onde vive – Hickory Heaven – está passando, está realizando uma enorme experiência envolvendo magia negra, alinhamento de estrelas e um enorme aparato de vídeo. Seu objetivo é transformar a realidade onde vive, e pretensamente para a melhor – fazendo o mundo se parecer com o de seu filme favorito, A Felicidade Não se Compra, de Frank Capra.
Entretanto, seu plano não dá certo da forma como pretendia. Primeiro, porque tio Zach acaba sendo assassinado por um serial killer que rondava a cidade antes que conseguisse chegar em casa; e, segundo, porque Damon, desobedecendo as ordens do tio, chama Jack – que, devido a uma estripulia com Damon, é castigado pela mãe a ficar sem TV – à sua casa e lhes mostra o aparato de vídeo do tio. Os dois ligam a TV e captam os sinais dela no aparato e, quando o alinhamento das estrelas acontece, uma transformação acontece...
A realidade de Jack (ou Jackson, como Damon costuma chamá-lo) acaba sendo alterada. Só no segundo número da série entendemos o porquê. O aparato de tio Zach transforma a realidade em um grande programa de TV; e, toda vez que se aperta o botão de um controle remoto que acaba enfeitiçado com a experiência, a realidade pode ser alterada para outro canal, criando-se assim “vídeo-reinos”. Assim, uma realidade parece um videoclipe da MTV; outra, um programa infantil de fantoches; outra, um desenho animado; outra, um filme antigo em preto e branco; e por aí vai. Em outras palavras: Jack, que antes vivia PARA a TV, passou a viver NELA.
O primeiro vídeo-reino onde ele vai parar parece um grande vídeo-clipe passado em uma realidade pré-apocalíptica. Até as roupas de Jack mudam: ele passa a se vestir como um punk, com um penteado desgrenhado e os indefectíveis óculos vermelhos. Mas a maior mudança acontece com o cachorro Kojak: ele passa a ter uma aparência esquisita – redondo e parecendo um cachorro de desenho animado – e pode se comunicar mentalmente com seu dono. Kojak passa a ser uma espécie de guia e conselheiro de Jack pelos vídeo-reinos. Ah: e ele mantém a mesma aparência em todos os vídeo-reinos.
No primeiro vídeo-reino, Jack (ou Kemo-sabe, o nome indígena do Zorro, como Kojak costuma chamá-lo) é perseguido pelos asseclas do tirano que governa essa realidade, os MTVs – Milícia Tática de Vanguarda, mas uma referência ao famoso canal musical, então com poucos anos de vida – seres corpulentos, sem cabeça e que se movimentam como se seguissem uma coreografia. Jack também conhece um grupo de resistência à opressão, formado por conhecidos seus do mundo real; e, entre idas e vindas, Jack consegue ficar frente a frente com o tirano daquela realidade: o “amigo” Damon.
Mas, como um apresentador de TV explica no início do segundo número da revista, nos vídeo-reinos não existem máscaras, ou seja, uma pessoa que se apresente de uma forma em uma realidade pode se apresentar como realmente é em outra. E quem melhor exemplifica isso é Damon: em vários momentos, seu lado maligno vem à tona, e isso é evidenciado em seu rosto, que fica cheio e sombras, deixando visíveis apenas a testa e o sorriso malvado. E Damon consegue sempre engambelar Jack, enquanto espera uma oportunidade de matá-lo, fazendo-se às vezes por bonzinho – mas não demora para que seu rosto fique negro novamente, e impregnar de mal a realidade que o cerca. E Jack sempre consegue acreditar que o amigo pode mudar de mau para bom. Apenas Kojak percebe o mal que cerca Damon, e tenta convencer o dono da periculosidade dele – e, muitas vezes, Jack não acredita no cachorro.
Outra coisa: qualquer coisa que aconteça em um dos vídeo-reinos pode afetar o seguinte. Por exemplo, no reino do videoclipe, dois amigos de Jack que tentavam preparar um atentado à vida de Damon são assassinados por lasers naquele reino; quando Jack e Damon retornam à realidade, os tais amigos foram assassinados de verdade.
Quanto ao controle remoto que altera as realidades, Jack e Damon disputam sua posse. E, às vezes, eles só se salvam da morte certa em um vídeo-reino porque alguém aperta o botão do controle à tempo. E, em outras, o controle vai parar nas mãos de outras pessoas. Jack não possui poderes, apenas o controle remoto; e sua luta passa a ser, de vídeo-reino em vídeo-reino, para voltar para sua realidade, defender os amigos e enfrentar o lado mau de Damon.
Enquanto isso, outras pessoas conhecidas de Jack ganham versões nos vídeo-reinos: o tio Zach, que vaga como um morto-vivo entre os vídeo-reinos; a mãe de Jack, que de uma simpática senhora pode se converter em uma bêbada frustrada e violenta; e quase-namorada Doreen, líder da rebelião contra Damon; e o valentão da escola Tyrone, uma espécie de guarda-costas de Damon.
Tem mais: em alguns capítulos, aparece uma estranha entidade, que assume diversas formas em cada vídeo-reino, que persegue Jack e Damon para matá-los. Há também uma barreira de estática – TV fora do ar – que pode destruir tudo o que tocar nela; e uma outra entidade, o personagem mais surreal, que interfere na disputa entre o herói Jack e o semi-psicopata Damon.
Outro ponto interessante é que, a cada reino, os personagens assumem formas diferentes, mas manter a mesma personalidade: desse modo, Jack pode se tornar, entre outras coisas, um tripulante de nave espacial e combater um alien; um personagem de uma sitcom (comédia) que se transforma aos poucos numa tragédia; pode ser um muppet (marionete); pode ser um pirata; um mega-empresário que combate o maquiavélico rival Damon, também empresário; uma mulher; o papa-léguas; um serial killer; uma versão do Godzilla; e até um personagem de anime japonês!!! Em todas essas realidades, Damon quer matar Jack; e este quer fazer o “amigo” voltar à razão.
È a partir dessa rede de possibilidades que o charme da série aumenta, ainda mais porque cada uma dessas sequências passa a ser desenhada por um artista diferente e convidado. Mas esses artistas convidados – alguns são nomes conhecidos da indústria das HQ – começam a aparecer na segunda metade do segundo número (que corresponde à edição 4 americana). A partir daí, a arte deixa de ser exclusiva de Giffen e Hunt. A saber, os desenhistas convidados são (quase todos arte-finalizados por Hunt): Joe Barney (que faz Jack e Damon viverem uma aventura estilo Alien); Stephen DeStefano (que faz a sequência de Jack na sitcom e as partes inicial e final do sexto e último capítulo); Al Weiss (que desenha a sequência do pirata); Carmine Infantino (que desenha a sequência da Jack milionário); Michael Gilbert (que põe Jack e Damon dentro de um episódio de Jornada nas Estrelas); Fred Hembeck (que faz Jack e Damon virarem recrutas); Walt Simonson (que transforma Jack e Damon nos monstros japoneses Godzilla e King Gidhra); Trina Robbins (que transforma os dois em mulheres); Jim Starlin e Joe Marzan (que os transforma em caubóis); Kevin MacQuire (que transforma Jack e Damon em Papa-Léguas e Coiote); Bill Wray (que põe os dois dentro de um filme de terror); e Giffen, que transforma Jack em um personagem de anime.
VÍDEO JACK, em resumo, não é uma daquelas séries que você compreende a história na primeira lida. Tinha tudo para ser um clássico, mas o tempo tornou-a ultrapassada. Ainda por cima, a edição brasileira carece, por exemplo, de notas de rodapé para situar o leitor desavisado das referências que aparecem. Ou então de um glossário ao final de cada número com os termos citados na série. Mesmo assim, vale a lida. Menos como entretenimento despretensioso e mais como retrato de uma época que já foi ultrapassada, mas que parece não ter mudado nada.
Atualmente, não é difícil encontrar essa série em sebos e para download de scans das páginas na internet. Bem que essa série poderia ser reeditada no Brasil. Apesar de datada, vale pela arte conjunta e pela proposta metalinguística.
Para encerrar, resolvi retratar os personagens principais da série, Jack, Damon e Kojak. O que ficou mais parecido com o original, pelo meu ver, é o Kojak. Hic!
Até mais!
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