Hoje, vou iniciar uma nova experiência de criação de histórias através deste blog: um folhetim eletrônico ilustrado. Já anunciei anteriormente este projeto, e hoje começo a levá-lo a cabo.
Cada capítulo deverá ser acompanhado de três a quatro ilustrações. E os capítulos, inicialmente, deverão sair quinzenalmente. Enquanto isso, as postagens normais deverão sair normalmente - resenhas, desenhos, etc.
Sem mais delongas, apresento a vocês: MACÁRIO.
Amanhecia mais uma segunda-feira.
Apesar da sonolência e do martelar
da cabeça, eu sabia que era uma segunda feira, passado o fim de semana
proveitoso.
Posso lembrar que houve festa. Houve
balada.
Houve gente que, apesar de saber que
o dia seguinte seria segunda-feira, continuou se divertindo na noite de
domingo. Geralmente, as pessoas despreocupadas com o dia seguinte.
Mas a garota com a qual passei essa
noite de domingo para segunda-feira era uma dessas que estava preocupada com o
dia seguinte.
Apesar de termos nos divertido,
primeiro em um bar, depois em meu apartamento, a garota agora estava se
vestindo, sob a fraca iluminação da luz da manhã que penetrava nas venezianas
da janela do quarto.
Apesar da sonolência que me
acometia, eu pude ver que a garota saiu dos meus braços e estava se vestindo,
ao lado de minha cama. O relógio despertador ao lado de minha cama marcava seis
e meia da manhã.
Meio acordado, mas pronto para
dormir de novo, apoiei a cabeça em um braço. E fiquei olhando a garota se
vestir.
- Te acordei, Macário? – ela
perguntou.
- Já vai embora? – perguntei.
- Eu tenho de trabalhar, Macário.
- Ah, fique aqui, nesta cama, mais
um pouco, beleza...
- Quem me dera, Macário... Mas eu
não sou como você, querido, eu sou um ser do dia. Eu trabalho de dia... Quem
dera ser como você, que pode se dar ao luxo de dormir de dia e sair à noite.
Ela sorria. A sonolência e a
penumbra não me permitiam ver se seu sorriso era sincero ou era irônico.
Decerto ela não aprovava a minha ideia de vida. Como todo mundo. E isso depois
que dei a essa moça uma das melhores noites de sua vida...
- Sinto muito, Macário.
- Está bem, você é quem sabe... –
falei, apoiando a cabeça no travesseiro. – Mas teu dia renderá com as horas que
tu dormiste?
- Espero que quatro horas de sono
rendam um dia pouco incômodo, Macário... Mais que uma dor de cabeça não vai
render. Foi bom você ter lembrado... tenho de passar na farmácia comprar
analgésicos. Você não vai esquecer que hoje tem aula, certo?
- Não, beleza. Você vai à aula?
- Temos de ir, não?
Ela terminara de se vestir. E já ia
saindo pela porta. Eu tinha de levantar para, ao menos, abrir a porta para ela
sair. Fiz um esforço para levantar, colocar o robe que estava jogado na cadeira
da escrivaninha, e a acompanhei até a porta. Afinal, o apartamento era meu, a
chave era minha, e a responsabilidade de deixar a porta fechada enquanto durmo
era minha.
- Obrigada pela noite, Macário. –
seu sorriso desta vez era sincero. – Você é uma ótima companhia.
- Vamos nos ver novamente, beleza?
- Quem sabe no próximo final de
semana. Em que balada você estará?
- Ih, nem sei... Tu é quem tens de
me dizer em que balada tu estarás.
- A gente se fala, Macário. Espero
que esta semana te faça tomar juízo. Ah: a propósito, não fica bem você ficar
chamando as garotas com quem sai de “beleza”. Eu, por exemplo, tenho nome, é
Cressida.
- Ah, claro... desculpe... Cressida.
- A gente se fala...
E saiu. Fechei a porta e voltei para
a cama.
Essa luz que entrava pelas janelas
era incômoda.
Antes de voltar a dormir, pensei na
última frase dela. “Espero que esta semana te faça tomar juízo”... No fundo,
ela invejava este meu modo de viver.
Ela, bem como as tantas outras
garotas que levei para a cama, nestes três anos de vida universitária, queria
ficar comigo mais um pouco. Modéstia à parte, eu sei levar garotas ao êxtase.
Pena que com a regulagem errada do relógio biológico. Elas sempre pegavam no
sono após a terceira, quarta “investida”.
Bem que ela invejava esta vitalidade
que a escuridão da noite me trazia...
Bem que as pessoas de meu convívio,
no fundo, invejavam minha decisão de trocar o dia pela noite.
Mas todos preferem o dia, a forte
luminosidade diurna, para resolver seus assuntos.
Não que eu também não goste do dia.
Muita gente me recomendava que eu experimentasse sair mais de dia, curtir o
dia.
Mas o meu relógio biológico já está
regulado de outro modo. Acabei escolhendo a noite. Acabei escolhendo colocar
roupas de sair quando a maioria das pessoas escolhe colocar o pijama.
A beleza, digo, a Cressida estava
com inveja. A noite convidava para longos e acalorados beijos, mas o relógio
lhes cobrava o dia seguinte.
Ela estava invejando...
Zzzz...
Três e meia da tarde, o relógio
desperta novamente.
Ainda está luminoso do lado de fora,
mas não tanto.
Levanto-me, tomo uma rápida
chuveirada, visto-me. Preparo uma xícara de café solúvel.
Quando o dia da maioria das pessoas
já está perto do final, o meu está no início.
Digo, três e meia da tarde era muito
cedo para mim. Geralmente, pulo da cama às cinco da tarde, para ir à aula.
Mas hoje tenho assuntos para
resolver antes de ir para a aula.
Como as casas lotéricas fecham às
seis, hoje sou obrigado a ir para a rua às quatro e meia, cinco horas, para
pagar a conta da luz e do condomínio. Já com a mochila, com meus livros e
anotações de aula, às costas. A maioria dos estudantes prefere bolsas e
valises; eu ainda prefiro mochila.
De lá, me encaminho para a
faculdade. E vou encontrando o pessoal que eu costumo encontrar nos fins de
semana.
Há muita gente que escolhe o horário
noturno da faculdade de medicina por necessidade – trabalha de dia, e só tem a
noite para estudar. E ocupa seus finais de semana estudando. Bem, na realidade,
a grande maioria das pessoas.
Eu sou uma das exceções.
Como eu disse, escolhi regular meu
relógio biológico para atuar à noite. E escolhi o curso noturno de medicina não
por necessidade, mas por gosto.
E aqui estou eu. A caminho da
universidade, sorridente, despreocupado.
O professor ministra as aulas com
cara de cansaço, já pensando em ir para casa. Ele tenta disfarçar, mas eu sei
perceber. Vários de meus colegas de curso – incluindo a beleza, digo, Cressida,
que mal dirigiu o olhar para mim em todo o período – também tem em mente cair
na cama assim que a lição do dia acabar.
Eu não.
Assisto a aula com interesse. Hoje é
mais uma lição de histologia. Mais um estudo sobre tecidos humanos.
Cada organismo vivo possui um ritmo
próprio. Há seres que, devido a partes essenciais extremamente sensíveis, como
os olhos, preferem agir à noite, com o mínimo de luminosidade. Preferem
substituir a visão plena pela audição aguçada, que lhes confere uma extensão
dos olhos. Cada organismo possui um ritmo próprio de metabolismo, necessidades
fisiológicas, pensamento, ação e reação. Há os seres que, dependendo das
condições oferecidas pelo ambiente, ficam mais rápidos, ou mais lentos; ganham
condições corporais para se confundir com a escuridão, se camuflando nas
sombras. E desenvolvem sentidos além da visão. Não é diferente com os humanos.
Ou seria diferente? Afinal, os
humanos podem se dar ao luxo de usar luzes artificiais. Luzes de lâmpadas,
luzes de postes, luzes de lanternas, luzes de aparelhos eletrônicos. Não abrem
mão da visão que funciona melhor na luminosidade plena.
Fosse eu um desses seres que
desenvolvem novos sentidos para compensar a visão...
Opa! Por um momento, perdi parte da
explicação do professor. Preciso ficar devaneando menos sobre assuntos que nada
tem a ver com o curso.
- Ei, Macário. – um de meus colegas
de aula me interpela, na saída da aula. Dez e meia da noite.
- Oi.
- Que achou da aula de hoje?
- Gostei. E você?
- Eu também. Nada mau.
- Parece que você não acompanha as
aulas de boa vontade...
- Não é que seja boa vontade. Eu que
estou meio cansado mesmo. Trabalhei muito hoje. Esse curso noturno é dureza,
mas, se eu quiser ser médico...
- Eu não acho dureza. Para mim foi
ótimo.
- Você não está cansado?
- Eu? Não.
- Claro que não... – outro colega da
sala chega atrás de nós, de surpresa. – É que o Macário aqui trabalha à noite,
sabe?
- Pois é, consegui. – respondi. –
Tem muita gente que trabalha no horário da madrugada. Eu também financio minha
faculdade com um trabalho noturno.
- E ele trabalha de madrugada porque
quis... Esse cara prefere sair à noite, sabe?
- Verdade?
- Geralmente é à noite que está a
diversão.
- Por isso que a pele dele é tão pálida.
Poucas vezes vejo ele saindo de dia.
- O que tem minha pele pálida? Sou
um vampiro aos teus olhos?!
- Não, só acho estranho. Não
atrapalha para estudar, cara?
- A mim não. Tenho como pagar a
conta de luz para estudar minhas lições à noite.
- E quanto você se formar? Só vai
pegar plantão noturno no hospital?
- Ué, sempre necessitam de gente
atendendo no plantão noturno. Para mim não tem problema.
- Bem, se você fosse rico, Macário,
fosse um playboy, não seria estranho você escolher dormir de dia e sair à
noite. Mas você não é rico, é da... hum... classe média. Aí é que é estranho. A
maioria prefere emprego diurno.
- Que problema tenho em ser
diferente desse modo? Tenho só um relógio biológico regulado de modo diferente.
Sou um vampiro, por acaso? Lobisomem?
- Não estamos dizendo nada, Macário.
Nós só achamos estranho, só isso. Apesar da diversidade de nosso mundo, todo
mundo tem de achar alguma coisa estranha no meio de uma fauna diversificada.
- Bem, vocês tem o que acharem
estranho, eu tenho o que achar estranho. Cada qual com sua opinião.
- E o que você acha estranho,
Macário?
- Depois eu digo. Agora, tenho de ir
para o trabalho.
E aperto o passo para a direção
oposta de onde os dois colegas estão indo. Eles vão dormir; eu vou continuar minha
noite.
Caminho calmamente, ainda com a
mochila nas costas, por uma parte bem iluminada do centro, onde o risco de ser
assaltado por seres noturnos é mínimo. Por “seres noturnos” entenda-se: os
assaltantes, assassinos, estupradores.
Aqui, os homens encarregados da
manutenção do sistema elétrico da cidade fazem um bom trabalho. Não deixam os
postes deixarem de iluminar meu caminho até o trabalho.
Não sou o único ser noturno...
apesar de ser apenas um ser humano normal. Há muita gente que prefere madrugar
durante a semana. Que prefere sair para beber e se divertir, mesmo em uma
madrugada de segunda para terça-feira, de terça para quarta-feira, de quarta
para quinta-feira, e assim por diante.
E é a esse tipo de gente que atendo
em meu trabalho noturno.
No bar, uma fachada luminosa. Uma
placa simples, iluminada com lâmpadas direcionadas em sua direção. Não é um
local luxuoso, como outros bares similares, apesar dos esforços de seu dono em
deixar o local apresentável para os clientes mais endinheirados. O espaço é
pequeno, em comparação a outros bares maiores na mesma rua, na mesma cidade.
Entro pela porta dos fundos,
cumprimento colegas de trabalho (dois garçons, além de mim, mais o dono do bar),
vou para o vestiário, onde deixo minha mochila e minhas coisas. Visto a meu
uniforme, ajeito a gravata borboleta, o avental. E vou para o balcão. Eu fico
com o balcão, o longo balcão de mármore, atrás de mim, as garrafas de
diferentes bebidas dispostas ao longo de uma prateleira. Dos uísques mais
fortes aos licores mais leves, que podem ser misturados. Os dois outros garçons
atendem as mesas, circulando por um espaço não muito grande, o espaço entre as
mesas com cadeiras e as de sinuca são estreitos.
Os primeiros ébrios noturnos começam
a chegar ao bar, dispostos a um copo de bebida. Cada um com um motivo para
estar aqui, diante de mim. Pessoas sofrendo por amor, ou trazendo seus amores
para beber junto (às vezes, são simplesmente prostitutas); buscando apenas
alguma forma de prazer (e tentando uma paquera com as mulheres que
eventualmente entram aqui); desiludidos com o emprego, ou com a falta de
emprego (espero eu não ter de passar por isso...). Ou simplesmente disputar
partidas de sinuca, a dinheiro ou só para se gabar.
Bem, não me incomoda tanto, na verdade, ouvir
as ladainhas dos bêbados. Meu trabalho é apenas servir quem paga por sua dose.
Tem quem peça o mais caro dos uísques e dos conhaques; tem quem peça uma
mistura de licores; tem quem peça apenas uma prosaica cerveja. Tem quem só peça
as fichas para destrancar a gaveta das bolas das mesas de sinuca, e não pedem
bebida. E tem os que pedem bebida para acompanhar a partida de bilhar. E tem os
que sentam solitários à mesa do canto, sem interagir com mais nada além de seu
copo, seu cigarro.
Eu não tenho como reclamar dos
bêbados que, apoiados precariamente sobre o balcão, insistem em contar tristes
histórias, enchendo muitas vezes minha paciência – as histórias, em geral,
costumam ser longas, e o narrador muitas vezes não consegue articular direito
as palavras.
Não tenho como reclamar, afinal, para o dono
do bar, esses bêbados chatos representam grande parte do faturamento.
Não tenho como reclamar, afinal, para mim,
esses bêbados chatos pagam o que ganho aqui, o salário com que financio meu
apartamento, minha luz elétrica, minhas refeições (meu pai apenas financia a
faculdade, lá da cidade onde atualmente está morando; com a condição de que eu
desse um jeito de financiar minha estada aqui – e, bem, é o que faço, e estudo
direito, não traio sua confiança em mim depositada de que me formaria médico).
Não tenho do que reclamar. Apesar da severidade e da ambição, o dono do bar
costuma ser um bom patrão, sempre nos orientando, sempre dando repreensões e
elogios na medida certa a quem trabalha com ele. Com os clientes, ele procura
ser o mais gentil possível, mas é severo com quem sai do controle e ameaça a
integridade de seu bar.
Não tenho do
que reclamar. Apesar do pagamento ser de um salário mínimo, mais as
gorjetas, dá para as contas acima relacionadas, e ainda sobra. Não sou tão
perdulário como a princípio pensam...
Não tenho do
que reclamar. No bar, costumam entrar pessoas exóticas, gente interessante,
os que preferem circular pela madrugada, em performances, em protestos, em
desilusões. O que conseguem, não se sabe como, eles usam para encher seus
copos. Usando ou não penteados exóticos, casacos de cores escuras, anéis,
piercing, coturnos, gravatas...
Eu não bebo. Não enquanto estou
usando essa gravata borboleta e esse avental – onde já se viu um garçom bebendo
em serviço?! Meu trabalho é apenas servir copos, limpar o balcão, secar as
gotas de bebida ou de saliva que deixam cair sobre o mármore, oferecer algum
aperitivo para o cliente não ter de beber de estômago vazio. Não raro aguentar
desaforos de quem bebeu além da conta. Mas atos violentos nunca aconteceram
enquanto trabalho aqui, há três anos. Ninguém ainda veio, de farra, quebrar o
bar, atrair a atenção da polícia. O dono sabe lidar com essas pessoas, ele sabe
intervir pessoalmente. Ninguém vai quebrar o bar dele. Ele sabe quando o
cliente já tem de ir embora, e o convida a sair.
Prostituição? Não, ele não trabalha
com isso. As prostitutas até entram em seu bar. Mas só se for para beber e
depois ir embora. Ou se estiverem acompanhadas por clientes pagantes. Elas não
podem oferecer seus serviços dentro do recinto. Esta é uma casa de respeito,
diz o dono do bar.
Eu tenho de observar e aprender: quem sabe se
eu não vá precisar fazer isso por conta própria, quando o dono do bar não
estiver aqui, por algum motivo.
E a atividade prossegue assim, até
as cinco da manhã, quando o bar começa a esvaziar. O dono anuncia o fechamento
das portas, os ébrios tem de sair, os jogadores de sinuca tem de deixar os
tacos onde estão. Eu e meus colegas garçons, agora, limpamos tudo antes de
sair. Algum vômito deixado, bebida derramada. Depois do bar limpo, e das
cadeiras suspensas sobre as mesas, eu tiro o avental, a gravata borboleta e,
pelo mesmo caminho, mochila às costas, volto para o apartamento. Os postes de luz
ainda não apagaram, mas está prestes a amanhecer.
Será que o barulho de gente abrindo
a porta da frente às cinco e meia da manhã atrai a atenção dos vizinhos? Sei
que devem estar me olhando ressabiados... O garotão que sai à tarde e só volta
de madrugada, faz uma rápida refeição, com o que tem na geladeira, e depois se
joga na cama e dorme até as quatro da tarde, fora as condições excepcionais...
Certamente devem pensar que sou um
playboy, um ébrio. Mas, se eu pago em dia o condomínio, para que a necessidade
de vigiar minha vida?
Deixe que pensem o que quiserem. Não
tenho do que reclamar. Aguardem pelo fim da semana, quando aí as coisas vão...
O próximo capítulo sairá dentro de 15 dias.
Como me saí até agora? Manifestem-se. Mais detalhes sobre a história deverão aparecer no decorrer da "programação".
Garanto que os próximos capítulos já serão mais movimentados... é só aguardarem. Continuem conosco.
Até mais!
Um comentário:
Muito massa!
Estou curioso para saber o que mais será revelado da vida do Macário.
E o que poderá acontecer na sua rotina noturna.
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