Hoje, enquanto escrevo, é domingo, e já cumpriu duas semanas. Hoje é dia de mais um capítulo de minha novela folhetinesca em texto, MACÁRIO. Com ilustrações.
Um aviso ao público que acompanha e tem a paciência de ler estes capítulos na tela do computador e do smartphone: a partir deste capítulo, a quantidade de ilustrações aumentou. No presente capítulo, serão sete ilustrações. Se puderem ler até o fim, tenho mais avisos para dar...
ADVERTÊNCIA: Não recomendado para menores de 18 anos. Contém cenas de violência.
Em vez de ir direto para o meu curso, resolvi,
em um impulso de aflição, correr até o hospital, a mochila às minhas costas
balançante a ponto de rasgar e derrubar todo seu conteúdo na calçada.
Queria entender a história toda, que foram me
contando a conta-gotas. Por que a Viridiana veio me procurar, só para me
atacar? Deixar aflorar seu ressentimento para comigo no possível sofrimento
pelo qual a Valtéria pode estar passando? Só havia um motivo de alívio naquele
momento: receber a notícia de que Valtéria estava bem, havia sido vista andando
pela faculdade. Não disseram se ela esteve atacando alguém, sugando seu sangue.
Só disseram que ela esteve na faculdade à minha procura.
Mas o que, exatamente, eu fiz para que a
Viridiana, parceira de quarto de Valtéria e minha ex-parceira de sexo, viesse
me agredir? Dizer que eu “influenciei sua mente”?
Viridiana e os dois colegas, que estavam
comigo no momento em que recebi as notícias, foram atrás de mim.
Valtéria foi atacada. Como assim? Numa hora,
disseram que estava bem; noutra, que estava no hospital. Não ia conseguir fazer
mais nada nesta vida se não conseguisse compreender toda essa história. Se não
conseguisse ao menos ver Valtéria.
Na portaria do hospital, dei de cara com
Maura, a enfermeira. Quase colidimos.
- Uoah! Macário! Puxa, de novo, hein?!
- Maura!
- Conseguiu descansar nesses dois dias?
- Não! Ainda mais agora!
- Hein?
- A Valtéria! Disseram que ela voltou aqui
para o hospital!
- Ah... a sua loira? A garota com quem...
- Não enrola, moça! Onde está ela?! – gritei,
agarrando os braços de Maura. – Por que todos hoje estão tirando para esgotar
minha paciência?! Por que ninguém me explica logo o que está acontecendo?!
- Macário, o que está fazendo com ela?! –
grita Viridiana, atrás de mim.
- Por favor, não me morde!... – exclama
Maura, com olhar de piedade, amedrontada.
Quando percebi o que estava fazendo – já
estava a ponto de tentar quebrar os braços de Maura – parei e procurei me
acalmar. Respirei fundo. E soltei Maura. Como assim, “não me morde”? Eu já
estava assumindo o olhar feroz de vampiro?!
- Ahn... desculpe, Maura... Estou nervoso,
e...
- Puxa, Macário... – ela falou, assustada. – Você
queria quebrar meus braços?! É tanta preocupação assim com a sua loira?
- O nome da “loira” é Valtéria! – exclama
Viridiana.
- Ah, você também a conhece, moça? A loi...
digo, Valtéria? – pergunta Maura, se dirigindo a Viridiana.
- É minha amiga. – responde esta, séria. –
Minha colega de quarto. Amiga de infância muito querida...
- Bem, que me importa saber disso... e que
importa para ele? – responde Maura, galhofeira, me olhando de soslaio. Se
recuperara rapidamente do susto, menos mal. – Para ele, é só mais uma garota,
não? Como eu, que também caí nas “garras” dele...
- Você?! Você... com esse canalha?! – exclama
Viridiana, com sincera indignação. – Você com esse... assassino?!
Assassino?! Agora Viridiana pegou pesado.
Está bem, quando saímos e transamos, não foi um evento feliz, do qual até mesmo
eu não gosto de lembrar (mas não que tenha sido a pior experiência; no máximo,
foi só uma das piores), mas para que descontar em mim depois de pouco mais de
um mês? Tão duradouro assim é esse rancor? Eu te engravidei, Vi, é isso?
(engoli em seco só de pensar nisso...) Não, não a engravidei não, eu lembro que
usei três camisinhas na ocasião, sim (não todas de uma só vez, é claro, uma
para cada “investida”), e tenho certeza de que nenhuma estava furada. E a
barriga dela, enxuta e exibindo músculos de ginástica, nem se mostrava crescente,
arredondando aos poucos, nem o piercing começou a saltar para fora do umbigo...
Vou te contar, se dependesse dessa garota, e desse olhar de indignação, ou
mesmo dessa gritaria toda, eu nem estaria mais na faculdade, seria uma persona non grata aqui.
- Assassino? – pergunta Maura. – Como assim,
assassino? Isso o Macário não é, ele pode ter seus defeitos, mas assassino ele
não é...
- Claro que é! Um assassino, criminoso,
ladrão de corações! Um canalha! Um...
- Vi!!! – intervi na conversa. – Por favor! Se
eu não entender a história, como saberei do que você está falando?! Como assim,
influenciei a mente da Valtéria? Como assim, assassino?!
Mas a resposta não veio de imediato: fomos
interrompidos de novo.
- O que está havendo aqui? – falou um médico,
vindo até a portaria do hospital. O mesmo médico que fez o diagnóstico quando
saí do hospital.
- Doutor! – vim até ele, aflito. – A garota
que foi atacada junto comigo! Soube que ela voltou para cá, e...
- Atacada?! Junto com você?! – foi a vez de
Viridiana exclamar. – Aah, eu sabia, assassino, que você teve algo a ver com o
comportamento estranho da Valtéria! E com o ferimento no pescoço dela, seu...
- Compor...
- Acalmem-se, todos! – ordenou o médico. –
Estamos em um hospital, sabiam?! Se puder passar em minha sala, meu jovem,
poderei ir respondendo todas as perguntas que eu puder responder. Aliás, foi
bom você aparecer, quero mesmo dar uma olhada na ferida em seu pescoço...
Segui o médico até seu consultório
particular, Maura atrás. Viridiana foi orientada a esperar na recepção. Se
acalmasse, tomasse uma água. Aí, quem sabe, ela pudesse responder às perguntas
que eu tinha. Ainda bem que não tinha mais ninguém na recepção naquela hora.
Pelo jeito, a saúde na cidade – e no país – passava por um bom momento: ninguém
esperando por atendimento naquela hora, no Hospital Universitário, público. Os
que vieram para serem internados, já foram internados. Estava tudo muito
tranquilo naquele ambiente hospitalar. Decerto daqui a alguns minutos aparece
alguém, mas ninguém para assistir ao espetáculo insano que Viridiana estava
promovendo. Quer dizer, apenas a recepcionista ali no balcão junto à porta, mas
ela, por dever profissional, se manteve indiferente a uma acusação de
assassinato – sem haver, formalmente, assassinato. Ora, assassino...
A porta do consultório foi fechada – só o
médico, Maura e eu lá dentro. A mochila repousava em cima de uma cadeira extra,
nenhum sinal de danos por causa da corrida. Enquanto descolava a atadura em meu
pescoço e examinava as marcas (na atadura em meu nariz ele não mexeu), o médico
ia contando:
- Bem, foi uma surpresa quando a moça deu
entrada no hospital de novo, três dias depois de fugir do leito. Deu entrada
hoje à tarde. E desta vez voltou com ferimentos maiores que os de domingo.
- Ferimentos?!
- Ela estava com arranhões e mordidas enormes
por todo o corpo. Arranhões e mordidas feitos por animais.
- Arranhões... de... – estava assustado, os
olhos prestes a saltar das órbitas de tanto que os arregalei.
- Foi a amiga dela que a trouxe, desta vez.
Digo, foi ela quem chamou a ambulância e veio com ela para... Hã, parece que é
aquela mesma, a que estava gritando com você. – foi a vez de Maura contar. –
Veio contar que a encontrou toda machucada, perto de uns animais mortos. Ela
diz que foi impressionante.
- Impressionante como?!
- Aparentemente, foi a loira quem matou os
animais, com as próprias mãos. Foi o que a moça amiga dela disse. Não, mas eu
não acredito que tenha sido ela, não mesmo. A loira lá não tem jeito de quem
pode fazer cinco cães e três gatos de rua em pedaços, e com as próprias mãos.
Cinco cães? Três gatos? Com as próprias
mãos?! Não é possível que...
- Fique tranquilo, rapaz. Deve ser boataria,
sensacionalismo. Ela decerto foi é atacada pelos animais raivosos, e alguém os
tenha matado quando foi salva-la, indo embora logo depois, digo, se é verdade
que os animais também foram mortos. Mais um mistério, hein? Ah, ah... – ele riu
de novo, daquele jeito que eu já odiava. – Além do mais não foram ferimentos
tão graves. Os cortes na pele foram mais superficiais. Apenas o caso de fazer
uns pontos, uns curativos... Mas ela está em condições de sair andando sozinha,
apesar de ela ter ficado praticamente feito uma múmia, fique tranquilo.
- Isso é motivo para ficar tranquilo?! – pergunto,
indignado.
- Como não? Se ele tivesse mesmo matado
aqueles animais, né...? Ou se ela tivesse sido devorada pelos animais... Mas
ela está viva, não é mesmo? Bem... mas e quanto a você? Manifestou já algum
sinal de...
- Não. Nada. – respondi com toda a calma que
pude encontrar dentro de mim. – Fiquei em casa três dias e não sinto nada
errado. Estou comendo e bebendo normalmente, comida normal. Não matei nem os
meus pais, nem nenhum animal inocente. Errado mesmo, só o ferimento no pescoço,
o vazio no coração – suspirei – e a atitude de algumas pessoas perto de mim. Mais
alguém sabe que...?
- Não. O que aconteceu com vocês fica apenas
entre nós quatro. Você, eu, o doutor e a tua amiga escandalosa. – responde
Maura. Respondi com um suspiro aliviado, e ela continuou, em voz mais baixa: –
Vem cá: você saiu com ela, não saiu? Com a garota que te chamou de assassino...
- Saí... saí, sim. Viridiana. – confirmei. – Foi
há... um mês.
- Cara, ela deve estar ressentida mesmo. Que
você fez para ela?
- Eu? Foi ela que fez para mim. E deve estar
pensando que fui eu que fiz. Só se eu a engravidei e ela não quer me contar.
Assassino, eu? O mais que fiz diante dela foi dar uma chinelada em uma barata
que invadiu a minha cozinha... – tentei rir desta piada que até eu achei fraca,
mas não consegui acompanhar Maura e o doutor, esses sim deram boas risadas.
- Não, gravidez também creio que não. – disse
Maura, ainda rindo. – Ela não veio com jeito de que quer que você assuma a
paternidade do filho...
- Deus me livre!
- Deixemos isso de lado. – interrompeu o
médico. – Bem, essa história de vampiros, mordidas e etc., fica apenas entre
nós. Para a polícia, que também está a par de tudo, mas não de tudo, tudo... há
hipóteses mais. Já chegaram a aventar que a moça foi capturada e foi vítima de
tortura por sádicos, o que pode ser uma boa explicação. A forma de tortura
escolhida teria sido soltar cães e gatos famintos em cima dela, que acabaram
sacrificados. Explicações plausíveis para o que aconteceu não faltam. Mas
estamos tentando fazer o possível para que o caso não caia na imprensa, na boca
do povo, então, não há com o que se preocupar, em um primeiro momento. O caso,
sabe? É que ultimamente ando atendendo uns casos muito esquisitos. O seu e o da
menina são apenas alguns deles.
- Esquisitos? Tipo... mais ataques de...
vampiros? – decerto, as rugas em minha testa ficarão para sempre ali, depois
dessas notícias todas.
- Não. Digo, não sei direito. Está havendo
casos de gente que entra no hospital com ferimentos inexplicáveis. Eu mesmo
tratei alguns desses casos. Mas esses casos não estão vindo a público,
felizmente, são raros. E também, a maioria dos atacados acaba morrendo e
levando a explicação para o que aconteceu para o túmulo, logo é fácil dar uma
explicação qualquer para a morte, a menos que resolvam pedir necropsia. Melhor
não comentar com ninguém o que estamos comentando com você.
- Hum... pode deixar, doutor, saberei
guardar... hum... segredo. A... A Valtéria ainda está aqui?
- Se ela não tiver fugido de novo... –
respondeu ele. – Bem... ela está no leito. Ela teve de tomar uma dose forte de
calmantes. E ainda vai ter de explicar o porquê de ter fugido do hospital na
segunda-feira. Mas dificilmente terá como fugir sem ser percebida, enfaixada
daquele jeito...
Eu já estava ficando apreensivo. Não é
possível que a Valtéria tenha manifestado sintomas de vampirismo! Cinco cães e
três gatos trucidados?! Talvez a Viridiana possa explicar...
- É, rapaz, as suas marcas estão se curando
aos poucos. Melhor deixar esses curativos por mais algum tempo. – confirmou o
médico. – O do pescoço e o do nariz.
Confuso, resolvi jogar a mochila nas costas e
sair do consultório. Porém, mal abri a porta, levo um susto. O doutor e Maura
levam um susto ainda maior.
Dois braços envolvidos em faixas me envolvem.
- MACÁRIO!!! – foi o grito que acompanhava.
Valtéria me abraçou, apertado. Ela deveria
estar no leito, mas não, estava ali, na porta do consultório do médico, me
abraçando. De alguma forma, soube que eu estava aqui. Será que na verdade ela
estava no quarto ao lado e ouviu minha conversa com o médico?!
- Macário...
A coitada estava com ataduras envolvendo
várias partes do corpo, e algumas não estavam visíveis por causa da camisola
hospitalar, a única coisa, além das ataduras, que cobria seu corpo. Os braços
estavam quase inteiramente envolvidos, só deixando os cotovelos livres, as
ataduras dando voltas nas mãos também. Haviam curativos grudados nas maçãs de
seu rosto. E haviam manchas vermelhas em alguns pontos dessas ataduras. Havia mais
faixas, com manchas vermelhas, nas pernas e em volta da cabeça. E, demonstrando
que estava no leito, a moça vinha, ainda, arrastando o saquinho de soro no chão,
o tubo e a agulha ainda presos na dobra de seu cotovelo esquerdo.
- Macário, meu amor... Como eu queria te
ver... onde você esteve?!
Fiquei paralisado por um momento. Minha
mochila caiu no chão. Mas, no fim, em um misto de alívio por vê-la viva e de
pena em vê-la naquele estado, acabei abraçando-a, também, ternamente. O abraço
que ela devolvia era igualmente terno e quente.
- Valtéria!
- Macário...
- Estou feliz que esteja bem...
- Não... eu que estou feliz que esteja bem...
- Estive tão preocupado com você... Você
ficou em perigo por minha causa...
- Onde você esteve, meu Macário?! Nunca mais
suma das minhas vistas, viu?!
Essa não: ela realmente se apaixonara por
mim. Mas sentia algo estranho nessa
afeição. Apesar de aliviado por ver Valtéria viva, uma possível paixão por
aquela loirinha machucada foi bloqueada... Estive preocupado com ela,
sinceramente, mas...
- Ei, ei, ei! – exclama o médico atrás de
mim. – Garota! O que você está fazendo fora do leito?
- O Macário está aqui... eu ouvi a voz
dele... – Valtéria exclama, apertando-me em um abraço que começou a me sufocar.
– Sabia que ele ia voltar. E ele não vai embora! Não!
- Não! – foi a vez de Maura exclamar. – Você
deveria estar sedada! Aqueles calmantes todos...
- Que calmantes?! – disse Valtéria, me
soltando, afinal, e lançando um olhar atemorizante. – Nenhum calmante vai me
impedir de ver o meu Macário! Eu fingi que tomei, escondi os comprimidos sob a
língua e cuspi tudo, ah, ah... – e complementou o olhar terrível com um sorriso
malvado. Porém, nenhuma presa entre aqueles dentes brancos.
Foi apenas por um breve meio segundo que
consegui respirar.
- Mas o quê?... – disse Viridiana, chegando
até a porta do consultório, já impaciente de ter de aguardar notícias. –
Valtéria?!
- Vi! – exclama Valtéria, agarrando meu
braço. – Você viu, não?!
- Macário, insisto! – exclama Viridiana. – O
que você fez com minha amiga?! Desde segunda-feira ela está assim, louca por
você!!
- Eu... – balbuciei. – eu... eu também estou
querendo entender, Vi. Nós...
- Deixe que eu fale... – interrompeu Valtéria,
olhando maldosamente para Viridiana. – Eu fiquei com ele. Você disse para eu
ter cuidado com ele, Vi, para não cruzar o caminho dele, que ele é, como você
disse mesmo?! Ah, um “lobo”... mas eu não te ouvi. Fui falar com ele... Fui
para o apartamento dele... Caí na lábia dele, e ele caiu na minha... Ele disse
que eu sou gostosa... E nós fizemos amor. O domingo todo. Ele é muito bom de
cama. Isso eu já devo ter te contado, não contei?
- Ele... – começou a balbuciar Viridiana, com
indignação.
- Você ainda gosta dele, certo? No fundo,
você ainda gosta muito dele, certo? – ela continuava sorrindo doentiamente. – Você
olha para ele com esse típico ódio de mulher que foi enganada, grita com ele,
pensa que eu não ouvi?! Você o chama de lobo, e não quer admitir que a noite
que você passou com ele foi a melhor de sua vida. Fica falando mal dele, mas no
fundo ainda quer dar pra ele, quer
outra noite com ele, né? Mas você desperdiçou este homem maravilhoso, Vi. Você
não ficou com ele porque não quis. Saiu no vento, perdeu o assento... Ah, ah...
Agora ele é meu, e vou casar com ele.
Oh, não. Valtéria ficou louca!
- C... casar?! – eu disse, apavorado. – Você
disse que era brincadeira...
- Agora é sério, Macário. Vamos casar. Agora
eu quero casar com você.
- Não, você não vai! – exclamou Viridiana. –
Não comece com essa história de novo, Valtéria! Você não vai ficar com esse
canalha! Ele não vai te fazer feliz! Ele vai é te trocar por outra garota! Para
ele, é uma garota por final de semana! Ele nem te ama! Ele...
- Pessoal! – exclama o médico. – Por favor,
estamos em um hospital! Modos! O que está acontecendo, afinal? Que conversação
é essa?!
- Oh, Macário, por que você me abandonou? Por
que você foi embora do hospital antes de eu poder ver você? Por que você fugiu
do hospital?! – pergunta Valtéria, se abraçando ainda mais em meu braço.
- Eu?! – exclamei. – Você fugiu do hospital antes que eu pudesse te ver! Você que andou
me matando de preocupação, garota!
- Você... ainda estava no hospital quando eu
saí para te procurar?! – Valtéria fazia cara de ponto de interrogação. – Pensei
que você já tinha saído...
- E fugiu do hospital! – Maura entrou na
conversa, aproveitando também para pegar o saco de soro do chão e mantê-lo
erguido para evitar que escapasse. – Quando fomos ver, sua cama estava vazia...
Não me diga que você pulou a janela do hospital e saiu pela rua só de camisola
hospitalar... E ainda bem que o quarto ficava no nível do chão, se fosse no
andar superior... Só me pergunto como ninguém te viu daquele jeito...
- Eu vi. – responde Viridiana. – E creio que
só eu vi, Ela teve sorte de só eu ter visto. – e dirigindo-se a mim: – Sabe,
Macário... Recebi um telefonema, na noite de domingo, dizendo que ela foi parar
no hospital, com um ferimento no pescoço, que perdeu muito sangue... E, no
final da tarde de segunda, ela me aparece no nosso apartamento, vestindo apenas
camisola de hospital, descalça, suja... E não me explicou nada. Resolvi
encobrir esse fato, e deixar que ela ficasse no alojamento, escondida. Mas,
durante os dias seguintes, ela faltou ao trabalho e ao curso dela, ficava
perambulando pela universidade, te procurando. E, quando estava em casa, só
ficava falando a respeito de você. Ela ficava me contando sobre você na cama,
que você era bom amante, etc. No que eu não acredito. – Aqui, Valtéria fez um
muxoxo. – Não depois da noite que passamos juntos... Maldito sábado que resolvi
incluir a Valtéria na nossa turma para ir até a boate!! Ela já não bate bem da
cabeça, Macário, você deve ter visto que ela tem alguns problemas mentais, que
ela tem algumas atitudes irracionais, por isso me preocupo com ela... E sabe o
que ela fez, esta tarde? Quando eu pensava que ela havia melhorado e ia
trabalhar... Ela faltou de novo ao trabalho, recebi um telefonema do trabalho
dela perguntando se ela estava doente, porque ela não apareceu de novo... Tive
de sair do meu trabalho para ir atrás dela. Eu a encontrei por acaso, por
sorte. E sabe como a encontrei? Em um beco... toda ferida, mordida, a roupa
toda rasgada, nua, suja de sangue... e, em volta dela, uma porção de cães e
gatos esquartejados! Contei cinco cães e três gatos, pelas cabeças... E ela
ainda estava lambendo o sangue do corpo! Ela estava lambendo o sangue dos cães
e gatos que cobria seu corpo! Ela estava feito a Carrie, a Estranha, já
assistiu o filme? Lembra a cena que ela ficou suja de sangue? Se você tivesse
visto como a minha amiga aí praticamente ficou retalhada... Bem, tive de
levá-la ao hospital... E agora está aí... Ainda bem que não falei nada ainda
aos pais dela...
Comecei a ficar ainda mais apreensivo. Não,
não assisti o filme da Carrie, só vi algumas fotos da tal cena da menina
coberta de sangue, mas é suficiente para poder imaginar a cena.
Valtéria não esboçou reação à narrativa; eu
suava frio, e Maura, com a mão na boca, já demonstrava ânsia de vômito. O
médico estava imóvel, mas tão apreensivo quanto eu.
- Só pode ter sido você, Macário... –
continuou Viridiana, com o olhar enviesado para mim. – Você foi o último com
quem ela esteve! Fale: foi você que feriu o pescoço dela?!
- Eu?! Vi, claro que não! Eu também fui
atacado, também tive o pescoço ferido, está vendo a atadura?! – exclamei,
afastando a gola do pescoço. – E te garanto que não fui eu quem...
Viridiana não me deixou terminar:
- Sabe, Macário, essa moça aí tem problemas
mentais, já devo ter dito. E eles se acentuam depois que ela faz sexo! Ela se
comporta de uma forma estranha toda vez que tem noites de sexo com homens... E
eu tenho de ficar de olho nessa maluca, sou a única pessoa em quem ela pode
confiar... E agora, você influencia ainda mais a mente dela! Você foi quem mais
a influenciou a fazer loucuras! Agora está aí... louca por você, e machucada!
Engoli em seco.
- Bleh! – foi a vez de Valtéria se manifestar,
com desdém pela indignação de Viridiana. – Você tem raiva do Macário não por
causa de mim, mas porque está com inveja porque quer dar pra ele e não pode! E você, Macário... você me deixa sozinha
neste mundo hostil, como pode?! Verdade que você não me ama de verdade?! Olhe
só o que os cãezinhos fizeram comigo, com meu corpo... Peraí...
Dizendo isso, ela tira a agulha do soro do
braço e depois a camisola. Levo um susto, chego a cobrir os olhos, mas acabei
olhando. Todos ali se assustam com o ato tresloucado dela de tirar a camisola
na frente de todo mundo, e talvez ficar nua diante de duas mulheres e dois
homens, mas não havia motivo para tanto. O tronco estava cheio de bandagens,
havia faixas cobrindo os seios, a barriga e a virilha. Os braços e as pernas
também estavam quase todos cobertos, só os joelhos e os cotovelos livres para
desimpedir os movimentos, mas com curativos quadrados em cima. Valtéria parecia
mesmo uma múmia, como o médico havia descrito. Uma múmia egípcia recém-embalsamada
e enfaixada para repousar no sarcófago. Exceto o rosto, o cabelo, o umbigo e as
articulações, cada canto do corpo de Valtéria estava enrolado em
esparadrapo.
- Fui ferida por cachorrinhos e gatinhos,
Macário. Eles tentaram me devorar, e não sei por quê. Mas eu os peguei
primeiro, tive de pegá-los primeiro, ah, ah... Não sei como, mas eu os peguei.
Quando dei por mim, os cachorrinhos e os gatinhos estavam todos mortos.
E ela falava isso com a demonstração de
satisfação típica de um psicopata.
- Mas... mas tem certeza de que foi... foi...
- Só pode ter sido ela mesma, não havia mais
ninguém naquele beco! – disse Viridiana. – E que sorte dela que fui a primeira
a chegar ali e ver o beco todo sujo de sangue, e ela em pé sobre aquele monte
de partes de animais... Só pode ter sido ela, tenho certeza!
- Não... – interferiu o médico – Talvez tenha
sido outra pessoa que matou os cães e os gatos...
- Mas ela estava lambendo o sangue! Eu vi!!
- Eu estava? – pergunta Valtéria, se fazendo
de confusa. – Não lembro se estava lambendo sangue... Não lembro se fui eu quem
matei os animaizinhos, ou se alguém o matou, mas... Se foi alguém, Macário, por
que não foi você?! Por que você não estava lá para me proteger?! Onde você
esteve todos esses dias?! Por que me deixou sozinha neste mundo cruel?! – e ela
se abraçou ainda mais a mim.
Esse exibicionismo já estava me deixando
nervoso. Realmente, Viridiana tinha razão: Valtéria tinha problemas mentais (me
fez lembrar que, na noite em que fui agredido, quando ela me beijou, também
lambeu o sangue que escorria de meu nariz). E, certamente, Viridiana partilhava
desses mesmos problemas mentais. Era inacreditável essa história. Me agarrei à
hipótese de que foi outra pessoa quem despedaçou os animais, não Valtéria. E
procurei retornar ao ponto onde a conversa parou.
- Valtéria – falei, com calma, voltando para
ela – eu também estive me recuperando. Estava muito machucado, você mesma viu.
- Por que você fugiu do hospital, Macário,
enquanto eu estava dormindo?!
- Perdão, moça – interrompeu Maura. – Foi
você quem fugiu do hospital antes dele. Quem te disse que ele saiu do hospital
antes?!
- Eu... Eu... Eu devo ter sonhado que me disseram
que ele fugiu do hospital e...
- Moça! Ponha a camisola de volta! – exclama
o médico. – Onde já se viu, se exibir assim na frente de um homem!
- E praticamente confessa que foi você quem
matou os cães! Isso se não foi alguém, mesmo! Que bom que está viva e andando,
hein?! – exclama Maura.
Valtéria recolocou a camisola, de má vontade.
Um filete de sangue escorria da dobra do cotovelo, do ponto onde ela tirara a
agulha do soro.
- Macário, vai explicar o que está
acontecendo ou não?! – exigiu Viridiana.
- Explica não, Macário... – diz Valtéria, se
agarrando de novo no meu braço. – Em vez disso vamos pro meu leito e vamos
fazer amor de novo, aqui mesmo, no Hospital...
O consultório inteiro gelou.
- Valtéria! Pare com isso! – se manifesta
Viridiana.
- Vai, Macário, diz que sim... Vamos, eu tiro
todas essas faixas e...
Aquilo tudo estava me dando gastura, estava
me incomodando bastante. Era muita coisa para minha cabeça. Já estava ficando
vermelho. Estava certo de que não estava no hospital da universidade, estava em
um hospício, na Casa Verde de Simão Bacamarte (ver “O Alienista” de Machado de
Assis).
No fim, resolvi simplesmente me desvencilhar
dos braços de Valtéria, jogar de novo a mochila nas costas e sair daquele
consultório. Simplesmente dei as costas, suspirando, e me dirigi até a porta,
sem gritar nem dizer nada (gritar em hospital não pode, certo?).
- Macário?!...
- Valtéria. – disse.
- Macário!...
Olhando de soslaio para todos os presentes naquela
sala, atônitos, falei, com frieza:
- Valtéria, por favor, fique aqui no hospital
e descanse. Tome os calmantes, recoloque a agulha do soro, repouse e se recupere
desses ferimentos. Aí conversamos. Viridiana... você, principalmente. Quando
estiver de cabeça fria, me procure e vamos conversar. Fique de olho na sua
amiga e não deixe ela fazer bobagem. Quero entender a história tanto quanto
você. É tudo o que eu te digo. E... Doutor, obrigado. Obrigado, Maura. Ficarei
agradecido se nada disso cair na boca do povo. E mais ainda se não descuidarem
dessa moça aí.
E saí da sala, sem olhar para trás, ignorando
os gritos de Valtéria e Viridiana. Na portaria, dei de cara com os dois
colegas, que não nos seguiram até o consultório.
- Macário?
- E aí, como foi?
- Rapazes... vamos para o curso. Já perdi
muita aula e muito tempo.
E saí do hospital, sem olhar para trás. Os
dois colegas não falaram nada até chegarmos ao prédio do curso de Medicina. Nem
depois.
Estava decidido a seguir minha vida, pura e
simplesmente, independente das transformações, em meu corpo e minha mente,
pelas quais percebia que, aos poucos, estava passando.
O próximo capítulo será indubitavelmente, em 15 dias, já que o próximo domingo será dia santo - inapropriado para publicar capítulos de um folhetim profano...
Ah: e quem acessar o capítulo anterior, de número 5, terá uma surpresa: duas ilustrações inéditas! É provável que novas ilustrações sejam inseridas nos capítulos anteriores, mas avisarei vocês. Mas continua o aviso acima: a partir de hoje os capítulos de MACÁRIO terão mais ilustrações - hoje foi sete, e o capítulo 5 passa a ter seis.
Mas, e aí, como estou me saindo como escritor de ficção longa? Continuo ou paro?
Até o próximo episódio.
Até mais!
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