Hoje, domingo, e já cumprindo duas semanas, é dia de novo capítulo de meu folhetim ilustrado quinzenal, MACÁRIO. Chegando com mais ilustrações - e a história cada vez esquenta!
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de consumo de bebidas alcoólicas.
Horas depois do incidente no hospital e da
aula na faculdade (que foi tranquila, ninguém parece ter se importado pelos
três dias que fiquei ausente, faltas de alunos são naturais), fui para o bar
(trabalhar).
Estive tentando esfriar minha cabeça após os
últimos acontecimentos. Não pensar em nada. Nem em Valtéria, nem em Viridiana,
nem em Maura, nem em Créssida, nem em garota nenhuma, para o raio que o parta
com qualquer mulher neste momento. Essas mulheres só criam problemas para mim.
Nem prestei atenção no que o dono do bar
falou comigo quando cheguei e apresentei o atestado médico, se era sermão pelos
dias em que faltei ou palavras compreensivas pelo atentado que sofri. Duvido
que ele estivesse realmente preocupado comigo. Nunca vi patrão realmente
preocupado com seus empregados. Mas talvez a atadura em meu nariz tenha o
convencido.
Quem demonstrou preocupação genuína foram
mesmo os meus dois colegas garçons, que me fizeram perguntas enquanto eu me
vestia para trabalhar. Que aconteceu, Macário, parece que levou uma surra,
Macário, estava em casa nesses três dias, e aí, Macário, com quem você saiu,
etc. Para cada pergunta, fui dando respostas curtas e evasivas: ah, eu estava
de licença médica, levei uma surra de bandidos, sim, eu fiquei em casa, prefiro
não comentar sobre isso.
Ah, que importava tudo, se o patrão foi
indiferente, se meus colegas estavam preocupados comigo? O que me restava,
mesmo, era trabalhar, compensar o tempo perdido me recuperando daquela surra e
me preocupando com aquela maluca da Valtéria. Pensar que me deu pena vê-la
inteiramente enfaixada. Ora, onde já se viu, “vamos fazer amor aqui mesmo, no
hospital”...
Talvez Viridiana tivesse mesmo razão, eu não
a amava de verdade. Estive preocupado com ela, mas não apaixonado. Ela estava
bem, e era tudo o que me importava, mesmo. E daí que ela estava com o corpo
todo enfaixado, devido aos ferimentos que recebeu ao ser atacada por cães e
gatos de rua? Nesses três dias ela estava no alojamento universitário dela,
ironicamente “fora da casinha”. Estava viva, respirando, andando. E eu, fechado
no meu apartamento, por três dias, angustiado, me torturando. Ainda por cima, me
vem com essa história de que trucidou cinco cães e três gatos. E ainda vem a
Viridiana me chamar de assassino, como se eu que tivesse transformado sua
amiguinha em vampiro ou algo assim. Mulheres...
Me lembrei do que o pajé Mateus me disse na
noite em que fui agredido. Apesar de minha vida de luxúria, eu era controlado o
suficiente para me preocupar com o bem-estar de outras pessoas. Mas, pensando
em Valtéria, fiquei me sentindo um trouxa em ser assim, preocupado com as
pessoas além de mim. Preciso esfriar a cabeça.
Quer saber? Melhor sair neste final de semana
e arranjar outra garota. Uma que não me conheça, não me chame de assassino, nem
goste de devorar hambúrgueres e nem cães de rua. Comecei a me sentir melhor
quando comecei a reunir, dentro de mim, o meu cinismo. Acho que vou dar uma
chance para aquela menina cheinha que estava na boate junto com a Valtéria e a
Viridiana... E só espero que não me apareça nenhum perigo que eu acabe me
intrometendo a enfrentar – mesmo que envolva a garota da noite.
Maquinalmente, enquanto assim pensava, vesti
o avental e a gravata borboleta, que escondeu a ainda vistosa atadura no meu pescoço.
E fui para o balcão.
Até eu fiquei surpreso quando saí de trás da
porta que levava ao balcão...
O bar estava, estranhamente, bem cheio,
lotado, todas as mesas com gente, o balcão cheio de gente acotovelada, e ainda
havia gente em pé, ao redor das mesas de sinuca. E isso que o bar mal tinha
aberto.
E o mais estranho: todo o bar silenciou no
momento em que eu apareci. Todos voltaram sua atenção para mim.
O que andou acontecendo enquanto eu não
estava? Era muito até para nós, garçons, em três para atender os clientes. Além
do mais, aquela gente toda era diferente, esquisita. Gente que eu não tinha
visto antes. Seriam novas turmas da universidade? Não, não tinham jeito de
bixos universitários. Pareciam... pareciam...
Procure não pensar em nada, Macário. Apenas atenda
todos eles.
Respirei fundo, e me postei no balcão, para
atender os pedidos. Contei seis pessoas, quatro espremidas na frente e uma em
cada canto, acotoveladas no balcão retangular onde, confortavelmente, podiam se
acomodar três pessoas na parte frontal, de ponta a ponta. Da minha direita para
a esquerda, eram: um sujeito de barbicha e cabelo penteado para trás, tão
alisado que arredondava sua cabeça; um sujeito de casaco jeans surrado, trancinhas
dreadlock e óculos escuros; uma mulher de rosto delicado usando cabelo estilo
mullet tingido de cor-de-rosa; uma outra mulher de cabelo preto escorrido e
brilhoso e pele pálida; um careca de expressão agressiva, de casaco de gola
felpuda com uma grande tatuagem no rosto; e um grandalhão, barbudo, usando um
grande casaco felpudo, cuja cor clara criava o necessário contraste com a barba
e o cabelo castanhos.
Eles só me olhavam, não mexiam um músculo
sequer. E, pelo olhar que dirigiram a mim, todos pareciam sedentos, não de
álcool, mas do meu sangue, se eu não os atendesse direito. Aquele silêncio todo
era angustiante. Creio que meu engulho, em seco, tenha reverberado pelo
ambiente.
Suando frio, me manifestei:
- O que vai ser hoje para vocês?
Quebrando o silêncio, o primeiro, o da
barbicha, se manifestou:
- Um conhaque.
E seguiram-se os outros, um após o outro, da
minha direita para a esquerda, até a outra ponta do balcão:
- Uma cerveja, da mais cara que tiveres. –
disse o cara do dreadlock.
- Um margarita para mim, e capriche no sal na
borda da taça. – disse a moça do mullet rosa.
- Uma
dose de licor, e de preferência, o mais vermelho que você tiver. – disse a moça
do cabelo escorrido.
- Uma caipirinha, e capriche no limão. –
disse o careca da tatuagem.
- Para mim, um whisky on the rocks. – disse o grandalhão.
Respirei fundo. E me voltei para a
prateleira, pegar as respectivas garrafas para servir.
Eu sentia medo. Eles deveriam estar avaliando
meu serviço. Então, vamos nos esforçar para fazer tudo direito.
Bem, fazer drinques fazia parte de meu
trabalho, o bar oferecia em seu cardápio esses drinques mais sofisticados,
tinha os ingredientes e o dono treinou seus atendentes para preparar esses
drinques... as garrafas de tequila, conhaque, uísque, vermute e outras bebidas
não estavam naquela prateleira às minhas costas como mero enfeite do bar. As
receitas eu já sabia de cor, era meu dever saber de cor, e eu sabia preparar
cada uma de uma maneira até razoável, de modo que o cliente sequer reclame. Eu,
pelo menos, nunca recebi uma reclamação acerca de meus drinques. Porém isso nem
tornava este bar famoso, sabe-se lá se nossas margaritas, nossas caipirinhas, manhattans, cubas libres, mojitos, dry martínis e outras “frescuradas” eram consideradas as melhores da
cidade... Nenhuma notícia de algum crítico de gastronomia ou de baladas que
tenha escrito a respeito de nosso bar, elogiando ou falando mal...
Com um pouquinho de tremor nas mãos, virei de
costas para os clientes e, sem olhar para eles, fui pegando os copos. Copos
largos para o conhaque, a caipirinha e o uísque, taças para a margarita e o
licor. Será que o cara do dreadlock vai querer a garrafa de cerveja inteira?
Vou lhe dar a garrafa inteira. Mexi no congelador embaixo do balcão e busquei a
cerveja, a mais sofisticada que sabia que havia, marca boa. Depois, fui pegando
as garrafas. Conhaque – vou servir-lhes o de preço mais mediano da nossa carta
de bebidas, sabe-se lá como estaria sua situação, talvez não tão rico para
querer o mais caro, ou não tão desabonado para preferir o mais barato e
ordinário... Gelo no copo, uísque em cima. Licor de framboesa, o mais vermelho
que pude achar no balcão. Na taça, com uma cereja dentro, acho que ela vai
gostar. Margarita: as doses padrão de tequila, suco de limão e licor “triple
sec” na coqueteleira, misturados rapidamente, molha a taça um pouquinho,
mergulha a borda em uma tigela com sal, coloca a bebida no copo. Caipirinha:
ah, ainda bem que já tem limão cortado em pedaços. Ah, ainda tem de espetar a
fatia de limão na taça da margarita. Pronto. Caipirinha, agora. É só amassar
uns pedaços de limão com a cachaça, no copo, um pouco de açúcar... Pronto.
Estavam prontos os seis drinques.
O único barulho, em todo o bar, era o tilintar
das garrafas, dos copos e da coqueteleira. Nenhuma tossida. Tive, entretanto, a
impressão de ter ouvido alguém sussurrar para alguém: “é esse o bartender que
você falou? Não parece grande coisa...”. E uma resposta: “Calma, espere para
ver...” Dei uma leve olhada para trás. Todos no bar me encaravam. Eu estava sob
um verdadeiro vestibular. Aquele público era diferente, claro que era. Era um
público que estava na cara que deveria ser agradado.
Eu suava frio: se eu não agradasse aqueles
seis tipos humanos no balcão, acabarei desagradando toda aquela multidão, e é
capaz que todos acabem saindo sem pagar. Na pior das hipóteses, iriam saltar em
cima de mim. E todos me observavam, me avaliavam. Haveria algum crítico de
jornais entre aqueles sujeitos, incógnito? Podem ver, estou dando o melhor de
mim.
Conferi os pedidos. Conhaque, cerveja,
margarita, licor, caipirinha, uísque... Não esqueci de nada? Ah, lembrei, ainda
tem de preparar o bloody mary. Aí,
preparei. Vodca, suco de tomate, suco de limão, molho inglês, gotas de molho de
pimenta... coqueteleira, copo. E só aí me virei para os clientes, e dei a cada
um seu respectivo pedido. Conhaque, cerveja, margarita, licor, caipirinha,
uísque, bloody mary. E respirei
aliviado.
Aí me dei conta de uma coisa...
Um momento: bloody mary?! Não me lembro de alguém ter me pedido um bloody mary!
Aí reparei: havia uma sétima pessoa no
balcão. Engraçado, não me lembro de ter visto ali aquele tipo de casaco preto, a
gola alta escondendo parte da cabeça, cabelos tingidos de verde, com pinta de
estrela do rock, que agora olhava para o bloody
mary, erguendo o copo à altura dos olhos. Será que ele fez o pedido através
de telepatia?! Não é possível!
Apreensivo, observei os fregueses, veremos
qual será a reação deles. Que tipos excêntricos. Aliás, como todo mundo naquele
bar, exceto pelos meus colegas garçons, que também estavam parados me
observando.
Que gente esquisita, vestindo roupas muito
fechadas e escuras, alguns usando casacos de couro com grandes golas peludas,
uns com casacos incrivelmente felpudos, uns com piercing nos lugares mais
inusitados, uns apresentando penteados excêntricos, tingidos de cores incomuns.
Estava acontecendo algum festival de rock alternativo nas redondezas e eu não
fiquei sabendo? Todo aquele pessoal é típico de quem aparece em um festival
assim, transgressor e...
Mas que coisas estranhas observei enquanto os
fregueses do balcão experimentavam seus drinques...
Impressão minha ou o cara do conhaque, assim
que o sorveu, fez seus olhos ficarem vermelhos e com uma fenda como os de um
gato? Impressão minha ou as trancinhas dreadlock
do homem da cerveja, que dispensou o copo que coloquei junto e bebericava
pelo gargalo da garrafa, se mexeram sozinhas como se fossem serpentes?!
Impressão minha ou a mulher da margarita pôs para fora uma língua bifurcada,
com a qual lambeu o sal da borda da taça? Impressão minha ou a mulher do licor
tinha duas fileiras de dentes pontiagudos como os de um tubarão, com os quais
mascava a cereja? Impressão minha ou o homem da caipirinha tinha unhas
compridas como garras? Impressão minha ou o cara do uísque... não, o cara do
uísque não diferia de um bêbado comum, com sua aparência de motoqueiro, mas...
ele engoliu a bebida e os cubos de gelo, tudo de uma vez só?!
Só o rapaz do bloody mary agiu mais normalmente. Estava de cabeça baixa, sorvendo
a bebida. Mas me assustava a possibilidade de ele haver mesmo pedido a bebida
por telepatia... Espere: ele ergueu os olhos em minha direção, e são cor de
âmbar! Pisquei, e ele voltou a baixar a cabeça.
É, devem ser membros de alguma daquelas
excêntricas tribos urbanas que circulam por aí... Daquelas que também fazem
alterações bizarras pelo corpo, como tatuagens e piercings em lugares
inusitados (até nos globos oculares já ouvi falar que aplicam tatuagens e
piercings), penteados anormalmente elaborados, lentes de contato coloridas para
dar uma cor inusitada aos olhos, automutilações no sentido de deixar o corpo
mais exótico... Cidade grande é assim, reunindo tipos assim, transgressores...
E não duvido que, nos dias que correm, devem ter desenvolvido até mesmo uma
forma de implantar uma segunda fileira de dentes na boca, não basta
desbastá-los para deixa-los serrilhados... Já ouvi falar no procedimento
cirúrgico para dividir a língua e deixa-la bifurcada como uma cobra, e...
Enquanto isso, o bar se mantinha
incrivelmente silencioso. Todos os outros fregueses deveriam estar esperando a
reação do pessoal do balcão, se valia a pena continuar naquele bar, se eles iam
gostar dos meus drinques. E se não gostassem?, pensei novamente. Será que todos
iriam embora, e sem pagar? Não, pelo que me lembre, nunca um cliente abandonou
o bar depois de experimentar um drinque preparado por mim... No máximo, só vi
eles fazendo caretas, mas isso era quando eu ainda estava no “estágio”, me
preparando, e, ainda assim, eles pagavam a conta... Depois, as caretas
diminuíram à medida que fui adquirindo experiência... e...
Os sete esvaziaram o copos – e a garrafa.
Voltaram seus olhares em minha direção. Meu coração batia forte. Engoli em
seco. Aí...
O rapaz de cabelo verde foi o primeiro a se
manifestar.
- Ah... estava excelente. Bem na quantidade
de pimenta.
Impressão minha ou saiu fumaça de sua boca?!
E eu não vi um cigarro na mão dele...
Ao que os outros seguiram-se, quebrando a
ordem:
- Muito bom... exatamente o que queria! –
disse a mulher do licor.
- Excelente! Prepare mais uma! – disse a
mulher da margarita. – E capriche no sal!
- Mais uma dessas! E capriche na cachaça! –
exclamou o cara da caipirinha.
- Uma caipirinha para mim também! –
manifestou-se o homem do conhaque, com um largo sorriso de dentes serrilhados.
- Outro uísque, e com muito gelo! Muito
gelo!! – manifestou-se o homem do uísque.
O cara da cerveja não disse nada. Esperaram
um momento sua reação, mesmo depois de ele ter esvaziado a garrafa. E aí, ele
ergueu o polegar e deu um sorrisão.
E, de repente, o bar, antes silencioso,
começou a se agitar. Começou com uma grande salva de aplausos, e gritos: “Viva!
Viva o bartender! Hurra! Que comece a festa! Ele vai garantir que vai ser
boa!”. E o clima tenso de antes começou a ficar descontraído. Todos começaram a
fazer seus pedidos, a falar, a fazer barulho.
Fiquei feliz. Eles gostaram dos meus drinques!
Salvei o bar!!
Mas não podia comemorar, internamente, por
muito tempo. Os pedidos começaram a chegar. E o pessoal do balcão queria
repetir suas bebidas. Bem, já que gostaram, vou preparar mais. E, enquanto o
salão se enchia de barulho, lá vou eu preparar drinques.
E, de repente, minha cabeça começou a se
encher de pedidos. Não bastava receber pedidos de drinques verbalmente,
chegavam outros através de telepatia. Será que o pessoal também lidava com
ciências ocultas? Conseguiam lidar com telepatia?! Só podia... Mas eu não podia
pensar, tinha de preparar drinques! Os pedidos, por quais vias chegassem, eram
preparados automaticamente. Um dry
Martini, saindo. Um mojito, saindo também. Era só o tempo de pintar a
sugestão na mente, preparar e depois me virar para o balcão, para o cliente que
fez o pedido.
Os fregueses começaram a se alternar no
balcão. Um saía depois de beber uma ou duas doses, outro entrava, se
acotovelava, de modo que o balcão estava sempre lotado. Quando vejo, o rapaz de
cabelo verde sumiu do balcão, e estava sentado em uma das mesas do fundo. Mas,
sempre que eu o encontrava, misturado no meio da multidão, ele também voltava
os olhos em minha direção e sorria. E eu desviava o olhar. Os outros, que
estavam com ele, também começaram a circular pelo bar, claustrofóbico de tão
lotado. Vejo a mulher de cabelo preto, copo de licor na mão, discutindo
alegremente com a mulher do mullet cor-de-rosa. Vejo o homem da barbicha indo
em direção à mesa de sinuca junto com o sujeito do dreadlock.
A coqueteleira chacoalhando, o liquidificador
batendo misturas mais grossas como a piña
colada, abafando alguns dos sons que vinham do salão, a geladeira cheia de
bebidas geladas abrindo e fechando sem parar, as garrafas de bebida que subiam
e desciam sem parar das prateleiras... tudo começou a funcionar automaticamente
enquanto eu estava ali, no balcão. E eu não dispunha de nenhum ajudante, era a
primeira vez que passávamos por esse tipo de situação, nunca tivemos o bar
assim tão cheio. Porque eu conseguia dar conta de tudo, sozinho, no balcão,
cabendo aos meus colegas garçons apenas circular com suas bandejas.
De um momento para outro, havia me transformado
em uma espécie de robô preparador de drinques, perdera o controle sobre mim.
Tinha apenas alguns instantes de lucidez, e era quando os garçons me entregavam
os papeizinhos com pedidos. Daí voltava ao balcão e preparava os drinques,
maquinalmente. De repente, eu conseguia preparar drinques em grande velocidade,
e de modo que não houvesse erros nas receitas. Deve ser uma experiência
forçada, daquelas que se adquire com o tempo. Meio que consegui, por exemplo,
preparar uma caipirinha, um mojito, uma margarita... cada um em menos de um
minuto, menos que normalmente se levaria. E distribuía as bebidas entre as
bandejas dos garçons e os fregueses nos balcões onde não parava de se
acotovelar gente ávida por álcool, transparente ou colorido.
Hum... será que os tais poderes de vampiros
já estavam começando a se manifestar? Digo, isso de eu conseguir preparar
drinques em maior velocidade que o normal. Bem, isso, evidentemente, se tornou
necessário naquela noite fora do comum. Para um dia fora do comum, uma noite
fora do comum. E aquele sujeito de cabelo verde olhou para mim de novo, depois
que o encontrei de novo.
E o bar continuava cheio daquela gente
esquisita. Talvez fossem mesmo participantes do tal festival de rock
alternativo que eu não sabia que estava sendo realizado. Mas não estavam a
caminho do tal festival. Estavam praticamente promovendo uma festa ali mesmo,
no nosso bar, em plena madrugada de quinta para sexta-feira. Festa estranha,
com gente esquisita. O jukebox no canto do bar tocando sem parar temas ora
agitados, como rock, ora mais lentos como blues, dependendo da escolha de quem
punha as moedas. As bolas das mesas de sinuca rolando e se chocando sem parar. Uns
daqueles esquisitões até cantavam, alegremente. Não pareciam aqueles roqueiros
punks ou góticos mal-humorados, pareciam mesmo bem alegres apesar do tom
sombrio de algumas músicas escolhidas no jukebox.
Os outros dois garçons circulavam sem parar
pelas mesas, atendendo pedidos. Até o dono do bar se surpreendeu com todo
aquele movimento (e ele nem para vir me dar uma mão...). Mas nada tinha a
reclamar, porque o faturamento estava alto. Maior que nos outros dias. Não
parava de entrar e sair gente. E essa mesma gente repetia cada drinque. Em
certos momentos em que podia voltar o meu olhar para o salão, fui notando os
tipos estranhos...
Um cara gorducho, usando um casacão, um
pesado colar de corrente e anéis, com jeitão de empresário do hip-hop, tomou
nada menos que quatro piñas coladas, e
pagou licores para a garota de cabelo colorido que o acompanhava no balcão; perto do casal, havia uma baixinha de
cabelo claro escorrido, tomando sua piña
colada às lambidas, como um gato (ou devia ser só impressão minha); o
magricela de penteado punk, que arrasava com todo mundo na mesa de sinuca, se
preencheu de cerveja preta; disputando com ele, um sujeitinho que raspara quase
toda a cabeça, deixando um estranho tufo de cabelos no topo da cabeça; palpitando
na mesa de sinuca entre os dois, um tipo cheio de piercings pelo rosto, e este,
pelo que pude observar, tomou três caipirinhas – impressão minha ou ele também
comeu as fatias de limão e ainda lambeu os beiços?! Na mesma mesa, um sujeito
de cabelo repicado apoiado, e assistindo ao jogo, apoiado na mesa e de língua
de fora como se fosse um cachorro (louco?); vi, em um canto, um casal que
trocava beijos ardentes – e parecia que os braços deles se enrolavam em seus
corpos como tentáculos de polvo, dando mais de uma volta em volta de suas
cinturas, mas acho que era só impressão. Havia também um sujeito, no balcão,
que não apenas tinha um estranho smile estampado
no casaco, como também “esculpido” com cabelo na nuca – e este consumiu três
cervejas; e olhem ali para aquela garota, bebendo Martini vermelho, com
maquiagem carregada nos olhos e metade da cabeça raspada, deixando só metade do
cabelo vermelho; que dizer também daquele negro ali, que conseguiu estampar
duas tatuagens escuras em seu rosto, e conseguir que elas contrastassem com seu
tom de pele? Entre tantos tipos “interessantes”...
E todos pagaram. Deviam estar muito bem de
vida, pois gastaram muito dinheiro com todos aqueles drinques.
Por um instante, tive a impressão de que
estava, todo esse tempo, servindo um grupo de monstros, dadas as alterações que
fizeram em seus corpos. O que toda aquela gente fazia durante o dia, produzidos
daquela maneira? Ou será que só assumiam essa estranha condição à noite,
maquiando suas alterações corporais durante o dia?
Trabalhei sem parar, e estranhamente estava
alegre, preparando aqueles drinques com gosto e satisfação; tirando e colocando
garrafas na prateleira, picando frutas, batendo drinques no liquidificador com
leite condensado e bebida alcoólica, agitando a coqueteleira no ritmo da música
do jukebox, colocando bordas de sal ou açúcar nas taças, misturando diferentes
variedades de bebida e refrigerante, mergulhando azeitonas nas taças, colocando
tudo nas bandejas que os garçons conduziam... E aquela gente esquisita ainda me
olhava com simpatia. Eu agradara todo mundo.
Chegou um momento em que um tipo mais
exaltado, de têmporas tão inchadas que parecia um lagarto, se apoiou no balcão
e se dirigiu a mim:
- Como é o seu nome, rapaz? “
- Hã... Macário... – respondi, timidamente.
E, voltando-se para o salão, o sujeito
exclamou:
- Pessoal, uma salva de palmas ao Macário,
que nos trouxe tanta alegria esta noite!
Seguiu-se uma salva de palmas de todos ali. Fiquei
encabulado.
Logo em seguida, uma esquisitona com jeito de
prostituta, roupa emborrachada e cabelo de duas cores, que pedira um dry martini, me puxou e me tascou um
beijo na bochecha. E disse, ao pé de meu ouvido:
- Obrigada, Macário. Você pra mim é o melhor
bartender do mundo. O melhor que encontrei até hoje.
Fiquei ainda mais encabulado. Ah, mas é
apenas o meu trabalho. Não pude deixar de sorrir.
Os outros dois garçons também ganharam a sua
salva de palmas, puxadas pelo mesmo sujeito. Até o dono do bar recebeu sua
ovação, mas não tanto quanto as que eu recebi. Afinal, quem fez todos os
drinques fui eu.
Houve apenas um momento de apreensão naquela
noite. Foi quando uma das clientes – a moça que acompanhava o gorducho do
hip-hop – depois que recebeu mais uma dose de bebida, exclamou:
- Aaai, o seu nariz caiu!!!
O bar paralisou. Até o jukebox silenciou.
Levei a mão ao nariz. Como assim... não, meu
nariz ainda estava aqui, podia sentir nos dedos, então...
Olhei para o chão: não era o meu nariz, era a
atadura que estava no meu nariz. Descolou e caiu no chão sem eu perceber.
- Hã... – falei, meio sem jeito, quebrando o
silêncio, recolhendo a atadura. – Desculpem, é a atadura que... eu machuquei o
nariz dias atrás, e...
- Ufa, que susto que você nos deu... – disse
a mulher, aliviada.
- Que nada... foi você quem me deu um susto!
O pessoal deu uma grande risada, que ecoou
pelo bar. Coloquei a atadura na lixeira sob o balcão. E o movimento recomeçou
de onde parou.
Devia ser pelo calor
do ambiente, pelo suor do esforço contínuo... só assim para explicar como essa
atadura descolou e caiu. Ainda bem que não foi dentro de um copo de bebida,
senão isso iria estragar aquela noite animada...
Alguém resolveu colocar uma música latina
agitada no jukebox, e resolvi acompanhar o ritmo, agitando a coqueteleira como
um chocalho, fazendo uma pequena exibição. E o público se acotovelou no balcão
para assistir. Tive a impressão de que o cabelo de um deles começou a pegar
fogo, mas era apenas o tom escolhido de tintura que era vermelho muito vivo...
E reparei em mais um sujeito de dentes serrilhados, e piercing, e em outro com
o cabelo repartido em pequenos “coques”, e...
Por volta das duas da madrugada, eu já estava
exausto – mas, surpreendentemente, mantinha vigor e uma vontade de continuar
trabalhando, ou seja, nem parecia cansado. Estava estranhamente satisfeito com
este trabalho. Sentia que, dali em diante, aconteceriam coisas grandes, já que
agradei a toda aquela gente – e ao eventual crítico gastronômico que poderia
estar incógnito. Devia ser o rapaz de cabelo verde. Mas ele sumiu tão
misteriosamente quanto apareceu. Eu não conseguia tirar do pensamento aquele
olhar de âmbar.
E as garrafas de bebida, todas vazias. Aquele
pessoal bebeu, cantou, dançou e jogou sinuca como se não houvesse amanhã –
imagine se este bar também promovesse apresentações de strip-tease... Mas, felizmente, nenhum quebra-quebra, nenhuma briga,
nenhum ato mais exaltado. Para uma tribo urbana, para roqueiros, eles até que
eram bem comportados.
Não houve mais grandes pedidos, já que os
conhaques, os uísques, os vermutes e outros ingredientes – até as frutas usadas
em alguns drinques, também para enfeitar os copos – acabaram.
Foi com alguma tristeza que tive de anunciar
que a bebida acabara. O dono do bar avisara que não havia mais bebida no
estoque. Houve decepção por parte dos “monstros”, e, aos poucos, o bar foi
sendo esvaziado.
Já era por volta da uma da manhã quando a
debandada iniciou. Até que todos, às duas em ponto, já haviam ido embora.
Todos saíram rindo, evidentemente já muito
altos. Provavelmente vão estender a noitada em outro lugar.
Só haviam sobrado as bebidas mais simples,
como as cervejas mais baratas e os refrigerantes. E, no bar, só haviam ficado
três ou quatro pessoas, mas estes eram ébrios eventuais, pareciam mais
“comuns”, do tipo que eu estava mais acostumado a atender, não eram parte da
“tribo”. Gente que entrou de penetra na festa, ou buscando apenas a saideira
antes de ir para casa.
Enquanto recuperava o fôlego um instante,
pelo rabo do olho, vi que só havia, agora, uma pessoa no balcão. E, dela veio
um pedido em voz alta, feminina:
- Um refrigerante.
- Pois não... – disse, me voltando em direção
à voz. – De limão, de laranja, de cola ou... Vi?!
Levei um susto. Viridiana, ali, no balcão, às
duas e meia da madrugada!
- Oi, Macário. Finalmente disponível, hein? –
disse, me olhando com um sorriso terrível.
- Há... há quanto tempo você está aqui? –
perguntei, limpando o suor do rosto com uma toalhinha.
- Dentro do bar? Faz cerca de uma hora.
Estava numa das mesas do fundo, e resolvi esperar você se desocupar um pouco...
Pelo jeito hoje você teve de trabalhar dobrado, hein? E trabalhou bem, até um
beijo você ganhou...
- Pois sim... Resolveram festejar não sei o
quê hoje. Esse pessoal deve ser novo na cidade, nunca vi.
- Eu também nunca os vi. Mas achei
interessantes. Será que há algum festival de rock alternativo por perto?
- Decerto...
- Cansou, hein? Até o curativo no seu nariz
saiu... Que susto você deu na moça, hein?
- É... Pois é... Ainda bem que não foi dentro de um copo... – dei uma risadinha desajeitada. – Mas e você, o que faz aqui?
- É... Pois é... Ainda bem que não foi dentro de um copo... – dei uma risadinha desajeitada. – Mas e você, o que faz aqui?
- Eu? Eu vim conversar com você, Macário.
Estou mais calma, como você recomendou para mim.
- Comigo?
- Talvez seja melhor esperar mais um pouco,
né? Digo, você terminar seu turno no bar. Mas não se preocupe, agora eu estou
calma. Estou disposta a ter com você um diálogo mais civilizado que o que
tivemos ali, no hospital...
- É sério?
- Sério, Macário. E o refrigerante?
- Ah, claro, já sai... Vai querer amendoins
também?
- Não, obrigada. Preciso estar sóbria para
tratar contigo o que quero tratar.
Ela não parava de sorrir, com uma calma
anormal. O que ela estava planejando de terrível contra mim?!
Dentro de 15 dias, novo capítulo. Pode ser que saia no próximo domingo, ou daqui a 15 dias. Mas fiquem atentos. Tudo dependerá do humor do autor e de sua capacidade de lidar com os compromissos que assumiu em tempos recentes.
O que acharam da história até aqui? Deixem comentário!
E até o próximo capítulo.
Até mais!
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