terça-feira, 27 de maio de 2014

VIDA DE ESTAGIÁRIO - Allan Sieber, profissão iconoclasta

Olá.
Hoje é mais um dia em que falo de quadrinhos – e brasileiros. E, desta vez, pegando pesado.
Aos que ainda não conhecem o homem do qual falarei, mas o qual já devo ter citado diversas vezes, saibam que sua arte é justamente pegar pesado, e sem ter pena de ninguém.
Apresento-lhes Allan Sieber.

O CRIADOR

Allan Sieber, nascido em Porto Alegre, RS, em 1972, consolidou há muito uma carreira de quadrinhista, ilustrador, cartunista, editor e animador. Desde o início dos anos 90 do século XX, ele faz uso de um humor corrosivo, niilista, iconoclasta, cheio de crítica social e comportamental, num traço característico de cartum. Ou, segundo a apresentação de um de seus álbuns, “se a função do humorista é mostrar que o rei está nu, Allan vai além e diz que o piiih do rei é pequeno. Não há perdão e não se fazem prisioneiros (...). A metralhadora atinge todas as classes sociais, profissões, religiões ou sexos (inclusive alguns criados recentemente), sem problemas de virar o cano contra si mesmo”.
Como cartunista e ilustrador, ele já colaborou com muitas revistas e jornais nacionais e estrangeiras. Só para citar alguns: jornais O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Pasquim21, revistas Trip, Bundas, SET, General, Superinteressante, Mundo Estranho, Playboy, Sexy, Lápiz Japonés e Suelte-me! (estas, ambas da Argentina), Comix 2000 (França), Complot (México) e Vacuum (Finlândia).
Sua primeira experiência como editor foi a criação da revista Glória, Glória, Aleluia!, publicada pela editora ADM (Agentes do Mal) em 1993. Os outros três números, de um total de quatro, foram publicados, até 1997, pelas Edições Tonto. Glória, Glória, Aleluia! foi vencedora de dois HQ MIX, em 1995 e 1997.
Em 1996, ele começa a publicar uma de suas principais tiras, Bifaland, no Caderno Zap do jornal O Estado de São Paulo. Bifaland foi publicada até 1997, e em 2001 começou a sair pelo jornal Folha de São Paulo, pelo qual também começa a publicar, mais tarde, a série Preto no Branco (que, como o nome entrega, é em preto-e-branco e com um humor mais ácido e violento, contrastando com o restante de seu trabalho, colorido mas não menos violento).
Em 1997, pela Edições Tonto, de Porto Alegre (RS) que ele ajudou a fundar, ele publica, pela coleção Mini Tonto, o seu primeiro álbum solo, As Piadas Vagabundas do Steven. Dentro da coleção, ele ainda publica, no ano 2000, o mini-álbum As Últimas Palavras. Ainda em 1997, Sieber ganha seu primeiro HQ Mix, como Desenhista Revelação (entregue junto com o segundo HQ Mix para a revista Glória, Glória, Aleluia!).
Em 1999, no Rio de Janeiro (onde reside até hoje), Sieber, junto com Denise Garcia, cria a produtora de desenhos animados Toscographics, responsável por fazer vinhetas animadas para programas da Rede Globo e curtas animados escritos e dirigidos por ele. Ainda em 1999, Sieber lança seu primeiro curta-metragem animado, Deus é Pai, que recebe o prêmio da crítica e do júri do Festival de Cinema de Gramado, RS.
No ano 2000, ele lança, dentro do caderno Folheteen do jornal O Estado de São Paulo, a série Vida de Estagiário. Em 2005, é lançada a primeira compilação das tiras pela editora Conrad. Ainda no Folheteen, Sieber lança a tira The Mommy’s Boys. Ainda em 2000, ele lança seu segundo curta-metragem pela Toscographics, Os Idiotas Mesmo.
Em 2001, outro curta-metragem animado: Onde Andará Petrúcio Felker.
Em 2002, ele colabora na coletânea Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol, lançado pela Via Lettera – 11 artistas produzindo histórias sobre futebol.
Em 2003, a Toscographics lança o curta-metragem de documentário Jonas, escrito e dirigido por Sieber. E o cartunista ainda dirige os trechos de animação do cult-movie O Homem que Copiava, de Jorge Furtado.
Em 2004, mais um curta de documentário, Superstição. E, em formato independente, junto com Arnaldo Branco e Leonardo, Sieber lança a Revista F., humorística. Durou quatro números bimestrais – sendo o último editado pela editora Conrad, que, no mesmo ano, lança o primeiro álbum compilando as tiras de Preto no Branco.
Em 2005, além do álbum de Vida de Estagiário, Sieber lança, pela editora Casa XXI, o álbum Sem Comentários, vencedor do HQ Mix de Melhor Livro de Cartum. Nesse mesmo ano, Sieber assina a direção de arte do documentário Sou Feia, Mas Tô na Moda, dirigido por Denise Garcia, sobre as mulheres do funk carioca.
Em 2006, sai seu primeiro álbum de cartuns pela editora Desiderata, Assim Rasteja a Humanidade. E um novo curta de animação pela Toscographics, Santa de Casa, baseado em conto de Aldir Blanc, que também fez a trilha sonora.
Em 2007, pela Desiderata, outro álbum, Mais Preto no Branco. E abocanha mais um HQ Mix, de Melhor Cartunista.
Em 2008, outro curta de animação, Animadores. E, para o Canal Brasil, Sieber e amigos produzem o programa de variedades Negão Bolaoito Show, que durou 52 episódios.
Em 2009, mais um álbum pela Desiderata, É Tudo Mais ou Menos Verdade, vencedor do HQ Mix do ano seguinte de Melhor Publicação de Humor.
Em 2010, um novo álbum, menos humorístico: Ninguém me Convidou, feito em parceria com o pai, Joulralbo Sieber. E colabora no álbum MSP + 50 – Maurício de Sousa por Mais 50 Artistas (Panini), segundo volume do projeto em homenagem aos 50 anos de carreira de Maurício de Sousa.
Em 2011, Vida de Estagiário ganha uma adaptação para uma série de TV, pela Produtora Glaz e exibido inicialmente pela TV Brasil – e, em 2013, os 13 episódios passaram a ser veiculados pelo canal Warner Channel. Ainda em 2011, Sieber e amigos produzem para o Canal Brasil o programa Trash Hour.
Em 2012, para o Canal Brasil, a Toscographics produz os 13 episódios da série Tosco TV, adaptando séries de cartuns de colegas cartunistas.
Seus mais recentes álbuns foram lançados agora em 2014, pela Mórula Editorial: A Vida Secreta dos Objetos, novo álbum da série Preto no Branco, e Perca Amigos, Pergunte-me Como. Enquanto isso, está produzindo a websérie A Última Loja de Discos, para o site GShow.
Está em fase de finalização – bem, não sei se já foi lançado – o documentário Pereio, Eu Te Odeio, sobre o ator Paulo César Pereio, escrito e dirigido por Sieber.
Visitem o site pessoal dele e conheçam mais: http://allansieber.blogosfera.uol.com.br/.

Fonte do cartum acima: www.tuppi.com.br/.

A CRIATURA ESCOLHIDA (SÓ QUE NÃO)
Bão. Para falar de Allan Sieber, a coletânea que escolhi foi justamente o álbum VIDA DE ESTAGIÁRIO, lançado pela Conrad em 2005, compilando alguns dos cartuns publicados pelo jornal Folha de São Paulo, dentro do caderno Folheteen.
Dos personagens fixos de Allan Sieber – onde também se incluem os mimados músicos de The Mommy’s Boys e o boa-vida Afrânio Mendes, publicado na revista Playboy – o pobre estagiário Oseias é o mais marcante. Porque Sieber o utiliza para criticar o ambiente corporativo das empresas, situação pela qual ele próprio já passou – bem, na verdade não como estagiário, mas como office-boy, o que é praticamente a mesma coisa, segundo a introdução do álbum.
Bem, nos dias de hoje já existe uma legislação com o intuito de conceder mais benefícios aos estagiários em empresas. Mas não em 2005, quando a tira foi lançada.
Segundo Sieber – e não está longe da realidade, infelizmente – o estagiário ocupa a base da cadeia alimentar corporativa: é ele quem arca com a maior parte do serviço, é ele o faz-tudo da empresa, é ele quem leva a maior parte dos xingões dos chefes, é ele o mais verme por ainda não ter diploma. Naquela base: 99 acertos, nenhum elogio; um erro, gritos e risco de demissão. E ainda ganhando uma mixaria no fim do mês, isso quando recebe alguma remuneração. Mas o coitado precisa passar por pelo menos três anos dessa provação – e lamber os dedos – se quiser ser efetivado na empresa e assim se igualar aos outros. Sem falar na tremenda injustiça presente no ambiente corporativo, onde os que ganham mais seguiram dois caminhos: ou bajulam o chefe, ou dormem com ele.
Bem, eu também já passei por isso, amigos, pela provação chamada estágio. Na faculdade, para cumprir a carga horária de curso; e no serviço público, como concursado. Bem, não como descrito acima, pois meu estágio foi em um colégio, como professor, onde em tese não há a parte da bajulação aos chefes ou dos xingões – professores, antes de tudo, são uma classe unida quando o assunto é o descaso do governo. E hoje eu tô feliz, mais do que feliz, pois agora consegui a estabilidade no serviço público. Mas já senti na pele o que é não ter regalias por carregar na testa o selo de “estagiário”.
Pois bem. Oseias de Souza, o personagem principal da tira, com seu topete e sua barbichinha, nasceu para sofrer, parece ter nascido para ser verme. Nascido, em suma, pra se piiih. Ou ao menos é o que pensam seus colegas de trabalho da agência de publicidade Almeida, Bronson e Lewis (AB&L), onde o coitado trabalha feito um condenado, leva horas para xerocar uma pilha de folhas, leva mais horas para sair da fila do banco, é vítima de zombarias por parte dos colegas (se não pela agência inteira) por não ter diploma, ganha uma ninharia no fim do mês e está à mercê do chefe, o troglodita Almeida, sempre com o charuto na boca. Se reclamar, se não levar um grito, Oseias corre o risco de ter a cabeça afundada na privada do banheiro.
Pior de tudo: o coitado diariamente só recebe palavras desmotivacionais dos colegas, inclusive do cupincha de Almeida, Paulinho, como se ele nunca tivesse a chance de evoluir. A palavra de Oseias nunca conta para os outros. Sua opinião não interessa ninguém. Só lembram dele na hora de ir buscar o café. Além de faz tudo, o pobre Oseias serve como saco de insultos dentro da empresa. O tipo de cara que ninguém quer ver se dar bem – no mínimo, antes dos outros.
Eu disse NINGUÉM. Porque, na condição de estagiário, Oseias não tem chance de fazer sucesso com as mulheres, e leva zombaria até de quem não faz parte da empresa, incluindo o próprio pai e o irmão mais velho, e o pai da namorada, Juliana. Talvez a alma mais condescendente com o coitado seja a namoradinha, Juliana. Apesar de ser praticamente a única a dar palavras de incentivo a Oseias, ela não parece confortável em sair com um estagiário...
Ara, não se preocupem, não: a vida de Oseias não é feita só de sofrimento. Afinal, estamos falando de uma tira cômica. Ele reclama, sim, mas sabe levar as coisas na esportiva – inclusive os almoços à base de fast food em restaurantes pouco higiênicos. Há situações em que ele pode se sentir feliz e útil dentro da empresa – ainda que seja só para buscar o café. E, apesar das frases desmotivacionais, ele alimenta o sonho de se dar bem como quadrinhista, rabiscando pequenas HQ nos intervalos do extenuante ambiente de trabalho. E mais: dando pequenas e cafajestes dicas de como se dar bem no ambiente de trabalho. Mas se o próprio Sieber tivesse pena de Oseias... possivelmente a tira perderia toda a graça.
Em certos momentos, a tira é realmente engraçada. Mas em outras, não tem como não sentir pena de Oseias – daquelas tiras que você lê uma vez e pula quando folheia de novo o álbum. Tudo para que Sieber consiga desmontar aquela máxima passada de que o trabalho enobrece o homem. Talvez já tenha havido uma época em que essa frase era verdadeira, em que o ambiente corporativo parecia menos uma selva.
O álbum, medindo 23 x 21 e com 104 páginas (sem contar capa) reúne parte das tiras publicadas até 2005. Como tem mais tiras depois desse ano, Sieber já está devendo um segundo volume. E nem todas as tiras tem o mesmo layout. Nas primeira tiras, sempre começa com o “logotipo” da série, um quadrinho com Oseias no chão, após escorregar numa casca de banana, e pessoas a seu redor rindo dele. Pouco depois, Sieber brinca com o título da série, a la Will Eisner, escrevendo o nome da tira de diferentes maneiras – dentro de quadrinhos numa página de HQ, entalhado numa árvore, escrito com maionese, dentro de dentes numa grande boca, com a cabeça de Oseias no lugar de uma das letras... E ainda algumas das tiras são feitas na forma de uma página de passatempos, com pequenas atividades absurdas com soluções “surpreendentes”. E ainda podemos ver pequenas amostras dos “quadrinhos” feitos por Oseias. E sua história de “origem”, exclusiva para o livro, contando o que Oseias fez quando entrou para a AB&L. E, no final, um caderno de esboços de Sieber para a série.
Oh: o álbum também reúne pequenas colaborações. Sieber colheu depoimentos engraçados de gente que era estagiária na época de lançamento do livro, com os nomes trocados para proteger a identidade dos colaboradores – e textos cheios de palavrões. Confirmando que as situações vividas por Oseias não estão longe da realidade. E também uma pequena colaboração do pai de Allan, Joulralbo (antes do álbum Ninguém me Convidou). Foi este quem desenhou os cartuns da série Estagiários Históricos, mostrando os estagiários de grandes personalidades.
É Sieber como a gente conhece bem: traço humorístico e feito com calma, engraçado, cheio de vida e movimento. E quase todo feito à mão. Sieber, ainda hoje, é um dos poucos cartunistas que não se entregou à patifaria do Comic Sans: faz os balões e textos a mão.
Oh: como eu disse há pouco, VIDA DE ESTAGIÁRIO também ganhou uma série de TV! Os 13 episódios, estrelados por Thomas Huszar (Oseias) e Fábio Esposito (Almeida), foram produzidos pela produtora Glaz, veiculados inicialmente pela TV Brasil, em 2011, e depois, cumprindo as cotas de programação nacional da TV paga, pela Warner Channel, em 2013. Não sei dizer agora se ainda está passando em um desses canais.
Fonte da imagem: www.vidadetrainee.com/.
Bem, é isso a dizer. O álbum ainda pode ser encontrado com alguma facilidade. Fique atento às prateleiras de descontos da sua livraria.
Para encerrar, não tendo mais o que colocar, vou deixar aqui mais uma sequência das tiras mais recentes do Teixeirão, gaúcho assim como Sieber. E, assim como ele, não me entrego facilmente à patifaria do Comic Sans: no computador, só faço os retoques no desenho e as cores. As letras e balões, prefiro fazer à mão – com isso, a história fica menos artificial. Funciona com outros cartunistas, mas não comigo.
E estas tiras não estão sendo – eu próprio reconheço – as minhas melhores tiras. Ultimamente, para fechar os arcos mais recentes, sinto que esteja desandando meu humor... buá!
Confiram mais tiras do personagem em http://naestanciadoteixeirao.blogspot.com.br/.
E, por enquanto, estamos conversados.

Até mais!

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