quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Filme: A PAIXÃO DE JACOBINA

Olá.
Hoje, deixando um pouco de lado a badalação em torno da Olimpíada do Rio de Janeiro, e conforme prometido a uma postagem atrás, volto a falar de filme. Volto a falar da Revolta dos Mucker. Volto a falar de Jacobina Maurer. E hoje vou falar do produto mais “comercial” a respeito do conflito messiânico da zona de imigração alemã do Rio Grande do Sul do século XIX.
Na última postagem, falei a respeito do livro Videiras de Cristal, de Luiz Antônio de Assis Brasil, a recriação ficcional em livro mais famosa do conflito. Hoje, então, resenho a adaptação cinematográfica do livro, A PAIXÃO DE JACOBINA. Ou melhor, adaptação, nem tanto adaptação: o filme de fato foi mais inspirado no livro do que adaptado do livro. Já explico.

Para começar, A PAIXÃO DE JACOBINA, filme brasileiro lançado em 2002, foi dirigido por Fábio Barreto, diretor que se consagrou com O Quatrilho (1995), adaptação do romance do escritor gaúcho José Clemente Pozenato, que até concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Barreto também é conhecido pelos filmes Luzia-Homem (1988), Bela Donna (1997), Nossa Senhora do Caravaggio (2007) e Lula – O Filho do Brasil (2009). Desde dezembro de 2009, após sofrer um grave acidente de carro, Barreto não dirige mais filmes. Após uma delicada cirurgia, em janeiro de 2010, está em casa, em tratamento.
O roteiro de A PAIXÃO DE JACOBINA é de Leopoldo Serran. E seu elenco é basicamente composto de atores consagrados, “globais”.
Antes de A PAIXÃO DE JACOBINA, a Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o qual nem me darei ao trabalho de refrescar a memória de meus 17 leitores (favor consultarem as postagens com o marcador “Revolta dos mucker”), havia sido retratada, nos cinemas, no filme Os Mucker (1978), de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer. E, visualmente, A PAIXÃO DE JACOBINA tem muito jeito de ser um filme mais palatável ao público que seu antecessor. O filme de 2002 tem mais recursos que o de 1978: mais claridade, imagens mais nítidas, músicas de fundo, efeitos especiais, interpretações em linguagem mais novelesca e até uma inserção de merchandising. Além disso, enquanto o filme de 1978 foi gravado no estado de São Paulo, as locações do filme de 2002 são mais próximas do local dos acontecimentos: o filme foi gravado em Sapiranga e outros municípios do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. As locações do filme, hoje, fazem parte do roteiro turístico da cidade de Sapiranga.
Porém, é menos fiel à realidade histórica: os diálogos são todos em português (enquanto o filme de 1978 tinha diálogos alternando entre português e alemão hunsrückisch) e há deturpação dos fatos até mesmo em relação ao livro-fonte. Até mesmo uma inserção de uma trama romântica onde não havia.
Bão. O filme de Fábio Barreto também procura retratar a líder messiânica Jacobina Maurer (interpretada por Letícia Spiller), desta vez com um recorte de tempo maior: ela é mostrada rapidamente na infância, depois na adolescência, e no fim, na vida adulta. Antes e depois de se tornar a “Mutter” dos colonos alemães abandonados pelo poder público da época, antes e depois de dizer-se encarnação de Cristo na Terra, antes e depois de se tornar profetiza. Claro que essa vida é mostrada com um pouco de “trapaça” e deturpação.
A deturpação começa através do personagem Franz (Thiago Lacerda). Esse personagem não existiu nem na vida real, nem no livro de Assis Brasil – ele é cunhado de Jacobina, mas tem outro nome. Bem: nas cenas iniciais do filme, Jacobina demonstra, de um modo mal disfarçado, que é apaixonada por Franz, no dia do casamento deste. Porém, ambos os personagens vivem em tensão amorosa. Em uma cena, Franz flagra Jacobina tomando banho de cachoeira, e, mesmo sendo ambos casados, ambos tem um flerte ali mesmo, na piscina natural. Em crise de consciência, Jacobina dá o fora em Franz e segue sua vida. Mais tarde, Franz volta à vida de Jacobina quando ela já era considerada santa pela população local, e o casal vive em um vai e vem até Franz se juntar em definitivo à seita, conduzindo ao tradicional final dramático. Nada disso consta no livro.
Voltemos a Jacobina Maurer, antes Mentz. Bem, a personagem tem o seu caráter divino reforçado pelo roteiro do filme. No início do filme, ela é mostrada ainda na infância, com a mãe e os irmãos, fugindo da Guerra dos Farrapos; as crianças tem fome, mas a mãe impede-as de comerem uma panela de feijão abandonada nas ruínas de uma casa, em uma tentativa de reforçar nelas o caráter de honestidade e de força nas adversidades (essa parte, sim, consta no livro). Em vários momentos, ela sofre desmaios e crises de sono letárgico, mas nessas crises ela tem ouve a voz de Deus falando com ela. E, nessas crises, ela tem o acompanhamento do médico Dr. Hillebrandt (Werner Schünemann). Foi após a primeira crise de desmaio, no momento em que a família bate uma fotografia na cerimônia de casamento de Franz, que Jacobina conhece o marido, João Maurer (Alexandre Paternost), então curandeiro – e que, inesperadamente, após a consulta, se declara a ela. Os dois se casam, e Jacobina ajuda João Maurer no tratamento de pacientes – enquanto vive a tensão amorosa com Franz – em casa, ao pé do morro do Ferrabraz. Foi após o parto da única filha (na vida real, Jacobina Maurer teve seis filhos) que Jacobina começa a “ouvir” a voz de Deus.
Outro personagem que vive em tensão constante com Jacobina, mas desta vez no campo das ideias, é o pastor Boeber (Antonio Calloni), que antes ouvia as confissões de Jacobina, porém, depois, a excomunga de sua comunidade e passa à oposição dos chamados mucker. E a maquete da igreja a qual o pastor passa boa parte do livro construindo, e que no romance tem um caráter simbólico (ela representa um projeto de comunidade religiosa da vida do pastor), aparece no filme, mas sem grande importância. No livro, a maquete inacabada acaba sendo destruída junto com a morte de Boeber; no filme, nem um nem outro morrem.
Bem. Pouco depois, Jacobina resolve assumir seu caráter de representante de Deus na Terra, despindo-se frente a um crucifixo cheio de luzes, depois realizando milagres junto aos pacientes do marido (se é que podemos chamar de milagre ela ter beijado os ferimentos da perna de um homem e este ter largado as muletas de repente) e, com trechos da Bíblia, confortando-os com palavras. Nesse ponto, ela passa a trajar apenas uma camisola branca; depois, ela é coroada com uma coroa de flores pelos fieis. Jacobina começa a juntar fieis em torno de si, pregando a Bíblia e o fim do mundo, e abençoando os fiéis com... beijos na boca. Entre os fiéis, entre familiares e simples gente que teve de vender suas propriedades ao governo, estão o parvo Jacó Mula (Leon Góes) e o violento Robinson (Felipe Kannenberg). Inicialmente frequentando os cultos, estava o mercador Nadler (Zé Victor Castiel) que, depois, escandalizado com o comportamento de Jacobina, retira-se da seita.
A seita já começa a arranjar opositores logo no início. Fica evidente na cena em que Jacó Mula, ao defender Jacobina no mercado de Nadler, é agredido por homens violentos. Esses mesmos homens matam, mais tarde, um seguidor da seita e seus cavalos. Depois, um dos agressores é morto e enforcado por homens mascarados, supostos mucker; e só aí é que a atenção das autoridades é despertada. A lei é representada pelo delegado João Lehn (Caco Ciocler), tendo como aliados o Dr. Hillebrandt e o Pastor Boeber. E, inicialmente aliado a estes, Franz.
Aliás, Lehn vive uma tensão amorosa (mais ou menos como no livro) com a mucker Elizabeth Carolina (Talita Castro) – mas, no filme, tal relação tem menos arrogância por parte do homem.
A tensão entre os mucker e os “ímpios” aumenta a cada instante. O mercador Nadler é encontrado morto dias depois de negar vender produtos a uma mulher mucker; depois, um membro da seita é encontrado morto de forma violenta. Jacobina até consegue fazer chover (literalmente) durante seu enterro.
Já não é mais possível manter as pregações de não-violência – a gota d’água é quando as autoridades conduzem Jacobina à justiça. Estando em crise de sono letárgico, ela é conduzida de carroça, deitada, a São Leopoldo, e sentenciada a ser internada na Santa Casa de Porto Alegre para se tratar do suposto distúrbio mental – e acaba tendo a cabeça raspada. E de cabeça raspada ela permanece até o fim do filme. Um fato astronômico previsto por Jacobina acaba dando mais força a ela e aos mucker: um meteoro cruza o céu no dia de Pentecostes (não consta no livro!). Após o retorno ao Ferrabraz, o discurso pacífico de Jacobina muda, e os mucker passam a perseguir os “ímpios” do mesmo modo que foram perseguidos. Fica evidente que a luta dos muckers, antes de tudo, é contra o sistema social injusto, ainda que pessoas inocentes também acabem pagando.
A gota d’água foi o atentado à vida de João Lehn: foi determinante para que as autoridades chamem o exército imperial, sob o comando do coronel Genuíno (Felipe Camargo) para combater os mucker.
E, nas cenas finais, há mais afastamento da realidade: na vida real, foram necessárias três expedições para dar fim aos mucker, e na segunda, o Coronel Genuíno morre acidentalmente, e Jacobina consegue escapar para o mato; no filme, foram necessários dois ataques, no segundo o “templo” de Jacobina acaba destruído, ela perece no fogo junto com Franz, e Genuíno não morre. Barreto e Serran trapacearam!
Well. O filme teve bilheteria razoável – só no Rio Grande do Sul foram 95 mil espectadores, segundo informações colhidas da internet – e teve apoio tanto de uma boa parte técnica, uma cenografia que capta bem as belezas da região do Vale dos Sinos, uma boa reconstituição dos cenários de época – e apenas dos cenários!
Mas as interpretações do filme geram algumas controvérsias.
Letícia Spiller como Jacobina, por exemplo. Para caracterizar a personagem, ela contou, inclusive, com o uso de perucas. E ela passa a maior parte do tempo olhando para o vazio, expressão distante, numa tentativa de reforçar a suposta deficiência mental de Jacobina Maurer (de acordo com as descrições dos historiadores). Sua interpretação, de um modo geral, é um tanto exagerada, bem de personagem de novela – e a presença de Franz só reforça a pieguice. E pensar que a ideia inicial do diretor Fábio Barreto era que a modelo gaúcha Gisele Bündchen interpretasse Jacobina Maurer...
Isso faz com que o título do filme adquira dois sentidos: “paixão”, tanto no significado do amor romântico entre Jacobina e Franz, como no sentido divino, o martírio da personagem próximo ao sofrido por Jesus Cristo.
Foi muito criticada a cena em que ela anda pelos campos, cercada de borboletas criadas digitalmente. O melhor efeito especial do filme ainda é a passagem do meteoro.
Já Alexandre Paternost, como João Maurer, praticamente expressa perfeitamente a insignificância que o personagem assume ao longo da história, simplesmente “desaparecendo” durante o filme. Afinal, como concorrer com a mulher beata e um rival galã?
Outros personagens do livro perdem empatia com relação a suas contrapartes do filme. É o caso de Jacó Mula, que no filme parece um débil mental (no livro nem é tanto assim), sempre soprando seus apitos e falando com dificuldade; e de Elizabeth Carolina, cuja tensão amorosa e crise de consciência ficam em segundo plano em todo filme. As atenções ficam voltadas, logo, para Jacobina, eliminando as histórias paralelas que enriqueciam o enredo. Tudo para a história caber em seus 103 minutos.
O roteiro de Serran corta também alguns personagens do livro, como o médico Christian Fischer, que estabelece uma relação de cumplicidade com Jacó Mula (ficou de fora até a trama supérflua em torno dos cactos que Fischer recolhe para remeter a um tio da Alemanha, o que foi um acerto de Barreto e Serran), o piedoso padre católico Matias Münsch, a criada e confidente de Jacobina, Ana Maria Hoffstätter, e o militar Santiago Dantas, responsável pelo ataque final. Desse modo, podemos reforçar que o filme foi mais inspirado por Videiras de Cristal que adaptado do romance.
Como se não bastasse, conseguiram inserir no filme um merchandising da fábrica de calçados Azaléia, que patrocinou o filme. É na cena em que uma personagem passa em um sapateiro. Jeitinho brasileiro é isso aí.
A direção do filme também foi muito criticada – ficou aquém de O Quatrilho, que até concorreu ao Oscar!
Ainda assim, A PAIXÃO DE JACOBINA é mais palatável ao público que Os Mucker. Cumpriu sua função, que era a de apresentar ao público brasileiro as paisagens de Sapiranga. Porque, na parte da História, não foi lá essas coisas... A História, aqui, ficou no “padrão Globo” (representada por sua filial, a RBS), já que até atores “globais” o filme teve. Ah, mas se o próprio Luiz Antônio de Assis Brasil confessou, no posfácio de Videiras de Cristal, que não teve o compromisso de seguir os fatos reais em sua reconstituição da história de Jacobina Maurer, por que não também Barreto e Serran? Assim, todos estão redimidos.
Ah: até o momento em que escrevo, A PAIXÃO DE JACOBINA está disponível, completo, no YouTube, para quem quiser conferir. Mas, sendo filme mais recente, é fácil encontrá-lo também em DVD.

Para encerrar, fiquemos agora com minha HQ folhetinesca, O Açougueiro, que também dá uma “trapaceada” e uma deturpada nos fatos reais em que se inspira. Ainda não sei como esta história vai terminar, e quando, já alertei, mas ainda vou deixa-la aqui, neste blog, completa, para que vocês possam lê-la de forma integral, e dizerem se não há mesmo algum defeito. Afinal, de forma serializada, a dimensão da obra é diferente da forma integral.
Em breve, mais novidades. E ainda pretendo retornar ao tema da Revolta dos Mucker. Não sei ainda, mas pretendo.

Oh: quem acessar hoje o blog de minha personagem Letícia (http://leticiaquadrinhos.blogspot.com.br/) verá: hoje, a personagem alcançou 800 tiras publicadas! Marca alcançada graças tanto à teimosia do autor quanto ao apoio do público. E a série nem vai parar! Aguardem novidades!

Até mais!

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