Olá.
Hoje,
deixando um pouco de lado a badalação em torno da Olimpíada do Rio de Janeiro,
e conforme prometido a uma postagem atrás, volto a falar de filme. Volto a
falar da Revolta dos Mucker. Volto a falar de Jacobina Maurer. E hoje vou falar
do produto mais “comercial” a respeito do conflito messiânico da zona de
imigração alemã do Rio Grande do Sul do século XIX.
Na
última postagem, falei a respeito do livro Videiras de Cristal, de Luiz Antônio de Assis Brasil, a recriação ficcional em livro
mais famosa do conflito. Hoje, então, resenho a adaptação cinematográfica do
livro, A PAIXÃO DE JACOBINA. Ou melhor, adaptação, nem tanto adaptação: o filme
de fato foi mais inspirado no livro
do que adaptado do livro. Já explico.
Para
começar, A PAIXÃO DE JACOBINA, filme brasileiro lançado em 2002, foi dirigido
por Fábio Barreto, diretor que se consagrou com O Quatrilho (1995),
adaptação do romance do escritor gaúcho José Clemente Pozenato, que até concorreu ao Oscar de melhor
filme estrangeiro. Barreto também é conhecido pelos filmes Luzia-Homem (1988), Bela
Donna (1997), Nossa Senhora do
Caravaggio (2007) e Lula – O Filho do
Brasil (2009). Desde dezembro de 2009, após sofrer um grave acidente de
carro, Barreto não dirige mais filmes. Após uma delicada cirurgia, em janeiro
de 2010, está em casa, em tratamento.
O
roteiro de A PAIXÃO DE JACOBINA é de Leopoldo Serran. E seu elenco é
basicamente composto de atores consagrados, “globais”.
Antes
de A PAIXÃO DE JACOBINA, a Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o qual nem me
darei ao trabalho de refrescar a memória de meus 17 leitores (favor consultarem
as postagens com o marcador “Revolta dos mucker”), havia sido retratada, nos
cinemas, no filme Os Mucker (1978),
de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer. E, visualmente, A PAIXÃO DE JACOBINA tem muito
jeito de ser um filme mais palatável ao público que seu antecessor. O filme de
2002 tem mais recursos que o de 1978: mais claridade, imagens mais nítidas, músicas
de fundo, efeitos especiais, interpretações em linguagem mais novelesca e até
uma inserção de merchandising. Além disso, enquanto o filme de 1978 foi gravado
no estado de São Paulo, as locações do filme de 2002 são mais próximas do local
dos acontecimentos: o filme foi gravado em Sapiranga e outros municípios do
Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. As locações do filme, hoje, fazem parte
do roteiro turístico da cidade de Sapiranga.
Porém,
é menos fiel à realidade histórica: os diálogos são todos em português (enquanto
o filme de 1978 tinha diálogos alternando entre português e alemão hunsrückisch) e há deturpação dos fatos
até mesmo em relação ao livro-fonte. Até mesmo uma inserção de uma trama
romântica onde não havia.
Bão.
O filme de Fábio Barreto também procura retratar a líder messiânica Jacobina
Maurer (interpretada por Letícia Spiller), desta vez com um recorte de tempo
maior: ela é mostrada rapidamente na infância, depois na adolescência, e no
fim, na vida adulta. Antes e depois de se tornar a “Mutter” dos colonos alemães
abandonados pelo poder público da época, antes e depois de dizer-se encarnação
de Cristo na Terra, antes e depois de se tornar profetiza. Claro que essa vida
é mostrada com um pouco de “trapaça” e deturpação.
A
deturpação começa através do personagem Franz (Thiago Lacerda). Esse personagem
não existiu nem na vida real, nem no livro de Assis Brasil – ele é cunhado de
Jacobina, mas tem outro nome. Bem: nas cenas iniciais do filme, Jacobina
demonstra, de um modo mal disfarçado, que é apaixonada por Franz, no dia do
casamento deste. Porém, ambos os personagens vivem em tensão amorosa. Em uma
cena, Franz flagra Jacobina tomando banho de cachoeira, e, mesmo sendo ambos
casados, ambos tem um flerte ali mesmo, na piscina natural. Em crise de
consciência, Jacobina dá o fora em Franz e segue sua vida. Mais tarde, Franz
volta à vida de Jacobina quando ela já era considerada santa pela população
local, e o casal vive em um vai e vem até Franz se juntar em definitivo à
seita, conduzindo ao tradicional final dramático. Nada disso consta no livro.
Voltemos
a Jacobina Maurer, antes Mentz. Bem, a personagem tem o seu caráter divino
reforçado pelo roteiro do filme. No início do filme, ela é mostrada ainda na
infância, com a mãe e os irmãos, fugindo da Guerra dos Farrapos; as crianças
tem fome, mas a mãe impede-as de comerem uma panela de feijão abandonada nas
ruínas de uma casa, em uma tentativa de reforçar nelas o caráter de honestidade
e de força nas adversidades (essa parte, sim, consta no livro). Em vários
momentos, ela sofre desmaios e crises de sono letárgico, mas nessas crises ela
tem ouve a voz de Deus falando com ela. E, nessas crises, ela tem o
acompanhamento do médico Dr. Hillebrandt (Werner Schünemann). Foi após a
primeira crise de desmaio, no momento em que a família bate uma fotografia na
cerimônia de casamento de Franz, que Jacobina conhece o marido, João Maurer
(Alexandre Paternost), então curandeiro – e que, inesperadamente, após a
consulta, se declara a ela. Os dois se casam, e Jacobina ajuda João Maurer no
tratamento de pacientes – enquanto vive a tensão amorosa com Franz – em casa,
ao pé do morro do Ferrabraz. Foi após o parto da única filha (na vida real,
Jacobina Maurer teve seis filhos) que Jacobina começa a “ouvir” a voz de Deus.
Outro
personagem que vive em tensão constante com Jacobina, mas desta vez no campo
das ideias, é o pastor Boeber (Antonio Calloni), que antes ouvia as confissões
de Jacobina, porém, depois, a excomunga de sua comunidade e passa à oposição
dos chamados mucker. E a maquete da igreja a qual o pastor passa boa parte do
livro construindo, e que no romance tem um caráter simbólico (ela representa um
projeto de comunidade religiosa da vida do pastor), aparece no filme, mas sem
grande importância. No livro, a maquete inacabada acaba sendo destruída junto
com a morte de Boeber; no filme, nem um nem outro morrem.
Bem.
Pouco depois, Jacobina resolve assumir seu caráter de representante de Deus na
Terra, despindo-se frente a um crucifixo cheio de luzes, depois realizando
milagres junto aos pacientes do marido (se é que podemos chamar de milagre ela
ter beijado os ferimentos da perna de um homem e este ter largado as muletas de
repente) e, com trechos da Bíblia, confortando-os com palavras. Nesse ponto,
ela passa a trajar apenas uma camisola branca; depois, ela é coroada com uma
coroa de flores pelos fieis. Jacobina começa a juntar fieis em torno de si,
pregando a Bíblia e o fim do mundo, e abençoando os fiéis com... beijos na
boca. Entre os fiéis, entre familiares e simples gente que teve de vender suas
propriedades ao governo, estão o parvo Jacó Mula (Leon Góes) e o violento
Robinson (Felipe Kannenberg). Inicialmente frequentando os cultos, estava o
mercador Nadler (Zé Victor Castiel) que, depois, escandalizado com o
comportamento de Jacobina, retira-se da seita.
A
seita já começa a arranjar opositores logo no início. Fica evidente na cena em
que Jacó Mula, ao defender Jacobina no mercado de Nadler, é agredido por homens
violentos. Esses mesmos homens matam, mais tarde, um seguidor da seita e seus
cavalos. Depois, um dos agressores é morto e enforcado por homens mascarados,
supostos mucker; e só aí é que a atenção das autoridades é despertada. A lei é
representada pelo delegado João Lehn (Caco Ciocler), tendo como aliados o Dr.
Hillebrandt e o Pastor Boeber. E, inicialmente aliado a estes, Franz.
Aliás,
Lehn vive uma tensão amorosa (mais ou menos como no livro) com a mucker
Elizabeth Carolina (Talita Castro) – mas, no filme, tal relação tem menos
arrogância por parte do homem.
A
tensão entre os mucker e os “ímpios” aumenta a cada instante. O mercador Nadler
é encontrado morto dias depois de negar vender produtos a uma mulher mucker;
depois, um membro da seita é encontrado morto de forma violenta. Jacobina até
consegue fazer chover (literalmente) durante seu enterro.
Já
não é mais possível manter as pregações de não-violência – a gota d’água é
quando as autoridades conduzem Jacobina à justiça. Estando em crise de sono
letárgico, ela é conduzida de carroça, deitada, a São Leopoldo, e sentenciada a
ser internada na Santa Casa de Porto Alegre para se tratar do suposto distúrbio
mental – e acaba tendo a cabeça raspada. E de cabeça raspada ela permanece até
o fim do filme. Um fato astronômico previsto por Jacobina acaba dando mais
força a ela e aos mucker: um meteoro cruza o céu no dia de Pentecostes (não
consta no livro!). Após o retorno ao Ferrabraz, o discurso pacífico de Jacobina
muda, e os mucker passam a perseguir os “ímpios” do mesmo modo que foram
perseguidos. Fica evidente que a luta dos muckers, antes de tudo, é contra o
sistema social injusto, ainda que pessoas inocentes também acabem pagando.
A
gota d’água foi o atentado à vida de João Lehn: foi determinante para que as
autoridades chamem o exército imperial, sob o comando do coronel Genuíno (Felipe
Camargo) para combater os mucker.
E,
nas cenas finais, há mais afastamento da realidade: na vida real, foram
necessárias três expedições para dar fim aos mucker, e na segunda, o Coronel
Genuíno morre acidentalmente, e Jacobina consegue escapar para o mato; no
filme, foram necessários dois ataques, no segundo o “templo” de Jacobina acaba
destruído, ela perece no fogo junto com Franz, e Genuíno não morre. Barreto e
Serran trapacearam!
Well.
O filme teve bilheteria razoável – só no Rio Grande do Sul foram 95 mil
espectadores, segundo informações colhidas da internet – e teve apoio tanto de
uma boa parte técnica, uma cenografia que capta bem as belezas da região do
Vale dos Sinos, uma boa reconstituição dos cenários de época – e apenas dos
cenários!
Mas
as interpretações do filme geram algumas controvérsias.
Letícia
Spiller como Jacobina, por exemplo. Para caracterizar a personagem, ela contou,
inclusive, com o uso de perucas. E ela passa a maior parte do tempo olhando
para o vazio, expressão distante, numa tentativa de reforçar a suposta
deficiência mental de Jacobina Maurer (de acordo com as descrições dos
historiadores). Sua interpretação, de um modo geral, é um tanto exagerada, bem
de personagem de novela – e a presença de Franz só reforça a pieguice. E pensar
que a ideia inicial do diretor Fábio Barreto era que a modelo gaúcha Gisele
Bündchen interpretasse Jacobina Maurer...
Isso
faz com que o título do filme adquira dois sentidos: “paixão”, tanto no
significado do amor romântico entre Jacobina e Franz, como no sentido divino, o
martírio da personagem próximo ao sofrido por Jesus Cristo.
Foi
muito criticada a cena em que ela anda pelos campos, cercada de borboletas
criadas digitalmente. O melhor efeito especial do filme ainda é a passagem do
meteoro.
Já
Alexandre Paternost, como João Maurer, praticamente expressa perfeitamente a
insignificância que o personagem assume ao longo da história, simplesmente
“desaparecendo” durante o filme. Afinal, como concorrer com a mulher beata e um
rival galã?
Outros
personagens do livro perdem empatia com relação a suas contrapartes do filme. É
o caso de Jacó Mula, que no filme parece um débil mental (no livro nem é tanto
assim), sempre soprando seus apitos e falando com dificuldade; e de Elizabeth
Carolina, cuja tensão amorosa e crise de consciência ficam em segundo plano em
todo filme. As atenções ficam voltadas, logo, para Jacobina, eliminando as
histórias paralelas que enriqueciam o enredo. Tudo para a história caber em
seus 103 minutos.
O
roteiro de Serran corta também alguns personagens do livro, como o médico
Christian Fischer, que estabelece uma relação de cumplicidade com Jacó Mula
(ficou de fora até a trama supérflua em torno dos cactos que Fischer recolhe
para remeter a um tio da Alemanha, o que foi um acerto de Barreto e Serran), o
piedoso padre católico Matias Münsch, a criada e confidente de Jacobina, Ana
Maria Hoffstätter, e o militar Santiago Dantas, responsável pelo ataque final.
Desse modo, podemos reforçar que o filme foi mais inspirado por Videiras de
Cristal que adaptado do romance.
Como
se não bastasse, conseguiram inserir no filme um merchandising da fábrica de
calçados Azaléia, que patrocinou o filme. É na cena em que uma personagem passa
em um sapateiro. Jeitinho brasileiro é isso aí.
A
direção do filme também foi muito criticada – ficou aquém de O Quatrilho, que até concorreu ao Oscar!
Ainda
assim, A PAIXÃO DE JACOBINA é mais palatável ao público que Os Mucker. Cumpriu sua função, que era a
de apresentar ao público brasileiro as paisagens de Sapiranga. Porque, na parte
da História, não foi lá essas coisas... A História, aqui, ficou no “padrão
Globo” (representada por sua filial, a RBS), já que até atores “globais” o
filme teve. Ah, mas se o próprio Luiz Antônio de Assis Brasil confessou, no
posfácio de Videiras de Cristal, que
não teve o compromisso de seguir os fatos reais em sua reconstituição da
história de Jacobina Maurer, por que não também Barreto e Serran? Assim, todos
estão redimidos.
Ah:
até o momento em que escrevo, A PAIXÃO DE JACOBINA está disponível, completo,
no YouTube, para quem quiser conferir. Mas, sendo filme mais recente, é fácil
encontrá-lo também em DVD.
Para
encerrar, fiquemos agora com minha HQ folhetinesca, O Açougueiro, que também dá uma “trapaceada” e uma deturpada nos
fatos reais em que se inspira. Ainda
não sei como esta história vai terminar, e quando, já alertei, mas ainda vou
deixa-la aqui, neste blog, completa, para que vocês possam lê-la de
forma integral, e dizerem se não há mesmo algum defeito. Afinal, de forma
serializada, a dimensão da obra é diferente da forma integral.
Em
breve, mais novidades. E ainda pretendo retornar ao tema da Revolta dos Mucker.
Não sei ainda, mas pretendo.
Oh:
quem acessar hoje o blog de minha personagem Letícia (http://leticiaquadrinhos.blogspot.com.br/)
verá: hoje, a personagem alcançou 800 tiras publicadas! Marca alcançada graças
tanto à teimosia do autor quanto ao apoio do público. E a série nem vai parar!
Aguardem novidades!
Até
mais!
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