domingo, 4 de junho de 2017

MACÁRIO - Capítulo 10: "Conversas Furtadas"

Olá.
Estive muito enrolado, nas duas últimas semanas, com trabalhos que peguei. Creio que, esta semana, consiga finalizá-los e normalizar as coisas. Enquanto isso, não consegui produzir mais nada. Ou melhor, deu para encontrar uma brechinha para produzir algo: mais um episódio de meu folhetim ilustrado quinzenal, MACÁRIO.
Ainda é cedo para deixar definido se esse folhetim eventualmente passará a ser semanal. Quando conseguir chegar a essa definição, aviso vocês. Então, vamos ao capítulo deste domingo.
AVISO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de consumo de bebidas alcoólicas e de fanservice (à moda dos animes japoneses).



E não deu outra: os “monstros” voltaram.
Mal me vesti, mal coloquei a gravata-borboleta e o avental, mal saí para o balcão, os esquisitões que atendi na noite passada estavam lá, preenchendo quase completamente o salão, e me receberam com aplausos.
Levei um pequeno susto. Mas todos estavam ali. Não tinha como não reconhecer cada um daqueles rostos excêntricos, cada um daqueles penteados excêntricos, cada uma daquelas vestimentas excêntricas, só com algumas pequenas variações.
- O Macário voltou!
- É o Macário!
- Viva Macário!!!
E todos aplaudiram. Fiquei encabulado.
Assim que os aplausos cessaram, e o silêncio tomou conta do recinto, todos aguardando alguma fala ou ação minha... tudo o que consegui falar foi:
- E aí, o que vão querer hoje?
O bar continuou silencioso. Mas, olhando para as pessoas no balcão...
Entendi.
Entendi?
Como posso explicar: as pessoas do balcão eram as mesmas da noite passada. Passei os olhos no balcão: o mesmo rapaz da barbicha, o mesmo cara do dreadlock, a mesma moça do cabelo rosa, a mesma do cabelo preto, o mesmo homem da tatuagem no rosto, o mesmo grandalhão, o mesmo rapaz do casacão... não, o mesmo não, ou melhor, era sim, mas hoje o seu cabelo estava tingido de azul-caneta.
E já não havia mais impressões: o cara de barbicha tinha mesmo olhos vermelhos com fendas; as trancinhas dreadlock do segundo se mexiam mesmo. A moça do cabelo rosa tinha mesmo língua bifurcada. A moça de cabelo preto e escorrido tinha mesmo dentes afiados. O rapaz da tatuagem tinha mesmo unhas afiadas. E... o que o grandalhão e o rapaz do cabelo azul faziam mesmo?
Bem, dava mesmo para justificar tais características bizarras: o cara da barbicha devia usar lentes de contato que simulavam olhos vermelhos com fendas; a moça do cabelo rosa podia ter cortado a língua para bifurca-la (e devia ter sido dolorido); a moça do cabelo preto deve ter se submetido a um tratamento dentário especial para deixar os dentes serrilhados; o cara da tatuagem só deixou crescer as unhas – preocupante mesmo foi o procedimento para colocar aquela tatuagem no rosto, deve ter doído aplicar o padrão tribal em uma pele tão fina, mas o cara tinha jeito de que, cotidianamente, agia como “cabra macho”. E... a única explicação que me ocorre para o cara do dreadlock é que elas se movem com o movimento da cabeça do homem. Mas ainda precisava confirmar, porque ainda tinha a impressão de que suas tranças se mexiam sem que ele fizesse algum movimento com a cabeça.
OK, estavam todos ali, os sete primeiros que atendi na noite passada.
Mas, mesmo sem que um deles movesse os lábios, eu de certa forma sabia o que eles queriam. Eu ouvia as vozes deles dentro de minha mente. Oh: eles agora estavam enviando seus pedidos por telepatia... todos?
Bem, pouco importa. Só sei que me voltei para o balcão, e comecei a pegar as garrafas, os estoques de bebida já repostos (é necessário, certo?), e fui atendendo aos pedidos. Conhaque para o rapaz da barbicha. Cerveja de boa qualidade para o rapaz do dreadlock. Margarita para a mulher do cabelo rosa. Licor vermelhinho para a moça do cabelo preto – hein? Hoje é Martini? Mas do vermelho, hoje? Tudo bem, Martini, nós temos do vermelho. E vai em taça igual ao da margarita. Com azeitona na... Hum? Cereja ao invés de azeitona? Está bem, o cliente é que tem razão, quem sou eu para questionar esse gosto? Caipirinha para o rapaz da tatuagem no rosto. Uísque com gelo para o grandalhão. Bloody mary para o rapaz de cabelo azul.
Mas, mal acabei o bloody mary e servi, já tive de preparar o cuba libre, a piña colada, uma dose de aguardente, mojito, licor de... Vozes em minha mente reverberavam, fazendo pedidos. Que tal, eu comecei a receber os pedidos via telepatia! E meio que sabia quem fez tal pedido. O autor do pedido mal entrava em contato visual comigo, um olhando nos olhos do outro, estivesse distante, na mesa do canto, ou bem próximo, no balcão, eu já recebia o pedido...
Estaria sendo eu, que ganhei um dom telepático (possivelmente, os dons vampíricos já começando a se manifestar), ou eram eles que dominavam alguma arte oculta que me afetava? Mas não podia pensar nisso agora. Quando tudo estivesse mais tranquilo...
Hoje não era aquela tensão de ontem. Eu ainda me sentia como uma máquina de preparar drinques, fazendo tudo mecanicamente. Mas o pessoal já havia me aprovado, eu já havia montado uma reputação, então, o que me restava era trabalhar, desta vez mais descontraído, mais relaxado.
E os “monstros” faziam a festa, naquele jeito comportado e ordeiro deles. Ninguém “alto” demais para provocar alguma quebradeira ou tumulto. Todos bebiam, e pareciam aguentar bem. As mesas de sinuca com gente à volta, o jukebox tocando, todos bem descontraídos. No balcão, garrafas tilintando, o som do líquido dos copos se enchendo, faca batendo na tábua enquanto cortava frutas, colheres e pilões tilintando nos copos enquanto misturavam, liquidificador batendo misturas, coqueteleira chocalhando, freezer abrindo e fechando. Mas era tanta mistura de barulhos, falas, sons, músicas, que não se podia captar alguma eventual conversa, sobre o que alguns daqueles “monstros” estavam conversando.
O que eu conseguia pegar eram palavras e expressões desconexas, cuja ligação em frases de sentido me era ignorada: galeria, Rimbaud, fluxo de consciência, Jack Kerouac, vamos apostar, Stanley Kubrick, Mondrian, governo, tempo feio, vai chover, Leonardo da Vinci, beba, Salvador Dalí, subdesenvolvimento, Resnais, arroto, desculpe, Álvares de Azevedo, cães, Amazônia, que vergonha, Kevin Smith, não me toque, qualé cara, país tão pobre culturalmente, Jean Luc Godard, dá até pena, Ramones, tocar na sexta, Pedro Almodóvar, night session, Orson Welles, é tudo verdade, Elton John, chope para distrair, Carlos Saura, banda do momento, Take That, Led Zepellin, arroto, desculpe, Beatles, cigarro, acho que tô passando mal, Andy Wharol, Júlio Verne, temos de mudar esse sistema injusto, Bram Stoker, ah, não me diga, sério?, Mozart, arroto, desculpe, Macário, garçom, samba, Beethoven, Jorge Aragão, arroto, desculpe, Trapalhões, Arlindo Cruz, champagne per brindare uno encontro, Charlie Chaplin, Carlota Joaquina, Glauber Rocha, cérebro, Chile, arroto, desculpe, cenoura faz bem pros olhos, Isabel Allende, Gabriel Garcia Marquez, cadê o cinema nacional, arroto, desculpe...
Sério, “pesquei” todas essas expressões saindo da boca dos “monstros”. Inclusive os arrotos, discretos, dados com a boca fechada para que ninguém ouvisse. Mas ainda assim acompanhados de um “desculpe”.
Decerto, eram todos do tipo que frequentavam galerias de arte, cinemas de filmes de arte, discutiam a situação do mundo, essas coisas “intelectuais”. Apesar da aparência transgressora, eles aparentavam, ao máximo, serem gente “de bom gosto”, “intelectuais” à moda dos anos 1970 e 1980 (conforme os livros e as revistas que meu pai, formado em sociologia, guardava em casa, e os quais li espontaneamente). Quando se discutiam assuntos “difíceis”.
E, pelo tipo de bebida que eles solicitavam, deviam ser mesmo intelectuais. De direita ou de esquerda? Vai saber. Os que pediam piña colada, manhattan, dry Martini e as bebidas mais sofisticadas deviam ser os intelectuais de direita; os que pediam mojito, cuba libre e drinques mais simples e/ou baratos devem ser os de esquerda. Pode ser que minha lógica esteja furada, mas faço o que posso.
Bem, que me importava se eles deviam estar conversando sobre poesia de vanguarda, sobre o último filme daquele diretor “cult” introspectivo e etc., sobre aquele pintor “da moda” que está expondo na principal galeria de arte da cidade... Fazendo comparações com os grandes nomes do passado... aproveitando o ensejo para discutir a situação do país, os contrastes sociais ainda existentes, o meio ambiente, etc... e soltando gases involuntariamente...
Tudo o que eu conseguia captar com sentido, mesmo, eram pedidos de drinques que me chegavam telepaticamente, e eu preparava mecanicamente, e já colocava nas bandejas que eram repassadas aos garçons meus colegas que os levavam às mesas. Apenas na aparência que os clientes faziam pedidos da forma normal, com as guias anotadas. Meio que, quando a guia com o pedido me chegava ao balcão, o drinque já estava pronto.
E, ao que parece, não sou eu o telepata: eu não conseguia ler os pensamentos de meus colegas garçons, o que eles deveriam estar pensando a respeito daquilo. Ou havia muita interferência, ou era líquido e certo, os telepatas eram os “monstros”. Depois faço outro teste, quando tudo estiver mais calmo...
Não sei se é sonho, se é delírio provocado por algum vapor alucinógeno que estavam deixando escapar no ambiente (terá mesmo alguém consumindo drogas no recinto além do álcool, sem que a gente visse?!), mas estava sendo dessa maneira.
A atividade foi intensa até por volta das duas da manhã. O pico de gente foi entre meia noite e uma da madrugada. Depois, à medida que o estoque de bebida ia acabando, o bar começou a ficar mais vazio, o barulho diminuiu, alguns dos “monstros” já saíam. Outros ficavam.
No balcão, continuava o revezamento. Saía um, entrava outro. Mas, volta e meia, quando eu olhava para aquela multidão, podia reparar: o rapaz do cabelo tingido de azul não parava de olhar para mim. Depois que saiu do balcão, eu o avistei em diversos pontos do bar, nas mesas do fundo, nas mesas de sinuca, junto ao jukebox. E, toda vez que eu o distinguia na multidão, estivesse mais perto, ou mais distante, ele sempre travava contato visual comigo. E dava um sorriso.
Estava com um estranho pressentimento. Por que aquele rapaz me chamava tanto a atenção? Por que esse interesse súbito nesse rapaz?! Fosse pelo cabelo, pura e simplesmente, vá lá. Fosse pelo enorme casaco preto, que lhe dava uma aparência de vampiro, vá lá... Mas é que... toda vez que eu localizava aquele cabelo de cor berrante, ele voltava o olhar para minha direção, como se soubesse que eu o estava procurando!
Não, Macário, procure não pensar em nada. Só. Faça. Drinques. Deixe. Os. “Monstros”. Contentes.
Assim mesmo, pronunciando as palavras da frase como se cada uma fosse um único período (estudem morfologia linguística, pessoal!)
Bem, como eu disse anteriormente, o movimento começou a diminuir por volta da uma da manhã. Nessa hora, o salão já parecia mais espaçoso. Menos “monstros”. E menos bebidas no balcão. Mais uma noite em que esvaziamos quase todas as garrafas expostas na prateleira atrás de mim.
Foi nesse momento que, com o barulho menos intenso, quando resolveram dar uma pausa na música do jukebox, quando já se podia escutar o chocar das bolas das mesas de sinuca como se fossem estrondos, uma cliente no balcão puxa conversa.
Era a mesma moça em quem eu tinha dado um susto na noite passada. A moça do cabelo colorido. E estava acompanhada do mesmo gorducho de estilo hip-hop, que, agora, estava distraído em uma partida de sinuca, conversando com um tipo que fazia mais estilo punk, de costas para ela.
Mal servi o mojito que ela pedira (e lá se foi todo o rum), ela, sem se importar se o seu acompanhante estava escutando, puxa o seguinte diálogo, com bastante intimidade, enquanto eu já pegava a coqueteleira e começava a misturar ingredientes para atender mais um pedido (e lá se foi a última garrafa de martini), respondendo, quase distraído, a suas perguntas:
- E aí, Macário, como vai?
- Eu? Eu vou bem...
- Como está o nariz hoje?
- Meu nariz? Ah... Está ótimo.
- Não precisou de outro curativo?
- Não. E não se preocupe, que nada possivelmente contaminado vai cair na bebida de alguém... (risos)
- No que você machucou o nariz?
- Eu? Foi em uma briga.
- Se meteu em briga?
- Pois é... não pude evitar. (dando de ombros) Cidade violenta. Qualquer um pode ser atingido.
- Quando foi?
- Semana passada. Digo, foi no domingo.
- Uau. E você venceu a briga?
- Eu? Não. Eu... eu apanhei, isso sim.
- Puxa, mas que pena. Quem fez isso com você?!
- Uns mal-encarados, uns pitboys. Nem lembro a fisionomia deles.
- E o que você fez para haver briga?
- Eles estavam espancando um mendigo, e acabei intervindo.
- Uau... (admirada, arqueando a sobrancelha) você, defendendo um mendigo?!
- Não sei por que eu intervim... Devia ter ficado na minha, ou...
- Foi muito corajoso e generoso de sua parte.
- Você acha? (encabulado)
- Acho, digo... você, se dispondo a defender um mendigo. Quem faz algo assim hoje em dia?
- Pois é...
- E o mendigo... está vivo?
- Vivo e bem... e a esta hora deve estar na aldeia dele.
- Aldeia?
- Era um índio.
- Índio? Uau, nossa.
- É... e iam botar fogo nele. Que nem o Cacique Galdino, ouviu falar dele?
- Ouvi... que crueldade! (expressão de indignação) 500 anos de opressão contra os indígenas não foram suficientes... Ainda bem que você chegou a tempo...
- É, ainda bem. Para ele...
- Mas você não parece muito contente de ter salvado uma vida, Macário...
- Para salvar uma vida, tive de rifar a minha... Até acabei no hospital.
- Sério?! Uau, nossa!
- A maioria das pessoas teria escolhido não intervir, mas eu... não sei o que me deu.
- Não devia ter se envergonhado disso, Macário... Ao menos seu esforço não foi em vão. Uma vida foi salva. Isso não conta?
- Conta... mas nem é típico de mim, sabe...
- Às vezes a gente se surpreende. Quando a gente toma uma atitude que não é típica de nós mesmos, até nós nos surpreendemos, você não concorda?
- Eu que deveria estar dizendo isso...
- Mas se acontecesse de novo... você faria de novo? Digo, você salvaria outro mendigo de ser assassinado, mesmo que isso te custe a vida?
- Bem, eu... eu não sei.
- Bom seria se dissesse sim, sem hesitar... Mas tudo bem, cada um é cada um...
E ela sorveu um gole da bebida.
Por que aquela moça estava tão interessada em mim, e no meu nariz? Achei estranho.
E aquela moça... bem, ela tinha o cabelo tingido de rosa, cortado curto, usava uma maquiagem suave, e, sob o casaco aberto, dava para reparar o decote generoso. Nas mãos, unhas compridas como garras, pintadas de cor escura. Ela até que era bonita, da maneira dela. Mas estava acompanhada, e sabia que não seria muito apropriado se eu fizesse perguntas pessoais para ela, como as que ela me fez.
E nem mais seria possível. O gorducho se voltou para ela, e sinalizou para irem embora. A moça falou: “espere um minutinho, deixa eu pagar”. Oh, hoje ela que estava pagando a conta, ontem foi ele.
Junto com o dinheiro da conta, a moça me entregou um papelzinho dobrado, com uma piscadela. E se foi, junto com o gorducho.
Abri o papelzinho: estava escrito, à mão: “Macário, me liga. Âmbar. 846163648”. O número deve ser de telefone.
Então o nome – ou apelido, ou pseudônimo, sei lá – daquela moça é Âmbar?
Parece que hoje você fez uma conquista sem saber, Macário... Guardei o papelzinho. Posso estar me envolvendo em encrenca, mas talvez eu ligue para ela mais tarde... E só de pensar no cara ao lado dela...
Os outros fregueses restantes no balcão não pareciam ter reparado na conversa entre Âmbar e eu. Estavam cuidando de suas vidas, tendo seus pensamentos influenciados pelo álcool.
Por fim, por volta das duas e meia, o último “monstro” foi embora. Minutos depois, o último freguês – “normal”, um dos que chegaram na “festa” no finalzinho – foi embora. Todos foram dormir.
Eu já estava cansado. Tudo o que queria era cair no sono também. Chegar em casa e me espalhar na cama. Mas tinha de resistir. Tinha de ajudar a organizar o bar.
Mas aí veio a má notícia: o temido dia chegou.
O patrão, muito contente pelo novo dia de lucro, me abordou e anunciou: Macário, amanhã você venha para o bar. Eles ficaram de voltar amanhã. O cara que, ao que parece, é o líder da “gangue”, disse que ela ficou de comparecer amanhã, e fez questão que você fosse o garçom deles de novo. Este final de semana, você vai atender aqui. Sábado e domingo. Eles disseram que no domingo vinham também. Então, contamos com você.
Ah, eu sabia. Sabia que teria de compensar a licença que tirei no início dessa semana maluca. Adeus, balada. Adeus, final de semana. Adeus, garota da semana.
Ei, mas por que estou me lamentando? Já tive a garota da semana. Afinal, a Viridiana não veio dormir comigo no apartamento? Então, isso já está adiantado. Com isso não teria de me preocupar.
Além do quê, eu poderia dormir até mais tarde. Afinal, hoje já é sábado, de madrugada. Podia dormir até por volta das sete, oito horas da noite... Hein? Para estar aqui às seis da tarde?! Agh, está bem, chefe.
Mas por quê tão cedo? Você vai ser treinado, continuou o patrão, para operar um novo equipamento: o cara resolveu nos presentear com uma máquina de chope! É isso aí, Macário: amanhã nós começaremos a servir chope! E fizeram questão que fosse você a encher os canecos!
O bar não dispunha, até então, de uma daquelas máquinas, com torneiras para encher canecas com aquela cerveja cremosa. Havia dias que os fregueses sentiam falta que a gente servisse chope no bar, como se fazia, por exemplo, no bar do Moe, do desenho dos Simpsons, tendo de se contentar com as cervejas comuns de nosso freezer. Por que o patrão não havia se preocupado em instalar uma máquina de chope junto ao balcão? Clientes endinheirados também consomem chope de vez em quando, não?
Com a presença dos “monstros” na minha vida, as coisas estavam mudando, evidentemente.
E que era o líder da “gangue”? Nisso, a imagem do rapaz de cabelo azul voltou à minha mente, e... não, não pode ser ele.

Bem, depois que saí do bar, fui caminhando, calmamente, porém emburrado, até em casa. Cansado, e emburrado por causa das exigências novas, mas com a sensação de leveza proporcionada pelo dever cumprido.
Foi quando fui abordado. Atacado por trás.
Antes que eu percebesse, algo veio em minhas costas, tampou meus olhos com as mãos e perguntou, baixinho, ao pé do ouvido:
- Adivinhe quem é!
A voz era feminina. E a reconheci.
- Maura?!
Meus olhos foram destampados. Virei para trás e dei de cara com a morena sorridente do hospital.
- “Assô”!!
Ela estava vestida toda de jeans. Saia de jeans, casaco de jeans. E a camiseta justinha... era de tecido, mas a estampa imitava jeans. Até o sapato tinha padrão jeans, um all-star azul.
- Oi, Maura.
- Oi, Macário. Zanzando pela noite durante a semana, hein? – sorria, com ar zombeteiro. Daquele jeito que ela fez lá no hospital. – Está certo que hoje já é sábado, mas não podia esperar para ir para a balada?
- Tô saindo do trabalho, isso sim. E você?!
- Não conseguia dormir, e o leite morno não resolvia, então resolvi sair pela cidade. Tomar um ar aqui fora.
- E você faz isso toda vez que não consegue dormir?
- Bem... faço.
Franzi o cenho. Sabia que o motivo real não era insônia pura e simples.
- Você veio foi me procurar.
- Eu... vim, sim. – disse Maura, envergonhada. – Como nós dois ainda estamos nesta cidade, então eu pensei: acho que vou procurar o Macário. Acho que vou querer sair com ele de novo.
- Ah. Sabia.
- Como sabia?
Aqui, fiquei vermelho.
- Teve... hum... uma ex-acompanhante me ligando ontem. Aliás, duas, três... elas queriam uma segunda chance. Hum... teve uma que veio falar pessoalmente comigo. A gente... hum... tomou um cafezinho. Só.
Ela deve ter fingido que acreditou na minha mentira, do mesmo modo como fingi acreditar na dela. Como podia confessar que eu havia transado com Viridiana, a única garota que veio me procurar na noite passada? E logo com a garota que armou um “barraco” no hospital ontem?! Ainda mais sabendo quais eram realmente as intenções de Maura em vir me procurar de madrugada? Aliás... como eu sabia das intenções dela? Será que eu conseguia ler a mente da Maura, me habilitando como telepata, ou ela que deixava muito escancarado? Tem gente que não sabe disfarçar.
- Como vão os machucados? – ela mudou de assunto.
- Muito bem. Curados, já. Até já deu para tirar os curativos.
- Deixe eu ver?
Mostrei a Maura as cicatrizes no pescoço.
- Ah, Macário, assim, sob a luz do poste, não dá pra ver... Vamos passar na sua casa? Acho que sob a luz da sua sala eu posso ver melhor...
Aah, eu sabia. Eu dei um “tá bom”, e ela começou a me seguir.
- Mas como é que você se arrisca, de madrugada, a vir me procurar? – puxei assunto. – Você pode ser assaltada, sabia?
- Saí agora de casa, Macário. E parece que não houve risco nenhum. Além do mais, eu moro aqui perto. Bem pertinho. Já sei, por que você não vem no meu apartamento?
- Seu...
- Eu estou morando sozinha. A kitchenette é meio apertada, mas dá para receber duas pessoas. Nunca tinha ido para a casa de uma garota, né? Sempre preferiu levar as suas garotas para a sua casa, né? Digo, seu apartamento...
- Bem... é que eu deixei coisas para arrumar no meu apartamento, e...
- Ah, Macário, vem pro meu apartamento, vamos fazer algo diferente hoje. Deixa os assuntos da tua casa para o dia seguinte... vamos conversar, vamos avaliar se você não está mesmo se transformando em vampiro, etcétera...
Pelo jeito, vou ter de fazer a vontade dessa garota, ou eu não ia ter a paz suficiente para avaliar os últimos acontecimentos.
- Está bem, vamos fazer algo diferente, hoje.
E foi a minha vez de seguir Maura. Ela me puxou pela mão, sempre olhando em meus olhos. E, distraída, acabou tropeçando em uma pedra solta na calçada, caindo de quatro no chão, ficando apoiada sobre os braços e as pernas.
- Puxa, como sou desastrada, hein? – disse, rindo, e se demorando para levantar.
O motivo da demora, percebo que foi intencional: para que eu acabasse vendo sua calcinha. De saia curta, apoiada no chão, a calcinha aparecia. E era azul, como o restante da roupa. Com o rosto vermelho, ajudo Maura a se levantar, afinal.
- Puxa, Macário, você viu, não foi?
- Não deu para evitar. Você fez de propósito!
- Fiz mesmo? De que cor era, safado?! – pergunta, com o sorriso zombeteiro.
- Azul. Azul. Azuuuuulllllll... – respondo, com um engasgo.
- E aí, Macário, está doido para ver se o sutiã também é azul? Eu mostro...
Quando vimos, já estávamos na frente da porta de acesso dos inquilinos ao prédio.
De fato, ela morava próximo ao bar, apenas dois quarteirões dobrando a esquina.
O prédio dela era estreito. Devia ser mesmo unicamente de apartamentos de solteiro, daqueles muito apertados. E não era muito bem cuidado. No segundo andar, dava para ver uma vistosa pichação. E as paredes tinham manchas de umidade e descascados.
E, antes que ela sacasse a chave e eu pudesse entrar, Maura me surpreendeu de novo, tascando-me um beijo. Na boca. Que eu retribuí. Ficamos algum tempo em frente àquela porta, se beijando sob a luz do poste. Eu sentindo aquele belo corpo junto ao meu. No fundo, eu também queria comer aquela garota de novo... tomara que ela use aquela fantasia de enfermeira de novo...

Está tudo muito estranho... Duas garotas em uma semana?! Ah, deixa pra lá... Depois eu penso sobre isso...

Próximo episódio daqui a 15 dias.
Enquanto isso, nos blogs da Rede Rafelipe - Blog da Letícia, Blog dos Bitifrendis e Blog do Teixeirão - por não ter conseguido produzir tiras nas últimas duas semanas, divulguei fotos de rascunhos de tiras não-aproveitadas durante o processo de confecção. Desse modo, o público tem uma ideia de como é o meu processo de trabalho nessas séries.
E como o folhetim está se saindo? Está bom, está ruim? Devo continuar com essa falta de feedback?
De todo modo...
Até mais!

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