Quinze dias se passaram, e quase que eu não termino o serviço a tempo.
Os que conseguirem desviar suas atenções da Copa do Mundo, prestem atenção ao episódio desta semana de meu folhetim ilustrado para adultos, MACÁRIO.
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de demonstração de degradação humana e de consumo de alimentos impróprios.
A noite passou depressa depois de Cliodna,
Moira e Morgiana saíram do bar.
O último a sair, naturalmente, fui eu.
Mas saí do trabalho intranquilo.
Os Monstros resolveram não ficar para ajudar
na arrumação do bar. Os garçons e eu que ajeitamos tudo, e eu fui encarregado
de trancar tudo na saída – já que fui o último a sair.
Cinco da manhã. A cidade ainda escura, os
postes ainda acesos, o sol ainda não começou a brilhar no horizonte – natural,
por causa dos prédios que estavam na frente. Me pus a caminho do meu
apartamento a pé. Para o apartamento que eu ainda podia chamar de meu. Porque,
em breve, eu teria de morar com o Luce, o vampiro.
Seria mesmo seguro dividir um apartamento com
um vampiro? Ainda que ele garantisse que não ia me morder mais?
Agora, eu estava desanimado. Principalmente
porque não podia contar sobre isso para ninguém. Luce pediu segredo. E eu
estava muito inseguro. Tais coisas aconteciam rápido demais. Mais rápido do que
eu podia digerir. E eu não posso fazer nada – ainda.
Suspirei. E continuei andando. Muito
desanimado. E só esperando ter agora uma noite de sono protegida contra
invasões de portais mentais, contra mulheres e entidades femininas que se
alimentavam de fluidos sexuais. Chega de sexo esta semana. Essas mulheres não
conseguem se satisfazer, e agora tentam sugar o máximo dos meus fluidos. Quando
não querem meus fluidos, querem minhas energias, minha disposição. Por isso
apareciam no meu apartamento, sob o pretexto de apenas conversar, e por fim me
humilharem. Por que não consigo gritar que odiava as mulheres?! Está certo,
cometi muitos pecados, mas eu precisava desse tipo de castigo?!
Dentre tantas pessoas no mundo, por que o
escolhido para passar por esse tipo de situação fui eu?!
Eu assim refletia, desanimado, quando, de
repente, ao passar pelo espaço entre dois prédios, fortemente sombreado, sou
puxado. Alguém pega meu braço e me puxa violentamente. Levei um grande susto.
Essa não! Vão me assaltar!! Vão me sequestrar
de novo!!! Vão...
- Ei, Macário, relaxa, somos nós.
Surpreso, dei de cara com o sorriso de dentes
afiados de Richard, o punk, integrante dos Animais de Rua, a gangue.
Me afastei um pouco, de susto. E vislumbrei.
Não só ele estava ali, como o restante da
gangue.
Richard, o punk. Ringo, o rapaz dos muitos
braços, agora com apenas dois. Fido, o rapaz da língua comprida (literalmente).
Aura, a transmorfa, transformada em... humana. Boland, o rapaz javali, com a face
humana, desta vez. Gil, a garota dos braços extensíveis, agora no comprimento
normal. Pauley, o rapaz dos alfinetes, com vários alfinetes no rosto. Eliane, a
bruxa, com seu cabelo bicolor e um casaquinho sobre o vestido. E Fifi, a líder,
com sua baixa estatura, as mangas da camisa e da calça dobradas para poderem
caber nela, e sem as orelhas felinas.
Estando naquele momento circulando no mundo
humano, todos eles tinham de assumir as formas humanoides. Ainda não vi a forma
animal do Richard, ou da Gil, ou do Pauley, ou de...
- Oi, Macário. – cumprimentou Fifi, interrompendo
meus pensamentos, com um sorriso amarelo e desagradável.
- Hã... oi, Fifi... – foi minha vez de
ostentar um sorriso amarelo. – Oi, pessoal.
- Ooi, Macário! – a gangue toda cumprimentou,
desta vez com simpatia.
Comecei a sentir o suor frio.
O que eles iam fazer comigo?
- Surpreso? – falou Richard.
- Muito. – respondi, com toda calma que pude
reunir. – O que vocês...
- Você viu que a gente estava no bar, né? –
falou Fido. – Auf!
- Como poderia deixar de reparar? – foi minha
resposta. E dava para reparar que eles, todos, estavam levemente bêbados.
- Pois é – falou Boland – hoje a gente
resolveu, todo mundo aqui, dar um rolê. E, claro, nossa primeira parada foi o
bar, o nosso bar favorito...
- Com o nosso agora garçom favorito, né,
amor? – falou Gil.
- Sim, sim. – falou Ringo. – Fazer um
campeonatinho de sinuca, tomar umas biritas...
- É, e firmar uns negócios. – falou Eliane. –
Afinal, é o Luce quem está ajeitando os próximos shows da nossa banda.
- Aí, as minhas parentas apareceram, pela primeira
vez. – falou Richard. – As irmãs da Morgiana. Essas não costumam aparecer junto
com a gente...
- É, eu notei que vocês não se dão muito bem.
– respondi.
- Como sabe?
- Ué, você deu um gelo na Moira e na Cliodna,
e elas também te deram gelo. Cada um agiu como se o outro não estivesse ali.
- Ah, pois é, né?
- Que olhos de águia você tem, Macário! É
como se você pudesse ler nossa mente!!! – falou Aura, rindo ebriamente.
Suspirei. Ora, eles também podiam mandar
pedidos de drinques, telepaticamente, para mim! Além disso, é puro método
dedutivo de um futuro médico.
Richard continuou falando.
- Sabe, com a Morgiana eu me dou muito bem. Somos
assim, ó – e Richard esfregou os dois dedos indicadores um no outro. – Mas com
as irmãs dela... Elas não gostam muito de mim. É, é por causa da diferença
social, mesmo. Afinal, elas são ricas, são médicas, digo, uma delas é dentista,
mas enfim... e queriam que eu também fosse médico, e eu resolvi jogar tudo pro
alto... Digamos que eu sou a ovelha negra da família, e a Morgiana está se
tornando, também, e, que bom ver que eu não estou sozinho.
Que estilo de falar atropelado. O álcool
ainda fazia efeito em suas veias.
- Mesmo entre os Monstros, Macário, os mundos
são diferentes. – falou Fifi. – Há diferenças marcantes entre Monstros de uma
mesma espécie no que diz respeito a... diferenças sociais. Sabe, ricos, pobres.
- Em algum lugar, caro Macário, também existe
um vampiro pobre, um lobisomem rico... – falou Pauley.
- É, compreendo... – respondi.
- E ainda tem quem se ache melhor que os
outros, só porque são ricos. – falou Eliane. – Não acontece apenas entre os
humanos, mas também entre os monstros...
- Melhor deixar pra lá, pessoal. –
interrompeu Fifi. – Vamos reclamar dos filhos da p(...) numa outra ocasião, ou
vai estragar o restante da noite. Temos tanto a fazer ainda hoje... Nyah...
Todos concordaram. Ninguém ali estava a fim
de estender aquele papo, falar de diferenças sociais. Eles me olhavam e
esperavam uma reação minha.
- E... o que vocês querem de mim agora? – perguntei,
inocentemente.
- Aonde você ia, Macário? – perguntou Aura.
- Eu ia para meu apartamento. – respondi.
- Ia, Macário, ia. – falou Fifi, sorrindo. –
Hoje você vem com a gente.
- E...eu?! – arregalei o olho.
- Você, Macário.
- Para... para onde?!
- Dar um rolê com a gente. – falou Richard.
- Rolê com...?
- É, Macário, o Luce, a Âmbar ou a Morgiana
não podem ficar com você só pra eles. Nyah... – falou Fifi, com um olhar
lascivo. – Vamos dar uma voltinha por esse resto de noite, meu amor. Junte-se a
nós.
- É, Macário, junte-se a nós. – falou Gil,
olhando-me como se fosse uma criancinha esperançosa.
- Mas... – tentei recusar – Mas eu trabalhei
a noite toda, e ontem eu tive uma porção de complicações... eu tenho de ir pra
casa, à noite eu...
- Ah, Macário, por favor, venha conosco
passear. Só um pouquinho... – falou Eliane. – Só estudar, trabalhar e ir pra
casa, ninguém aguenta. Quando foi a última vez que você deu uma volta pela
cidade, a esmo? Hummm?
- É só uma voltinha pela cidade, vai. – falou
Gil. – Vem conosco, por favor...
- A gente promete que depois leva você para
casa, antes mesmo do sol raiar. – falou Fifi, cruzando as mãos. – Por favor,
Macário, só esta madrugada. Nyah...
- Diz que vai passear com a gente, Macário. –
falou Aura, fazendo um olhar pidonho, os olhos esbugalhados como os de um gato
triste, com as mãos cruzadas. – Oh, diz que vai, diz, diz, diz...
Fifi, Eliane e Gil começaram a fazer o mesmo
olhar esbugalhado, de criancinha esperançosa.
Oh, não. Aquelas quatro garotas estavam
captando meu ponto fraco. Como resistir a quatro lindas garotas pedindo
insistentemente para ir com elas sabe-se lá onde? E ainda mais com um olhar
pidonho?! Engoli em seco.
- Hã... tá. Tá bom, eu vou com vocês. – respondi,
entre dentes.
- Yes! – Fifi exclamou, fechando o punho.
Os homens do bando se entreolhavam, com
olhares decepcionados. Fossem eles, não teriam conseguido me convencer a... ir
sabe-se lá para onde.
- Ah, cara, se eu fosse mulher!... – ouvi
Ringo exclamar, baixinho.
- Só elas mesmo para convencê-lo assim. –
concordou Richard, baixinho.
Franzi o cenho. Acham que eu não ouvi o que
vocês murmuraram aí?! Reparei inclusive que Boland fez um olhar de ciúme para
mim, já que sua namorada estava se derretendo para cima de mim. Voltando-me
para as garotas:
- Eu vou com vocês, mas vocês prometem que,
antes do sol raiar, eu estarei em meu apartamento?
- Palavra, Macário. – falou Eliane. – É só
uma volta, para todos nos conhecermos melhor. Vamos conversar, passear.
- É. – falou Pauley. – Hoje é dia de fazermos
nossas compras.
- Vem conhecer nosso modo de viver, Macário.
Você vai gostar. – falou Ringo.
- Está bem. – falei, fazendo beiço. – Vamos
logo. Para qual direção?
- Fido. – falou Richard, voltando-se para
este.
Arqueei a sobrancelha. Mas, depois, comecei a
entender.
Pouco depois que Richard chamou a atenção de
Fido, este começou, como um cachorro, a farejar o ar. Sua cabeça virava para
todas as direções. O nariz farejava sem parar. Até que, depois de um minuto, Fido
apontou uma direção:
- Pra cá!
Apontou para a rua. E começou a correr na
frente. Os outros foram atrás. E eu, por pura curiosidade, e para não faltar
com minha palavra, fui atrás. Podia ter aproveitado para fugir, mas eles eram
nove contra um. Alguém podia notar.
Dentre tantas pessoas no mundo, por que eu
tenho de passar por isso?!
O grupo começou a percorrer a rua, passando
por várias quadras, se afastando da direção do meu apartamento. Fido farejando
o ar sem parar. Ah, acho que estou entendendo que tipo de criatura era ele. E o
propósito da língua grande, da boca sempre arfante.
Cerca de quatro ou cinco quadras depois, Fido
apontou para um beco.
- Aqui.
O beco estava cheio de sacos de lixo, e um ou
dois cães vasculhando.
- O... o que vocês vão fazer? – perguntei.
- As compras, ora! – falou Pauley.
- Compras?! Mas... aqui é um beco!
- Claro que sim. – falou Ringo. – Esqueceu
que somos freegans?
- Este aqui, Macário, é o nosso supermercado!
– falou Richard.
Me lembrei que eles haviam falado, em certo momento,
que recolhiam restos de comida no lixo.
Aí, os membros da gangue, guiados pelo faro
aguçado de Fido, começaram a vasculhar os sacos de lixo. O local, aliás, ficava
ao lado de um restaurante. Mas não era aquele mesmo beco onde passei apuros
certa vez. E o local ainda era próximo a um poste aceso, que ajudava a iluminar
bem.
Fifi puxou, não vi de onde, um pedaço
quadrado de plástico, desses para forrar mesas, que ela estendeu no chão. E ela
ficou em pé, diante do plástico, orientando os outros membros da gangue, que
desamarravam os sacos de lixo, enfiavam as mãos dentro, vasculhavam (e havia um
surpreendente cuidado para não deixar lixo cair para fora do saco), e tudo o
que eles considerassem apropriado para comer, eles puxavam, e colocavam no
pedaço de plástico. Restos de ossos com carne, pedaços de massa frita, restos
de salada, folhas de alface, fatias de tomate, pedaços de pão... muita coisa
desperdiçada, surpreendentemente aproveitável.
- Hoje a ida ao “mercado” vai dar boa! –
exclamou Fifi, feliz. – Olhem só quanta comida aproveitável desperdiçaram hoje!
- Bando de porcos! – exclamou Boland.
- Veja só quem fala! – falou Aura.
- Eu fora! – retrucou Boland. – Não sou como
esses humanos que deixam coisa no prato!...
- Os males do consumismo! – exclamou Eliane.
- Melhor para nós! – exclamou Ringo.
- Ah, lembrem-se, turma, não deixem lixo
jogado por aí! – falou Fido.
Eu só observava, maravilhado, aqueles oito,
entre moscas, baratas e cães vagabundos, vasculhando alegremente os sacos de
lixo, como quem conferia os itens em uma loja durante uma liquidação. Não era
muito diferente de ver mendigos vasculhando lixo. Mas aqueles “mendigos” eram
mais limpos que os moradores de rua. Ver aquele pessoal agindo de maneira tão
colaborativa, vasculhando organizadamente sacos de lixo, procurando comida, e
depois deixando tudo mais ou menos organizado, voltando a amarrar os sacos de
lixo depois de remexidos (isso foi o que mais me surpreendeu, a preocupação
deles, ainda, em não deixar o beco bagunçado, em deixar tudo mais ou menos como
encontraram, evitando assim suspeitas)... Os humanos não fariam melhor. Eliane
era humana, mas, junto com aquele bando, fazia tudo muito melhor que um humano.
O que a maioria das pessoas consideraria repugnante, chamava minha atenção.
Fifi não estava vasculhando o lixo. Sua
tarefa era afastar os cães vadios que tentavam pegar uma parte dos achados
deles.
Eles chegaram a me convidar para remexer o
lixo com eles, mas me recusei, e eles não se abalaram. O máximo que eu podia
fazer era vigiar, da rua, ver se não aparecia polícia, ou alguém que nos
denunciasse. A última coisa que faltava era sermos todos flagrados por
policiais nessa estranha operação. E, que estranho, não havia sequer um
policial nas ruas passando naquele momento... E o barulho que eles faziam não
chamava a atenção de ninguém próximo, nenhuma luz se acendeu nas janelas
próximas.
- É, acho que aqui já deu. – falou Aura,
anunciando que a atividade chegara ao fim.
- Mas não dá para todo mundo... – falou
Richard, examinando o monte de comida catado.
De fato. Não era tanta coisa assim. Em certos
termos, aquele monte de comida daria para quatro pessoas, um prato cheio para
cada um.
- Não esquenta. – falou Fido. – Estou
farejando mais comida em outro local. Ali está mais cheio.
Fifi juntou as pontas do plástico, formando
uma trouxa. E depois, jogou a trouxa nas costas.
- Leve-nos até lá, Fido. – ordenou. – Isca,
rapaz.
Fido recomeçou a farejar o ar. E, desta vez,
anunciou a direção a seguir com um uivo. Todos foram atrás do rapaz cachorro.
Só me restava seguir aquele grupo.
Estava cada vez mais me afastando da direção
de meu apartamento, e me aproximava do centro da cidade.
O grupo foi parar nos fundos de uma
lanchonete, que estava fechada. Mas, nos fundos, já estava ali um contêiner
cheio de sacos de lixo.
Os Animais de Rua praticamente mergulharam no
contêiner, puxaram os sacos dali de dentro e começaram a vasculhar.
- Fiquem de olho ao redor, turma! – exclamou
Fifi.
- Podem deixar comigo, eu vigio! – eu falei.
Todos sorriram. Por alguma razão, eu já
estava me sentindo entrosado.
Fifi abriu a trouxa. E o pessoal acrescentou
aos restos já colhidos mais coisas aproveitáveis – pedaços de pastel, restos de
hambúrgueres e de cachorros-quentes. Incrível o que tanta gente deixava no
prato da lanchonete. Tive a impressão de que eles haviam catado um hambúrguer
inteiro, sem uma mordida sequer. Desta vez, deu para encher a trouxa.
E o pessoal ainda conseguiu algumas latas e
garrafas com restos de refrigerante não bebido, praticamente pela metade. Aura
conseguiu uma garrafa de refrigerante grande, e, com cuidado, foi despejando os
restos de refri na garrafa, misturando os sabores. Refris de cola, limão,
guaraná, laranja e uva, misturados, resultando em um líquido escuro. As latas
esvaziadas ela ia colocando em uma sacola de lixo.
- Espere só para provar isto, Macário! –
falou Aura, sorrindo. – Vários tipos de refrigerante misturados!
Engoli em seco.
Minutos depois, Fifi chamou nossa atenção.
- Depressa, depressa, vamos embora! Eu vi
gente aqui por perto! Já tem o suficiente para todo mundo! Vamos, vamos!
Rapidamente, o pessoal amarrou os sacos de
lixo, jogou tudo no contêiner e o fechou. E todos se colocaram em disparada, e
eu também. Em alguns minutos, nos encontrávamos em uma praça.
- Ufa!... – suspiraram.
E foram falando:
- Se nos pegam...
- Será que fomos vistos?
- Acho que não...
- E aí, tem pra todo mundo?
- Acho que tem pro lanche...
- Esperem aí... – interrompi aquela conversa.
- O que foi, Macário?
Ali próximo, havia uma lixeira de praça. Meu
olho havia batido em alguma coisa ali dentro, que identifiquei instintivamente.
E, da lixeira, tirei um pacote de salgadinho ainda cheio pela metade.
- Olhem o que eu achei! – exclamei.
O pessoal vibrou de alegria. Até eu me
espantei com aquele golpe de sorte. Achar aquele pacote quase cheio de
salgadinho ainda fresco, e desperdiçado. E nem chegava a ser um salgadinho de
marca de qualidade, era antes daquelas marcas de fundo de quintal, quase que
apenas massa de milho.
- O Macário está pegando o espírito! –
exclama Fifi, feliz.
- Viva Macário!! – os outros exclamaram. –
Hurra!!
- Ah, turma, foi por acaso... Foi sorte. –
falei, encabulado.
- Esse tipo de sorte que nos beneficia,
Macário! – falou Eliane. – O que para outros é lixo, para nós é luxo!
- Ainda mais quando é salgadinho! – falou
Boland.
- Fica de olho aí, Macário, quem sabe você
não acha mais alguma coisa... – instruiu Fido.
Na mesma lixeira, havia ainda um resto de um
churro, mas achei melhor não chamar a atenção: estava sujo de cinza de cigarro,
então não ia dar.
- E aí, turma, vamos nos sentar em algum
lugar para comer! – falou Gil.
- Vamos no lugar de sempre? – pergunta Ringo.
- Acho que vai ter de ser... – falou Fifi. –
Vem, Macário, vem conhecer um de nossos lugares favoritos.
O grupo começou a voltar pelo mesmo caminho.
Na direção do campus da universidade.
Fomos parar nos arredores, na beira de um
córrego que passava por dentro do bairro, que já havia se convertido em esgoto,
margeando a avenida que terminava no campus universitário. Próximo a esse
córrego, a alguns metros, cresciam algumas árvores. E, do outro lado do riacho,
calçada à beira da avenida. Sob o córrego, algumas pontes de concreto e madeira,
passarelas para a área residencial que ficava atrás das árvores.
Carros circulavam pela avenida – já deviam
ser seis da manhã. E o grupo, à beira daquele córrego que exalava um leve
cheiro acre, sentado, observando o movimento da madrugada, o céu ainda escuro
mas já exibindo o brilho da manhã, beliscando a gororoba que havia ficado na
trouxa – os restos de comida, com a corrida, se misturaram. Até despejaram o
salgadinho à mistura, e misturaram! Os nove membros comiam com as mãos, pegavam
uma porção e simplesmente jogavam na boca.
Me convidaram para me juntar à refeição. Com
certo receio, me juntei. O gosto da minha porção ficou estranho, mas ainda
estava bom. Igualmente estranho estava o gosto da mistura de refrigerantes, que
passava de um por um, todo mundo bebendo um gole da mistura pelo gargalo da
garrafa.
E fiquei pensando em pessoas que passavam
fome, naquele momento, no mundo. A mistura de restos de comida, para quem se
alimentava todos os dias três vezes, pareceria uma coisa repugnante, restos de
sanduíches, saladas, ossos, macarrão e salgadinhos. Mas, para quem estava privado
disso, era um paraíso. E, ainda por cima, aqueles haviam desperdiçado muito do
que poderia ser um tesouro para esses.
Espero que, dentro de algum daqueles carros
que passavam na avenida, não esteja um conhecido meu. O que ele diria se me
reconhecesse entre os mendigos que ali, sob as árvores de uma madrugada fresca,
partilhavam uma refeição na beira de um córrego?
- Diz aí, Macário. Não foi divertido? –
perguntou Ringo.
- Não foi uma incrível quebra de rotina,
Macário? – perguntou Aura.
- Que tal a comida, Macário? – pergunta Gil.
- E a bebida? – pergunta Richard.
- Eu... eu ainda não sei o que dizer. –
falei. – Vocês fazem isso todos os dias?
- Quando a grana está curta... – falou Fifi.
– Mas podemos dizer que também somos os lixeiros do mundo. Nyah.
- O que ninguém aguentou comer, a gente
aproveita. – falou Fido.
- E o que ninguém aguenta mais vestir, a
gente também aproveita. – falou Eliane.
Olhei para ela com pena. Uma garota tão
bonita, levando uma vida de marginalidade por opção. Aliás, comecei a olhar
para todos com pena. Todos eles, ali, em uma vida semimarginal. Ora andando com
a “elite” dos Monstros, comandada por Luce, frequentando um bar; ora circulando
como cães vadios nas ruas, catando comida nas lixeiras dos restaurantes. E
pensar que, a poucos dias de ir morar com um vampiro rico, eu estava ali,
circulando pelas ruas com uma gangue...
- Ei, Macário, no que está pensando? –
pergunta Fifi.
- Pensando se vocês realmente gostam desse
tipo de vida.
- Como assim? – pergunta Richard.
- Será que tudo o que vi de vocês, Animais de
Rua... a banda, a moradia, vocês pelos bares, o modo como se alimentam...
corresponde a quantos por cento do que eu sei de vocês? Vinte e cinco?
Cinquenta por cento?
- Bem – disse Eliane – vamos dizer que o que
você viu sobre nós... já é setenta e cinco por cento do que você sabe.
- Setenta e cinco por cento... – murmurei. –
E os outros vinte e cinco por cento, correspondem a quê?
- Bem... – Ringo já ia falando, quando, de
repente, Fido ergueu a cabeça, assustando a todos.
- Que houve, Fido?! – pergunta Fifi.
- Estão aqui! – responde Fido.
- Quem está aqui?! – pergunta Fido.
- Eles, ué!
Todos, de repente, ficaram tensos.
- Eles?! – pergunta Aura. – Essa não!
- Temos de nos mandar! – falou Richard.
- Um momento! – pedi. – Eles quem?!
- Eles, os nossos inimigos, Macário! – falou
Eliane.
- Quem?! – perguntei.
Aí, começo a ouvir rosnados vindos das
árvores.
Tive um pressentimento ruim. Acho que sei de
quem eles estavam falando...
Mas ninguém teve tempo para se mexer.
Devagar, eles começaram a sair de trás das
árvores, rosnantes, salivantes, prontos para dar o bote.
Comecei a suar frio, os dentes rangiam.
Os cães demoníacos. Voltaram.
Próximo capítulo daqui a 15 dias.
Até aqui, como está ficando? A história melhorou? Piorou? Devo continuar? Parar?
Deixem sua opinião!
E até mais!
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