Hoje,
vamos tratar de HQ brasileira. Para hoje, escolhemos uma graphic novel, de um
tipo de graphic novel que não é tão comum, pelo menos no Brasil, onde já é
complicado lançar um álbum de HQ de ficção ou de reconstituição histórica;
imagine então uma graphic novel autobiográfica, sobre a vida do próprio autor –
ainda mais de um que os leitores mal conheciam até então.
Sim:
hoje vamos falar de uma HQ onde a base da história é o seu autor falando de sua
própria vida, sem rodeios ou inibições.
Hoje
vamos falar de MEMÓRIA DE ELEFANTE, de Caeto.
APRESENTANDO O AUTOR
MEMÓRIA
DE ELEFANTE, publicado em 2009 pela editora Companhia das Letras, selo
Quadrinhos na Cia., é apenas o primeiro volume das memórias quadrinizadas de
Caetano Melo dos Santos, vulgo Caeto.
Nascido
em Assis, interior de São Paulo, em 1979, Caeto está no mercado editorial desde
o ano 2000, como quadrinhista, ilustrador de livros e pintor de quadros. Seus
trabalhos de HQ foram inicialmente publicados nos fanzines Sociedade Radioativa e Glamour
Popular, editados por ele. Ele também tem música em seu currículo, à frente
da banda Samba Concorrência – apesar do nome, é uma banda de rock. Já ilustrou
livros de Fernando Bonassi, Heloisa Prieto e Dráuzio Varella, entre outros
autores. E já publicou HQs curtas em diversas revistas, entre elas a Carta na Escola.
Até
o momento em que escrevo, Caeto só tem três álbuns de HQ publicados. O primeiro
foi este MEMÓRIA DE ELEFANTE, que saiu em 2009. O álbum rendeu a Caeto uma
participação na Exposição de HQ Autobiográfica no 23º Amadora BD Festival, em
Amadora, Portugal, em 2012, com exposição de originais das páginas.
Em
2014, pela editora Peirópolis, Caeto publica A Morte de Ivan Ilitch, adaptação para HQ do romance do escritor
russo Leon Tolstoi.
E,
em 2016, pela Companhia das Letras, publica sua segunda graphic novel
autobiográfica, Dez Anos para o Fim do
Mundo, continuação de MEMÓRIA DE ELEFANTE.
E já
está em preparação um terceiro volume de suas memórias em quadrinhos, A Sombra Sonora do Disco Voador.
O
trabalho de Caeto pode ser conhecido – quem ainda não conhece – em seu site
pessoal: www.caeto.com.br. Os
dados acima foram baseados nos constantes no site.
MAIS UM POUCO DO AUTOR
Com
MEMÓRIA DE ELEFANTE, o Brasil encontrou um representante na tendência das HQs
autobiográficas e confessionais, então um gênero em moda no mercado de
quadrinhos. Quer dizer, foi na década de 2000 que o Brasil começou a receber
álbuns autobiográficos de autores estrangeiros que tiveram grande repercussão
no exterior. Os maiores exemplos de álbuns que tiveram como matéria-prima a
vida do próprio autor são: o Maus de
Art Spiegelman; o Persépolis de
Marjane Satrapi; o Epilético de David
B.; e o Retalhos de Craig Thompson,
todos sucessos de público e crítica. Não tenho conhecimento de algum outro
autor brasileiro que, antes de Caeto, tenha publicado um álbum de HQ baseado em
sua própria vida, em um tom confessional, algumas vezes indo do plano
individual para o coletivo, incluindo sua própria visão da época em que viveu.
MEMÓRIA
DE ELEFANTE se detém basicamente no plano pessoal; é o retrato do início de
carreira de Caeto, um caminho cheio de dificuldades e boemia, e de seu difícil
relacionamento com a família – ainda mais com o pai, que tardiamente assume ser
homossexual e soropositivo.
Ah:
uma advertência. Existe outro livro com o nome Memória de Elefante, escrito pelo português António Lobo Antunes.
Mas esse livro, e o de Caeto, só se confundem pelo título.
Voltando
à graphic novel. Caeto nos conta sua trajetória pessoal em um tom seco e sem
inibições, sem papas na língua, de modo que o leitor escolhe se quer simpatizar
ou não com os personagens; em um estilo de desenho em preto e branco realista
estilizado, rápido, nervoso e quase xilográfico – basicamente uma linha clara
com inserções ocasionais de hachuras, ao estilo dos já citados Art Spiegelman
ou Marjane Satrapi – e com palavrões, cenas de nudez e discretas cenas de sexo
e de porres. Tudo em bem servidas 232 páginas, em narrativa dividida em oito
capítulos, não linear, com muitos cortes, flashbacks e flashforwards, de acordo
com a memória de seu autor. Apesar da extensão, o livro é bem rápido e
agradável de ler. Dá para concluir a leitura em um dia, se você não estiver
muito ocupado.
A
vida de Caeto é praticamente a vida de qualquer artista gráfico brasileiro, da
maioria esmagadora dos brasileiros que resolvem ganhar a vida pintando,
desenhando, compondo música... e/ou bebendo. Quando o caminho parece promissor,
quando nosso trabalho tem tudo para ganhar o mundo, quando estamos prestes a
gravar nosso nome no mármore da história, os projetos grandiosos acabam caindo
por terra antes de alcançar voos mais altos. Você, que deve trabalhar como
artista gráfico, deve saber como é.
O
autor de MEMÓRIA DE ELEFANTE não foge à regra. As HQs de Caeto não chegam ao
grande público; sua música não é comercial o suficiente para fazer sucesso; e
seus quadros são vendidos a conta-gotas. Cada venda que consegue realizar, e
cada trabalho de ilustração que consegue pegar, e cada dívida que consegue
pagar, é motivo para comemoração – de preferência, com muita bebida alcoólica.
No fracasso, também dê-lhe bebida para lidar com as crises depressivas – uma
atitude que Caeto mantinha desde os catorze anos. E some às perspectivas
profissionais limitadas, ainda, o fracasso na vida amorosa – Caeto tem diversos
casos ao longo da narrativa, até encontrar a atual companheira, Luana, mãe de
seu filho Tomazo.
Mas
a trajetória de Caeto parece ainda mais dramática, já que o leitor pode,
eventualmente, se espelhar nele. Caeto é praticamente como cada um de nós.
Conforme a gente vai lendo seu relato pessoal, mais a gente quer descobrir se
ele conseguiu resolver seus problemas pessoais. O leitor torce para que o autor
alcance êxito. Torce para que o autor termine sua narrativa em um momento em
que ele possa considerar um final feliz. Mas não é bem assim...
O
foco da narrativa é o período entre o final da adolescência, no início dos anos
2000, e a publicação do álbum.
Em
ordem cronológica quase exata, os acontecimentos são assim: Caeto, no início da
adolescência, morava com o pai, um livreiro falido, em São Paulo. Ele se separou
da esposa depois que assumiu a homossexualidade, após um casamento tumultuado e
traumático, e foi tocar seu negócio em São Paulo, ao lado do amante. Na época
da separação, Caeto tinha onze anos, e foi um choque para ele descobrir a real
condição do pai. A mãe do autor muda-se para o interior do estado. Mais tarde,
o pai fecha a sua livraria – e ele havia contratado até pais de santo para
benzer o negócio – e vai morar no interior, em Bauru, estado de São Paulo. O
pai acaba descobrindo, ainda por cima, que é portador do vírus HIV, contraído
após uma relação sexual na raiva. Tudo o que deixa para o filho, que decide
ficar morando em São Paulo, são três caixas de livros e um relógio cuco. Caeto
vende os livros e o relógio, e com o dinheiro, consegue segurar a barra por um
tempo. Ele, então, está morando com um amigo, Shaquil, e sua família.
Porém,
as acomodações são ruins: a casa vive infestada de pulgas e ratos, vive
bagunçada, e os moradores da casa nem se preocupam em fazer a limpeza. Por
muito tempo, as mulheres da casa sequer se mexem para mudar sua situação – e,
ainda por cima, também “desviam” o dinheiro que deveria ser usado no aluguel,
não bastasse o irmão de Shaquil ser drogado. O único que parece interessado em
fazer algo parece ser Caeto, que então trabalhava em um bar. Tanto que, quando
ele consegue pegar um trabalho de ilustração de livros, parte do dinheiro ganho
vai para pagar a conta da luz da casa, que fora cortada. Claro que, enquanto
isso, Caeto vive uma vida boêmia, pintando quadros e em bebedeiras com os amigos.
E era na proximidade da casa e Shaquil que Caeto começou a vender seus
primeiros quadros. O primeiro quadro que conseguiu vender o encheu de
esperança.
Mais
tarde, Caeto divide uma casinha dos fundos com um amigo, Ulisses, um alívio –
momentâneo – em sair do pulgueiro. Ali, Caeto se dedica mais aos fanzines, às
pinturas e à banda. Mas as coisas começam a ficar difíceis. Caeto, agora
desempregado, carente e deprimido, e ainda em constantes bebedeiras, precisa
constantemente pedir dinheiro emprestado para pagar o aluguel e comprar comida.
Ele recebe muitas promessas de divulgação de seu trabalho, e tem uma chance
quando o dono de uma galeria de arte, estrangeiro, se interessa em expor e comercializar
seus quadros – no entanto, as coisas correm devagar demais. E, ainda por cima,
Caeto recebe um hóspede inesperado: o cachorro Júlio, um vira-latas que uma
amiga pediu para cuidar. No entanto, Caeto se afeiçoa ao cachorro, e este a
ele. O cachorro Júlio, aliás, é um dos personagens mais importantes da
narrativa – Caeto dedica muitas páginas à sua convivência com o cachorro, que
inclusive foi retratado em um de seus quadros.
A
situação começa a ficar insustentável para Caeto, que já cogita voltar a morar
com a mãe no interior. Até que começa a aparecer uma luz no fim do túnel: um
amigo do pai, Ricardo, deixa Caeto ficar em seu apartamento, como um caseiro.
Só a chance de não precisar sair de São Paulo dá a Caeto um estímulo a mais:
ele resolve sair à procura de trabalho. Foi aí que nasceu a oportunidade, junto
a uma editora, para a produção de um álbum – este. E, ainda por cima, Caeto
começa a trabalhar em uma livraria, um sebo de uma mulher muito muquirana e
cheia de exigências. Mais tarde, Caeto entra em uma batalha judicial contra a
dona do sebo, pelos seus direitos trabalhistas, depois que acaba demitido. Foi
nessa época que Caeto, ainda na atividade fanzineira, conheceu Luana, que se
tornaria sua namorada, confidente, e o estimularia a beber menos e mudar um
pouco sua vida boêmia.
As
coisas já começam a ficar melhores quando Caeto consegue uma função em uma casa
de shows, como promotor de eventos – e, claro, encaixando sua banda na
programação, sempre que pode. Agora, ele está em condições de devolver todo
dinheiro que pediu emprestado. Mas, na família, as coisas não vão muito bem: o
pai adoece. Apesar de estar tomando o coquetel de remédios contra a AIDS, ele
reluta em seguir o tratamento. E, ainda por cima, nunca deixou de destratar as
pessoas ao seu redor, nem os filhos. Sim, o pai de Caeto nunca foi uma pessoa
fina no trato – ao menos, essa foi a imagem que o autor quis passar da figura
paterna, que sempre fora distante. Caeto faz constantes visitas ao pai, que vai
ficando mais fraco e magérrimo a cada dia. São constantes as brigas entre o
autor e a irmã a respeito do destino do pai. Caeto, inclusive, chega a deixar
Júlio morando com o pai, fazendo-lhes companhia. Até que, inevitavelmente, o
pai acaba morrendo. E até esse ponto que vai a narrativa.
Mas
é claro que a ordem que apresentei aqui não é a do álbum, é a ordem linear dos
acontecimentos. MEMÓRIA DE ELEFANTE começa com uma breve introdução: Caeto
carrega para seu apartamento um quadro de sua autoria que ele resgatou. Aí, o
primeiro capítulo trata do momento em que Caeto e Ulisses alugam a casa nova, e
no momento em que Júlio fica na casa deles. No segundo capítulo, ele é
descoberto pela galeria de arte; o terceiro capítulo trata de sua situação ruim
até o momento em que ele cogita sair de São Paulo; o quarto e o quinto capítulos
tratam do período em que ele vai morar com Shaquil e sua família, e de seu
período trabalhando no bar. O sexto capítulo começa quando Caeto vai morar no
apartamento de Ricardo, e segue contando o período em que vai trabalhar na
livraria, de como conheceu Luana, seus primeiros encontros, e as constantes
visitas ao pai, em Bauru; no sétimo capítulo, Caeto já está trabalhando na casa
de eventos; e, no oitavo capítulo, temos o vislumbre dos últimos dias de seu
pai, que viveu fazendo o que quis sem se importar com a opinião alheia.
O
álbum é cheio de momentos de representações de sentimentos e de fatos ao pé da
letra, como convém a uma HQ confessional. Além disso, Caeto não se furta em
relatar pequenos episódios de sua vida entre os grandes episódios, como a vez
em que caiu dentro de um túmulo de cemitério.
O
retrato de uma vida que parece surreal demais para ser verdade, mas de fato
aconteceu. Às vezes sentimos que estamos diante de uma história de superação que termina em vitória, mas não é bem assim: Caeto conseguiu superar o momento mais difícil de sua vida, mas ainda não venceu na vida. Ele ainda não gravou seu nome no mármore da história. Suas vitórias são apenas parciais, e não temos como saber se seus álbuns de HQ são best-sellers, o suficiente para deixá-lo rico. Até onde sabemos, Caeto não ficou rico, afinal, quadrinhos não deixam ninguém rico no Brasil (Maurício de Sousa e Ziraldo não contam). Mas o leitor vai querer também torcer muito para que, um dia, este álbum venha a
ser um best-seller. Quem sabe, com uma adaptação para o cinema, como tem sido
praxe...
E
não fica por aí. A narrativa continua em Dez
Anos para o Fim do Mundo, mas este fica para outra ocasião... Mas pelo menos sabemos o que o artista estava fazendo entre uma publicação e outra.
MEMÓRIA
DE ELEFANTE não é difícil de encontrar nas livrarias e nas bibliotecas, apesar
de ser um livro lançado há quase dez anos.
PARA ENCERRAR...
...vou
fazer uma tentativa de quadrinho biográfico. Como o tema da vez é Copa do
Mundo, e a Seleção Brasileira parece ter encontrado seu rumo na Rússia, resolvi
produzir, de uma maneira espontânea, rápida e despretensiosa, uma memória da
Copa que até hoje foi a melhor para mim: a de 1994, quando o Brasil se sagrou
tetracampeão. Foi a primeira vez que vi o Brasil ser campeão do torneio. Estas
memórias foram feitas sem esboço, simplesmente a caneta no papel – por isso, o
resultado deixou a desejar.
E é
sério: eu realmente saí à francesa da festa de aniversário para assistir ao
jogo final da Copa de 1994. E também é sério, o tetracampeonato do Brasil realmente me rendeu uma dúzia de Kinder Ovo, paga em parcelas.
Em
outra oportunidade, eu capricho mais... Assim que tiver resolvido parte dos “rolos”
em que ultimamente ando me envolvendo.
Até
mais!
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