sábado, 30 de junho de 2018

MEMÓRIA DE ELEFANTE - Caeto, o nosso Art Spiegelman (ou Craig Thompson, ou Marjane Satrapi, ou...)

Olá.

Hoje, vamos tratar de HQ brasileira. Para hoje, escolhemos uma graphic novel, de um tipo de graphic novel que não é tão comum, pelo menos no Brasil, onde já é complicado lançar um álbum de HQ de ficção ou de reconstituição histórica; imagine então uma graphic novel autobiográfica, sobre a vida do próprio autor – ainda mais de um que os leitores mal conheciam até então.
Sim: hoje vamos falar de uma HQ onde a base da história é o seu autor falando de sua própria vida, sem rodeios ou inibições.
Hoje vamos falar de MEMÓRIA DE ELEFANTE, de Caeto.


APRESENTANDO O AUTOR
MEMÓRIA DE ELEFANTE, publicado em 2009 pela editora Companhia das Letras, selo Quadrinhos na Cia., é apenas o primeiro volume das memórias quadrinizadas de Caetano Melo dos Santos, vulgo Caeto.
Nascido em Assis, interior de São Paulo, em 1979, Caeto está no mercado editorial desde o ano 2000, como quadrinhista, ilustrador de livros e pintor de quadros. Seus trabalhos de HQ foram inicialmente publicados nos fanzines Sociedade Radioativa e Glamour Popular, editados por ele. Ele também tem música em seu currículo, à frente da banda Samba Concorrência – apesar do nome, é uma banda de rock. Já ilustrou livros de Fernando Bonassi, Heloisa Prieto e Dráuzio Varella, entre outros autores. E já publicou HQs curtas em diversas revistas, entre elas a Carta na Escola.
Até o momento em que escrevo, Caeto só tem três álbuns de HQ publicados. O primeiro foi este MEMÓRIA DE ELEFANTE, que saiu em 2009. O álbum rendeu a Caeto uma participação na Exposição de HQ Autobiográfica no 23º Amadora BD Festival, em Amadora, Portugal, em 2012, com exposição de originais das páginas.
Em 2014, pela editora Peirópolis, Caeto publica A Morte de Ivan Ilitch, adaptação para HQ do romance do escritor russo Leon Tolstoi.
E, em 2016, pela Companhia das Letras, publica sua segunda graphic novel autobiográfica, Dez Anos para o Fim do Mundo, continuação de MEMÓRIA DE ELEFANTE.
E já está em preparação um terceiro volume de suas memórias em quadrinhos, A Sombra Sonora do Disco Voador.
O trabalho de Caeto pode ser conhecido – quem ainda não conhece – em seu site pessoal: www.caeto.com.br. Os dados acima foram baseados nos constantes no site.

MAIS UM POUCO DO AUTOR
Com MEMÓRIA DE ELEFANTE, o Brasil encontrou um representante na tendência das HQs autobiográficas e confessionais, então um gênero em moda no mercado de quadrinhos. Quer dizer, foi na década de 2000 que o Brasil começou a receber álbuns autobiográficos de autores estrangeiros que tiveram grande repercussão no exterior. Os maiores exemplos de álbuns que tiveram como matéria-prima a vida do próprio autor são: o Maus de Art Spiegelman; o Persépolis de Marjane Satrapi; o Epilético de David B.; e o Retalhos de Craig Thompson, todos sucessos de público e crítica. Não tenho conhecimento de algum outro autor brasileiro que, antes de Caeto, tenha publicado um álbum de HQ baseado em sua própria vida, em um tom confessional, algumas vezes indo do plano individual para o coletivo, incluindo sua própria visão da época em que viveu.
MEMÓRIA DE ELEFANTE se detém basicamente no plano pessoal; é o retrato do início de carreira de Caeto, um caminho cheio de dificuldades e boemia, e de seu difícil relacionamento com a família – ainda mais com o pai, que tardiamente assume ser homossexual e soropositivo.
Ah: uma advertência. Existe outro livro com o nome Memória de Elefante, escrito pelo português António Lobo Antunes. Mas esse livro, e o de Caeto, só se confundem pelo título.
Voltando à graphic novel. Caeto nos conta sua trajetória pessoal em um tom seco e sem inibições, sem papas na língua, de modo que o leitor escolhe se quer simpatizar ou não com os personagens; em um estilo de desenho em preto e branco realista estilizado, rápido, nervoso e quase xilográfico – basicamente uma linha clara com inserções ocasionais de hachuras, ao estilo dos já citados Art Spiegelman ou Marjane Satrapi – e com palavrões, cenas de nudez e discretas cenas de sexo e de porres. Tudo em bem servidas 232 páginas, em narrativa dividida em oito capítulos, não linear, com muitos cortes, flashbacks e flashforwards, de acordo com a memória de seu autor. Apesar da extensão, o livro é bem rápido e agradável de ler. Dá para concluir a leitura em um dia, se você não estiver muito ocupado.
A vida de Caeto é praticamente a vida de qualquer artista gráfico brasileiro, da maioria esmagadora dos brasileiros que resolvem ganhar a vida pintando, desenhando, compondo música... e/ou bebendo. Quando o caminho parece promissor, quando nosso trabalho tem tudo para ganhar o mundo, quando estamos prestes a gravar nosso nome no mármore da história, os projetos grandiosos acabam caindo por terra antes de alcançar voos mais altos. Você, que deve trabalhar como artista gráfico, deve saber como é.
O autor de MEMÓRIA DE ELEFANTE não foge à regra. As HQs de Caeto não chegam ao grande público; sua música não é comercial o suficiente para fazer sucesso; e seus quadros são vendidos a conta-gotas. Cada venda que consegue realizar, e cada trabalho de ilustração que consegue pegar, e cada dívida que consegue pagar, é motivo para comemoração – de preferência, com muita bebida alcoólica. No fracasso, também dê-lhe bebida para lidar com as crises depressivas – uma atitude que Caeto mantinha desde os catorze anos. E some às perspectivas profissionais limitadas, ainda, o fracasso na vida amorosa – Caeto tem diversos casos ao longo da narrativa, até encontrar a atual companheira, Luana, mãe de seu filho Tomazo.
Mas a trajetória de Caeto parece ainda mais dramática, já que o leitor pode, eventualmente, se espelhar nele. Caeto é praticamente como cada um de nós. Conforme a gente vai lendo seu relato pessoal, mais a gente quer descobrir se ele conseguiu resolver seus problemas pessoais. O leitor torce para que o autor alcance êxito. Torce para que o autor termine sua narrativa em um momento em que ele possa considerar um final feliz. Mas não é bem assim...
O foco da narrativa é o período entre o final da adolescência, no início dos anos 2000, e a publicação do álbum.
Em ordem cronológica quase exata, os acontecimentos são assim: Caeto, no início da adolescência, morava com o pai, um livreiro falido, em São Paulo. Ele se separou da esposa depois que assumiu a homossexualidade, após um casamento tumultuado e traumático, e foi tocar seu negócio em São Paulo, ao lado do amante. Na época da separação, Caeto tinha onze anos, e foi um choque para ele descobrir a real condição do pai. A mãe do autor muda-se para o interior do estado. Mais tarde, o pai fecha a sua livraria – e ele havia contratado até pais de santo para benzer o negócio – e vai morar no interior, em Bauru, estado de São Paulo. O pai acaba descobrindo, ainda por cima, que é portador do vírus HIV, contraído após uma relação sexual na raiva. Tudo o que deixa para o filho, que decide ficar morando em São Paulo, são três caixas de livros e um relógio cuco. Caeto vende os livros e o relógio, e com o dinheiro, consegue segurar a barra por um tempo. Ele, então, está morando com um amigo, Shaquil, e sua família.
Porém, as acomodações são ruins: a casa vive infestada de pulgas e ratos, vive bagunçada, e os moradores da casa nem se preocupam em fazer a limpeza. Por muito tempo, as mulheres da casa sequer se mexem para mudar sua situação – e, ainda por cima, também “desviam” o dinheiro que deveria ser usado no aluguel, não bastasse o irmão de Shaquil ser drogado. O único que parece interessado em fazer algo parece ser Caeto, que então trabalhava em um bar. Tanto que, quando ele consegue pegar um trabalho de ilustração de livros, parte do dinheiro ganho vai para pagar a conta da luz da casa, que fora cortada. Claro que, enquanto isso, Caeto vive uma vida boêmia, pintando quadros e em bebedeiras com os amigos. E era na proximidade da casa e Shaquil que Caeto começou a vender seus primeiros quadros. O primeiro quadro que conseguiu vender o encheu de esperança.
Mais tarde, Caeto divide uma casinha dos fundos com um amigo, Ulisses, um alívio – momentâneo – em sair do pulgueiro. Ali, Caeto se dedica mais aos fanzines, às pinturas e à banda. Mas as coisas começam a ficar difíceis. Caeto, agora desempregado, carente e deprimido, e ainda em constantes bebedeiras, precisa constantemente pedir dinheiro emprestado para pagar o aluguel e comprar comida. Ele recebe muitas promessas de divulgação de seu trabalho, e tem uma chance quando o dono de uma galeria de arte, estrangeiro, se interessa em expor e comercializar seus quadros – no entanto, as coisas correm devagar demais. E, ainda por cima, Caeto recebe um hóspede inesperado: o cachorro Júlio, um vira-latas que uma amiga pediu para cuidar. No entanto, Caeto se afeiçoa ao cachorro, e este a ele. O cachorro Júlio, aliás, é um dos personagens mais importantes da narrativa – Caeto dedica muitas páginas à sua convivência com o cachorro, que inclusive foi retratado em um de seus quadros.
A situação começa a ficar insustentável para Caeto, que já cogita voltar a morar com a mãe no interior. Até que começa a aparecer uma luz no fim do túnel: um amigo do pai, Ricardo, deixa Caeto ficar em seu apartamento, como um caseiro. Só a chance de não precisar sair de São Paulo dá a Caeto um estímulo a mais: ele resolve sair à procura de trabalho. Foi aí que nasceu a oportunidade, junto a uma editora, para a produção de um álbum – este. E, ainda por cima, Caeto começa a trabalhar em uma livraria, um sebo de uma mulher muito muquirana e cheia de exigências. Mais tarde, Caeto entra em uma batalha judicial contra a dona do sebo, pelos seus direitos trabalhistas, depois que acaba demitido. Foi nessa época que Caeto, ainda na atividade fanzineira, conheceu Luana, que se tornaria sua namorada, confidente, e o estimularia a beber menos e mudar um pouco sua vida boêmia.
As coisas já começam a ficar melhores quando Caeto consegue uma função em uma casa de shows, como promotor de eventos – e, claro, encaixando sua banda na programação, sempre que pode. Agora, ele está em condições de devolver todo dinheiro que pediu emprestado. Mas, na família, as coisas não vão muito bem: o pai adoece. Apesar de estar tomando o coquetel de remédios contra a AIDS, ele reluta em seguir o tratamento. E, ainda por cima, nunca deixou de destratar as pessoas ao seu redor, nem os filhos. Sim, o pai de Caeto nunca foi uma pessoa fina no trato – ao menos, essa foi a imagem que o autor quis passar da figura paterna, que sempre fora distante. Caeto faz constantes visitas ao pai, que vai ficando mais fraco e magérrimo a cada dia. São constantes as brigas entre o autor e a irmã a respeito do destino do pai. Caeto, inclusive, chega a deixar Júlio morando com o pai, fazendo-lhes companhia. Até que, inevitavelmente, o pai acaba morrendo. E até esse ponto que vai a narrativa.
Mas é claro que a ordem que apresentei aqui não é a do álbum, é a ordem linear dos acontecimentos. MEMÓRIA DE ELEFANTE começa com uma breve introdução: Caeto carrega para seu apartamento um quadro de sua autoria que ele resgatou. Aí, o primeiro capítulo trata do momento em que Caeto e Ulisses alugam a casa nova, e no momento em que Júlio fica na casa deles. No segundo capítulo, ele é descoberto pela galeria de arte; o terceiro capítulo trata de sua situação ruim até o momento em que ele cogita sair de São Paulo; o quarto e o quinto capítulos tratam do período em que ele vai morar com Shaquil e sua família, e de seu período trabalhando no bar. O sexto capítulo começa quando Caeto vai morar no apartamento de Ricardo, e segue contando o período em que vai trabalhar na livraria, de como conheceu Luana, seus primeiros encontros, e as constantes visitas ao pai, em Bauru; no sétimo capítulo, Caeto já está trabalhando na casa de eventos; e, no oitavo capítulo, temos o vislumbre dos últimos dias de seu pai, que viveu fazendo o que quis sem se importar com a opinião alheia.  
O álbum é cheio de momentos de representações de sentimentos e de fatos ao pé da letra, como convém a uma HQ confessional. Além disso, Caeto não se furta em relatar pequenos episódios de sua vida entre os grandes episódios, como a vez em que caiu dentro de um túmulo de cemitério.
O retrato de uma vida que parece surreal demais para ser verdade, mas de fato aconteceu. Às vezes sentimos que estamos diante de uma história de superação que termina em vitória, mas não é bem assim: Caeto conseguiu superar o momento mais difícil de sua vida, mas ainda não venceu na vida. Ele ainda não gravou seu nome no mármore da história. Suas vitórias são apenas parciais, e não temos como saber se seus álbuns de HQ são best-sellers, o suficiente para deixá-lo rico. Até onde sabemos, Caeto não ficou rico, afinal, quadrinhos não deixam ninguém rico no Brasil (Maurício de Sousa e Ziraldo não contam). Mas o leitor vai querer também torcer muito para que, um dia, este álbum venha a ser um best-seller. Quem sabe, com uma adaptação para o cinema, como tem sido praxe...
E não fica por aí. A narrativa continua em Dez Anos para o Fim do Mundo, mas este fica para outra ocasião... Mas pelo menos sabemos o que o artista estava fazendo entre uma publicação e outra.
MEMÓRIA DE ELEFANTE não é difícil de encontrar nas livrarias e nas bibliotecas, apesar de ser um livro lançado há quase dez anos.

PARA ENCERRAR...
...vou fazer uma tentativa de quadrinho biográfico. Como o tema da vez é Copa do Mundo, e a Seleção Brasileira parece ter encontrado seu rumo na Rússia, resolvi produzir, de uma maneira espontânea, rápida e despretensiosa, uma memória da Copa que até hoje foi a melhor para mim: a de 1994, quando o Brasil se sagrou tetracampeão. Foi a primeira vez que vi o Brasil ser campeão do torneio. Estas memórias foram feitas sem esboço, simplesmente a caneta no papel – por isso, o resultado deixou a desejar.
E é sério: eu realmente saí à francesa da festa de aniversário para assistir ao jogo final da Copa de 1994. E também é sério, o tetracampeonato do Brasil realmente me rendeu uma dúzia de Kinder Ovo, paga em parcelas.
Em outra oportunidade, eu capricho mais... Assim que tiver resolvido parte dos “rolos” em que ultimamente ando me envolvendo.
Até mais!

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