Por hora, hoje vou comentar livro. Recentemente, terminei a leitura de um dos melhores romances históricos que já li: OS TAMBORES DA CHUVA (O CASTELO), do albanês Ismail Kadaré.
Kadaré é conhecido como o autor do livro em que se baseou o filme brasileiro Abril Despedaçado, livre adaptação do diretor Walter Salles. Só essa informação já seria suficiente para situar quem desconhece o autor.
OS TAMBORES DA CHUVA foi publicado pela primeira vez em 1970, na Albânia, sob o título O CASTELO. No ano seguinte, em 1971, o livro foi publicado na França, sob o título verdadeiro - até porque já existiam muitos romances que usavam Castelo como título, e quase todos com as mesmas idéias utilizadas por Kadaré, a de que um castelo de romance remete a um assédio ao mesmo - seja por exércitos, seja por simples guerreiros. Um exemplo bem famoso é a Ilíada de Homero, que também trata do cerco a uma fortaleza - no caso, a cidade de Tróia. Kadaré, mesmo, já publicou também muitos romances sobre fortalezas, que evocam idéias parecidas - entre eles, A Fortaleza e Crônica da Cidade de Pedra. A tradução brasileira da obra é de Bernardo Joffily, diretamente do albanês, e editada pela editora Companhia das Letras.
Bem. Trata-se de um romance histórico, porém ele permite diversas leituras. Quer dizer, o romance pode ser tanto um relato de fatos como uma alegoria sobre a época em que foi escrito - no caso, sobre a Albânia dos tempos da Guerra Fria, em que o país esteve dividido entre duas correntes do pensamento comunista, o bloco capitalista, todos cercando-a. Logo, a alusão do texto faz sentido, já que também trata de um cerco.
O cerco a um castelo cristão da Albânia pelas tropas muçulmanas, no século XV. A importância deste castelo reside no fato de ser a principal cidadela de George Kastriota-Skanderbeu, o herói nacional da Albânia (que quase que só é citado no romance). Como a região dos Bálcãs, na época, era o principal ponto de intersecção entre o ocidente e o oriente, aí reside a preocupação dos otomanos na conquista deste território.
Quem lidera o ataque é Tursun paxá, que precisa expugnar esta fortaleza para não cair em desgraça com o sultão. Com ele, estão no acampamento, além de soldados e oficiais, um cronista, um poeta, um médico, um astrólogo e um harém de concubinas.
São duas as visões do cerco: a visão dos invasores otomanos e a visão dos castelões, através de uma voz anônima. O autor concentra a narrativa mais na visão do exército otomano, enquanto que a dos castelões limita-se a micro-capítulos, que abrem cada um dos quinze capítulos.
Há muito o que destacar no livro. Primeiro, quanto à tal voz anônima de dentro do castelo. Ela narra as diversas privações impostas por esse cerco, como a fome e a sede. A salvação dos castelões está na chuva, cuja estação se aproxima.
Quanto aos exércitos otomanos, estes tentam de tudo para expugnar o castelo: ataques diretos com escadas para escalar as muralhas, grandes canhões fundidos ali mesmo no acampamento, pestes lançadas através de animais infectados, túneis subterrâneos sob a fortaleza, a procura e a interrupção do aqueduto que abastece o castelo de água. Tudo ricamente narrado em detalhes por Kadaré, que não dispensa sequer as mortes, mutilações e feridas. Nem sequer algum sexo, quando visitamos o harém de Tursun paxá e o vemos chamando concubinas para sua cama - em alguns trechos, até as mulheres do harém nos dão a sua visão da guerra. E a chuva, frise-se, é a danação dos invasores, pelo risco de inviabilizar os ataques.
Enquanto isso, vemos como se portam os diversos personagens da comitiva de Tursun paxá. O melhor deles, na minha opinião, é Mevla Tcheleb, o cronista. Nós, historiadores, podemos nos identificar muito com esse personagem, sempre em busca dos termos certos para poder relatar o que se desenrola diante de seus olhos, para agradar os ouvintes a quem as narrativas bélicas se dirigem, e sofrendo muito por estar vendo a guera assim, tão de perto. Principalmente com os feridos, inclusive Saded, o poeta, que fica cego durante um ataque. E Tcheleb é do tipo de gente que, durante os ataques, mal sabe onde se esconder, que espera que a terra se abra para saltar dentro do buraco.
Entre um ataque e outro, um planejamento e outro, Kadaré também nos brinda com a visão muçulmana de mundo, que pretendia converter o mundo à sua religião e acabar com a influência do cristianismo. Um amigo de trabalho meu comentou certo dia sobre a questão entre católicos e muçulmanos: "Deus é um só, o caso é que são os homens que o interpretam à sua maneira". Não deixa de ser verdade. Os muçulmanos não teriam culpa do que fazem, de suas "guerras santas", o caso é que eles querem "adaptar" o mundo da maneira que eles acham melhor. O mesmo se pode dizer dos cristãos, judeus, budistas... todos interpretam Deus da maneira deles, e entram em choque com a visão do outro - e acabam, muitas vezes, levando tudo ao extremo, sem necessidade.
Kadaré,enfim, consegue nos fazer ficar divididos entre os dois lados desse ataque. Entre cristãos e muçulmanos, quem se sairá melhor?
Sem falar que os nomes dos personagens são muito impressionantes: Tursun, Mevla Tcheleb, Karamukbil, Saded, Kaur, Tavdja. E aprendemos também muitos termos relacionados aos exércitos muçulmanos, como dallkelletch, akendji e azape.
Tudo contribui para que OS TAMBORES DA CHUVA torne-se um romance para apreciar e para discutir. Uma epopéia moderna, em prosa.
Para concluir, fiquem agora com Letícia.
Até mais!
Até mais!
Um comentário:
Tô doido pra ler esse livro, já ouvi falarem muito bem a respeito dele, e adoro histórias de guerras medievais.
http://www.marvincode.blogspot.com.br
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