sábado, 27 de agosto de 2011

BEIJO NO ASFALTO Graphic Novel - Universo Rodriguiano é o...

Olá.
Hoje, volto a falar de livro. E de quadrinhos também.
Nestes últimos anos, o mercado editorial brasileiro está visualizando a proliferação das adaptações de obras da literatura para quadrinhos. Isso se deve aos atuais programas de estímulo da leitura nas escolas do Governo, que inclui histórias em quadrinhos como alternativa para estimular a leitura e, por extensão, o contato dos jovens com as obras clássicas. E as adaptações em quadrinhos servem bem a esse propósito. Só que o problema é que as editoras têm investido muito nesse filão, e ocorre por existir mais de uma adaptação de uma mesma obra, muitas vezes por uma editora diferente para cada uma. E com resultados às vezes excelentes, às vezes bons, às vezes regulares, às vezes beirando o ruim, dependendo do artista que fez a adaptação.
Dentre os casos de obras da literatura que ganharam mais de uma adaptação, e por editoras diferentes, estão O Alienista de Machado de Assis, o Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto e o Guarani de José de Alencar.
Pois a adaptação da qual hoje vou falar foi uma das primeiras do boom de adaptações literárias do início deste século. Estou falando de O BEIJO NO ASFALTO.



O LIVRO E O QUADRINHO
O BEIJO NO ASFALTO é uma das peças teatrais mais conhecidas do dramaturgo e cronista brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980). O texto foi escrito em 1960, e faz parte do ciclo das “tragédias cariocas” do autor (ver adiante).
A adaptação em quadrinhos foi publicada pela primeira vez em 2007, pela editora Nova Fronteira (que detém os direitos de publicação da obra de Nelson Rodrigues). Foi escrita por Arnaldo Branco (o cartunista autor das tiras Mundinho Animal e Capitão Presença) e desenhada por Gabriel Góes, ambos representantes da nova geração de quadrinhistas brasileiros. O lançamento se deu na Festa Literária Internacional de Parati (Flip), que tinha Nelson Rodrigues como o homenageado daquele ano, e, como a Nova Fronteira estava mais acostumada a publicar literatura que quadrinhos, o lançamento despertou algum celeuma entre público e crítica. Mas, felizmente, a crítica elogiou não só a obra como também a iniciativa de transposição do “universo rodriguiano” para HQ.
Este ano, a adaptação de BEIJO NO ASFALTO ganhou uma nova edição, de bolso, pela Ediouro (que comprou a editora Agir, que por sua vez comprou a Nova Fronteira), dentro do selo Pocket Ouro. É a capa que vocês veem abaixo.

O UNIVERSO DE NELSON RODRIGUES
Nelson Rodrigues é considerado o grande renovador da dramaturgia brasileira. O chamado “anjo pornográfico” fez do teatro uma das muitas opções de carreira dentro da literatura, e não foi só com as peças que se imortalizou, mas também com diversos romances e crônicas, alguns escritos sob pseudônimo. Sou suspeito em dizer, que, ao menos, o cara escreveu muuuito!
Entre as décadas de 1950 e 1970, Nelson Rodrigues escreveu, além de peças seminais como A Mulher Sem Pecados (1941), Vestido de Noiva (1943), Álbum de Família (1946), Anjo Negro (1947), Boca de Ouro (1959), Beijo no Asfalto, entre outros, muitos romances e crônicas, publicados em jornais como O Globo e Última Hora – todos do Rio de Janeiro. Nelson, além de fazer um retrato da sociedade carioca nos contos de A Vida Como Ela É... (a partir de 1955) e ter formado opiniões com suas crônicas sobre futebol, utilizou em larga escala o recurso do folhetim, desde nos romances escritos sob o pseudônimo feminino de Susana Flag (como Meu Destino é Pecar, de 1944, e Núpcias de Fogo, de 1948) até a obra-prima Asfalto Selvagem (Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados, 1959-60), este último o maior sucesso do jornal Última Hora.
Além disso, muitas das obras de Nelson Rodrigues ganharam memoráveis adaptações para cinema e televisão. Montagens de suas peças, então, nem se fala. E não foram poucas as vezes que esse autor nascido em Recife, Pernambuco, mas que fez carreira no Rio de Janeiro, despertou polêmicas, tanto por suas frases mordazes como pelo conjunto da obra. Ironia: apesar de algumas de suas obras (e suas respectivas adaptações para cinema e teatro) terem sido perseguidas pela censura federal, Nelson foi um defensor da Ditadura Militar brasileira instalada em 1964.
É difícil definir exatamente o que seja o tal “universo rodriguiano” os quais os especialistas costumam citar para qualificar sua obra. Mas se pode apontar, como características gerais de sua obra, principalmente no teatro, o seguinte: o uso de expressões e falas populares nas falas dos personagens (sem contar os palavrões); a aproximação da tragédia grega ao universo da sociedade carioca; a presença de um forte erotismo; e, principalmente, a denúncia da hipocrisia e da sordidez da conservadora e provinciana sociedade carioca – e, por extensão, da brasileira – de seu tempo.
Mas se pode dizer também que o “universo rodriguiano” também comporta em seu bojo: conflitos familiares, preconceitos sexuais, traições e desejos proibidos entre os personagens, que vez por outra são massacrados pela hipocrisia e pela corrupção da sociedade. Quando se fala em “universo rodriguiano”, a primeira coisa que vem à cabeça é justamente isso. Porém, podemos estar errados – principalmente quem não conhece a fundo a obra de Nelson Rodrigues. Isso podemos encontrar na obra de qualquer escritor “maldito”, porém não com a mesma maestria com a qual Rodrigues trabalhou com todos esses elementos. Mas, ao menos, BEIJO NO ASFALTO comporta todas as características acima.

BEIJO NO ASFALTO
Bom, como eu disse, BEIJO NO ASFALTO foi escrito e encenado pela primeira vez em 1960. Nelson apregoou que a peça foi escrita a pedido de uma então jovem atriz, Fernanda Montenegro, que queria encenar uma obra inédita do dramaturgo, então consagrado com suas peças de cunho psicológico (estilo o qual se encaixa o clássico Vestido de Noiva). BEIJO NO ASFALTO foi escrito em apenas três semanas, e montado no ano seguinte, sob direção de Fernando Torres. Porém, a peça só ficou sete meses em cartaz, devido à renúncia do presidente Jânio Quadros, e ocasionou a demissão de Rodrigues do jornal Última Hora, por conta das menções pouco simpáticas ao periódico.
BEIJO NO ASFALTO se insere no ciclo das “tragédias cariocas”, nas quais Rodrigues faz a transposição dos conflitos existentes na tragédia grega para o universo da sociedade carioca dos anos 50 e 60.
A peça conta a história trágica de Arandir, um homem casado e respeitável, que entra numa ciranda trágica por causa de um acontecimento insólito: ele presencia um homem ser atropelado em plena Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro; e, antes de o tal sujeito morrer, Arandir beija-lhes a boca – ele, mais tarde, alega que foi a pedido do moribundo.
O fato, estampado nos jornais, transforma-se no assunto mais comentado da cidade. Ele é explorado por Amado Ribeiro, um inescrupuloso jornalista do jornal Última Hora, e pelo delegado Cunha, que vê no fato uma chance de se reerguer – Ribeiro havia colocado-o numa encrenca muito antes.
A partir daí, a vida de Arandir se transforma em um inferno. Não bastasse ser humilhado no trabalho pelos colegas, o “beijo no asfalto” gera inúmeras interpretações perniciosas. Embora Arandir negue conhecer o defunto, muita gente já especula – e é reforçado pelo jornal – que na verdade Arandir e o morto já se conheciam, e o que é pior, eram amantes. E, lembremos, o homossexualismo, nos anos 60, era um tabu, um pecado para a sociedade brasileira. Também, por que um homem iria beijar a boca de um defunto, em plena praça pública, mesmo alegando desconhecê-lo? E ainda sendo bem casado com uma bela mulher? Pior ainda: mais tarde se especula que a morte do distinto foi assassinato. Até mesmo os motivos pelos quais Arandir se encontrava na Praça da Bandeira naquele momento – ele tinha ido ao banco penhorar a aliança de casamento – servem de indícios para apontar que tipo de relações ele tinha com a mulher.
E essa rede de intrigas da imprensa, preconceito sexual e corrupção policial acaba envolvendo também a esposa de Arandir, Selminha, a cunhada Dália e o sogro Aprígio – que nunca aceitou o casamento da filha. No começo, Selminha chega a acreditar que Arandir não fizera por mal; mas, depois de ter sido abusada por Ribeiro e pelo delegado Cunha durante um interrogatório, perde o crédito em Arandir. Mais ainda: o fato expõe uma série de conflitos familiares, incluindo uma paixão de Dália por Arandir e o desejo incestuoso de Aprígio por Selminha. E Arandir, desacreditado, encaminha-se para um final tão trágico quanto surpreendente, massacrado que foi pela sociedade.
BEIJO NO ASFALTO é a denúncia da hipocrisia da sociedade, como só Rodrigues sabia fazer. E é difícil não se indignar com a situação de Arandir, a quem sequer é dado o direito de se explicar. Teria sido diferente se ele pudesse contar a sua versão dos fatos? Decidam vocês.

O QUADRINHO
A adaptação para HQ foi, como disse há pouco, roteirizada por Arnaldo Branco, que além de humorista mordaz também é leitor assíduo de Nelson Rodrigues. A arte ficou por conta de Gabriel Góes, que usa nos desenhos um estilo de linhas grossas e grandes espaços pretos, que remetem à técnica da xilogravura, comum nos livros de cordel nordestinos.
As páginas são estruturadas em nove painéis (quadrinhos) por página, quebrados às vezes por quadros grandes horizontais. Os desenhos de Góes transmitem à história um clima obscuro, como num filme noir, que realça o clima trágico da história. E os personagens se movimentam como se fosse numa adaptação cinematográfica, onde os planos se alternam a cada quadrinho. A impressão que temos é de vermos um teatro quadrinizado, em tempo real, com raras intervenções do recurso do flashback – assim, a cena que desencadeia toda a história, a que mostra Arandir beijando o defunto, carece de impacto com relação ao restante da narrativa.
Talvez um dos grandes defeitos desta adaptação fique na parte dos textos e dos balões. Na maior parte do tempo, a balonização fica a um balão por quadrinho – às vezes, dois, três, quatro – já que na maior parte dos quadros vemos a cabeça de um personagem falando. Mas os balões se alternam também em tamanho de letra: às vezes, grandes, às vezes pequenos. Por vezes vemos uma grande quantidade de texto esmagando os personagens. E o que dizer de todas as frases que terminam em “que.”, que parecem todas interrompidas pela metade? Não tenho como saber, nesse momento, se o texto do Rodrigues era mesmo assim, cheio de frases interrompidas, que, apesar de tentarem imitar a fala popular, soam bastante artificiais.
Na parte da caracterização dos personagens, ponto para Góes: as melhores caracterizações foram as da personagem Dália, que parece uma menina apesar de já ser uma mulher, a do jornalista Amado Ribeiro, com um jeitão de malandro que não mede esforços em obter o que deseja, e a de Aprígio, um viúvo com cara de bêbado, e cujas reações acerca dos fatos apresentados transparece em seu rosto. Podemos pensar no Aprígio de Gabriel Góes como uma caricatura de Nelson Rodrigues, mas um pouco mais decrépito. Até mesmo a viúva do morto, com a maquiagem borrada, tem uma boa caracterização.
De todo modo, a adaptação de BEIJO NO ASFALTO foi muito bem feita. É o “universo rodriguiano” apresentado às novas gerações, e de forma bastante competente. É o teatro brasileiro apresentado numa linguagem diferente, mas ao mesmo tempo parecida: afinal, quadrinhos, segundo especialistas, se aproximam do teatro, do cinema e da televisão justamente pelo uso das imagens para contar histórias.
Para quem quiser conferir, a edição de boldo de BEIJO NO ASFALTO está disponível nas bancas, ao preço de R$ 9,90. Bem módico para o “universo rodriguiano”.
Ah: e a dupla Arnaldo Branco e Gabriel Góes já anunciou uma segunda adaptação de Rodrigues para HQ: nada menos que Vestido de Noiva. Aguardemos.
Para encerrar, eu fiz uma caricatura de Nelson Rodrigues, baseada em uma publicada no jornal Última Hora – não lembro o autor. Vi essa caricatura em uma coletânea especial de ilustrações desse jornal. E, ladeando-o, o espírito do tempo. Afinal, o que é mesmo “universo rodriguiano”? Será que o próprio Nelson já havia pensado nisso quando escreveu a sua obra? Ah, mas de qualquer forma, a frase do zeitgeist eu também peguei emprestada de uma das tiras do Arnaldo Branco, supondo que nem o Nelson concordaria com esse termo.
De todo modo...
Até mais!

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