sábado, 28 de agosto de 2010

POLICARPO QUARESMA de Laílson de Holanda Cavalcanti

Olá.
Hoje volto com mais quadrinhos. E é mais uma adaptação de obra literária para HQ, em moda hoje no Brasil. E a salvação para os artistas nacionais de HQ.
Hoje falarei de TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA, de Lima Barreto.
DISPONÍVEIS NO MERCADO:
O livro mais conhecido de Lima Barreto, além de diversas edições por outras editoras, possui até o momento três adaptações para HQ - quatro, se houver uma adaptação anterior pela Edição Maravilhosa da EBAL ou pela Romance em Quadrinhos da RGE. Mas não tenho conhecimento se houve uma adaptação anterior às realizadas neste século XXI.
No mercado, estão disponíveis: a criticada adaptação feita por Ronaldo Antonelli e Francisco Vilachã, pela editora Escala Educacional; a elogiada adaptação de Flávio Braga e Edgar Vasques, pela editora Desiderata; e a que eu vou falar agora, feita por Laílson de Holanda Cavalcanti, pela Companhia Editora Nacional - IBEP.

O TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA
Lima Barreto (1881 - 1922) foi um dos autores brasileiros expoentes do movimento literário denominado Pré-Modernismo, que se antecipou ao Modernismo Literário cujo marco fundador foi a Semana da Arte Moderna de 1922.
O Pré-Modernismo foi caracterizado, entre outras coisas, por uma literatura que retratava a realidade brasileira dos tempos iniciais da República Brasileira. Também faziam parte desse movimento Monteiro Lobato (antes de se consagrar com o sítio do Pica-Pau Amarelo) e Euclides da Cunha (e seu Os Sertões).
Lima Barreto, porém, foi o autor mais radical de seu período. Por causa disso, não foi reconhecido em vida. Sua literatura faz uma dura crítica aos tempos da República Velha, onde as elites deitavam e rolavam graças à economia cafeeira e às intrigas políticas do período, enquanto que o restante do povo vivia mal e dificilmente recebia atenção do governo. Para se ter uma ideia, eleições havia naquele tempo, mas apenas os homens, maiores de 21 anos, que não fossem mendigos, soldados ou membros de ordem religiosa podiam votar. Ou seja: apenas 2% da população brasileira podiam votar. E, ainda por cima, as fraudes nas eleições e o "voto de cabresto" eram comuns. As elites tinham muita influência em seus municípios, e podiam aliciar os eleitores para votarem nos candidatos de seus interesse - era o chamado coronelismo.
Por isso, e muito mais, os livros de Lima Barreto tem um tom pessimista e extremamente crítico: o Brasil de seu tempo não era propício para pessoas honestas e humildes. Barreto tem um especial carinho com as pessoas que vivem nos subúrbios humildes das cidades brasileiras, gente que a seu tempo nunca tinha vez - e o grupo social a que Barreto pertenceu sempre. Ele quase nunca fez sucesso com sua literatura, e foi internado várias vezes em hospícios devido a problemas mentais.
TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA é o ponto alto da literatura de Barreto, cujas obras também incluem os igualmente críticos Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Numa e a Ninfa, Clara dos Anjos e os contos, que incluem os clássicos A Nova Califórnia e O Homem que Sabia Javanês. Alguns dos contos de Lima Barreto inspiraram uma novela da Rede Globo, Fera Ferida.
TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA foi publicado pela primeira vez em 1911, no formato de folhetim (em capítulos diários) no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro; foi editado em livro em 1915, custeado pelo próprio Barreto. A crítica de seu tempo atinge o ponto mais alto aqui, e realmente não dá para ler POLICARPO QUARESMA, nos dias de hoje, sem se indignar.
Numa história bem-humorada e ácida, é contada a história de Policarpo Quaresma, um major do exército que, após anos de estudo, desenvolveu um nacionalismo ferrenho, e vê o Brasil como uma terra de maravilhas que precisam ser valorizadas. Assim, ele dedica grande parte de sua vida para fazer valer seus ideais de independência política, econômica e cultural ao seu país, através de reformas ousadas e absurdas para seu tempo. Ele, a princípio, não enxerga que a realidade de seu país é bem outra, e quando se dá conta, ele acaba sendo humilhado, vilipendiado. Isso porque o Brasil da Primeira República, época em que a história se passa, está estagnado de comodismo, egoísmo e mediocriadade; as elites não pensam em nada mais que seus interesses pessoais; e agricultura e a indústria não são valorizadas como se deve; e o povo que se dane.
A primeira reforma que Policarpo pretende realizar é a cultural; como bom patriota, ele rejeita tudo o que é estrangeiro, só consome produtos brasileiros. Assim, ele tem aulas de violão com o músico Ricardo Coração dos Outros, boêmio e adepto das modinhas de violão - um estilo que era mal-visto em seu tempo, mas que Quaresma considerava um autêntico estilo musical nacional. Ricado é um dos mais importantes aliados de Policarpo Quaresma ao longo do livro.
Na sua reforma cultural, Policarpo, que trabalha como escriturário do Exército, chega a propor a substituição do português pelo tupi como língua oficial do país, por considerar que a língua portuguesa foi "emprestada" para nós. Mas tudo o que consegue é se meter em encrencas com seus superiores e ser internado no hospício.
Saindo do hospício (melancólico por causa das terríveis visões da loucura lá presenciadas), Policarpo, por sugestão de sua afilhada Olga, resolve comprar uma fazenda e cultivar a terra brasileira, considerada por ele a mais fértil do mundo; porém, no campo, ele bate de frente com a realidade dura dos latifúndios improdutivos - que impedem que se dê trabalho ao homem do campo, pobre e iletrado - e com a política interiorana, na qual ele é metido contra sua vontade; por conta disso, ele é atacado.
Mais tarde, estoura a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e Policarpo resolve se alistar, a fim de defender sua pátria. Porém, ele conhece a desilusão, a arbitrariedade, a realidade da guerra que transforma homens em selvagens. Se desilude porque a guerra favorece uns poucos que buscam posição social. E, quando ele tenta protestar quanto a isso, tudo o que consegue é ser preso e fuzilado. No fim, conclui que a pátria que tanto sonhava não passava de ilusão. Nem mesmo a afilhada Olga consegue salvá-lo, apesar de tentar falar com o presidente Floriano Peixoto, e tudo o que pode fazer é deixá-lo morrer heroicamente.
Outros personagens importantes do livro são: a afilhada Olga, principal aliada de Policarpo, que, ao contrário das mulheres de seu tempo, é atenta aos problemas do Brasil, crítica da situação e tenta entender essa realidade; Ismênia, oposto de Olga, é uma mocinha que foi criada desde pequena para o casamento, e enlouquece por causa que o casamento que tanto esperava nunca aconteceu (através de Ismênia, Barreto critica a educação destinada às mulheres daquele tempo, que só as preparava para o casamento); o violeiro Ricardo Coração dos Outros; o General Albernaz, pai de Ismênia; Vicente Coleoni, descendente de italianos e pai de Olga; Armando Borges, marido de Olga, innteressado apenas na posição social. E tantos outros personagens, retrato de um Brasil que não valia a pena.
Um outro personagem que aparece é o próprio presidente do período, o Marechal Floriano Peixoto, presidente de 1891 a 1894, chamado Marechal de Ferro. Ele é retratado por Lima Barreto como um presidente fraco de alma, desinteressado em seu país e que aprecia a companhia dos bajuladores; portanto, uma figura patética, que não merecia os bronzes de praça ou os nomes de rua em sua homenagem. Mas também não podemos ser tão duroscom Floriano: afinal, Lima Barreto era um dos opositores mais ferozes à política desse presidente.
POLICARPO QUARESMA ganhou uma adaptação cinematográfica em 1988, pelo diretor brasileiro Paulo Thiago (Policarpo Quaresma - Herói do Brasil), com Paulo José como Policarpo Quaresma e Giulia Gam como Olga. Se não é a mais fiel adaptação, é a que melhor mantém o espírito da obra de Barreto.
LAILSON DE HOLANDA CAVALCANTI
A adaptação da obra de Barreto em HQ foi levada a cabo por Laílson de Holanda Cavalcanti, quadrinhista pernambucano, nascido em 1952. Já publicou em diversos jornais e revistas do Brasil e do mundo - um de seus primeiros trabalho foi no jornal estudantil The Pine Cone, dos Estados Unidos, onde foi bolsista, em 1971. Publicou charges em jornais e revistas como Visão, O Pasquim, Pasquim 21, Bundas, MAD, Jornal do Brasil, Diário de Pernambuco, Miami Herald, Florida Review... Também já foi várias vezes premiado no Brasil e no mundo. Um pouco de seu perfil biográfico está no site pessoal dele, http://www.lailson.com.br/ (problema é que este site está desatualizado).
Pela Companhia Editora Nacional, Laílson publicou: O Livro do Bom Humor, Pindorama - A Outra História do Brasil e já assinou quatro adaptações literárias para HQ: Lusíadas 2500, uma versão futurista de Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões; O Alienista, de Machado de Assis (que junta-se às adaptações de Fábio Moon e Gabriel Bá [Ed. Agir], de Francisco Vilachã [Ed. Escala Educacional] e a de Luís Antônio Aguiar e César Lobo [Ática]); Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida (Também disponíveis no mercado as adaptações de Índigo e Bira Dantas [Editora Escala Educacional] e a de Ivan Jaf e Rodrigo Rosa [Ática]) e esta, TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA.
QUARESMA EM HQ
Bem, a adaptação de Laílson de Holanda Cavalcanti é fiel ao livro de Lima Barreto. Como é dito no posfácio da obra, adaptar POLICARPO QUARESMA para HQ foi uma tarefa difícil, por causa que a maior parte da obra ocorre no plano subjetivo, através das emoções dos personagens, e é preciso traduzir essas emoções graficamente.
A caracterização dos personagens, caricatual, reflete sua personalidade. Policarpo é retratado magro, com a barba rala e os oclinhos que não deixam ver seus olhos, refletindo seu alheiamento com relação à realidade e seu caráter ufanista; Ricardo Coração dos Outros e suas olheiras de boêmio; Ismênia e seu rosto magro, olhos grandes e expressão melancólica; os superiores de Policarpo de expressão dura, brava e cara de poucos amigos; políticos como o tenente Antoino Dutra; Floriano Peixoto e sua expressão avoada. E Olga lembra bastante, fisicamente, as mulheres desenhadas pelo cartunista Miguel Paiva, de Radical Chic.
No entanto, a adaptação tem o problema da composição das páginas. Com no máximo oito quadrinhos por página, cenários que ocupam quase todo espaço da página, quase que eclipsando os personagens; o abuso do autor nos planos americanos, de meio-corpo, e dos planos distantes. E os diáologos que se estendem por duas ou mais páginas, às vezes com uma fala em cada quadrinho. Não é muito dinâmico, chega até a ser chato ver um único plano-sequência, e um certo desperdício de espaço nos quadrinhos, que poderia ter sido melhor ocupado, além da carência dos símbolos cinéticos que daria mais movimento aos personagens. Mas conta como virtude a fidelidade à obra original - o tom da adaptação é triste e melancólico, e o humor é muito sublimado.
Algumas cenas também carecem de impacto. É o caso, por exemplo, da lírica cena da morte de Ismênia, bem mais impactante na obra original. Laílson concentrou suas atenções nos desmandos das elites retratadas por Barreto, que permitem ver como aquele tempo era grotesco, era mesquinho. E o ponto alto, mesmo, é como Laílson representou, em um monólogo de Policarpo, a desilusão do personagem aos ser preso, no finalzinho do livro.
Pela adaptação de HQ ou pela obra original, POLICARPO QUARESMA permanece uma obra atual. Porque, em certos aspectos, o Brasil não mudou desde a época de Lima Barreto. Mas eu não vou dizer em quais desses aspectos - cabem a vocês, brasileiros como são, descobrirem por si mesmos.
DESENHO DE HOJE
Hoje, resolvi colocar mais uma historinha da minha série, Os Dois, homenageando Lima Barreto e criticando o culto às "grandes personalidades" brasileiras. Que nomes da nossa história será que vale a pena cultuar?
Até mais!

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