Olá.
Por
esses dias que medeiam o final do ano, bateu um súbito e louco interesse por um
assunto histórico um tanto mórbido. Até o presente momento, já resenhei dois
livros a respeito dos crimes da Rua do Arvoredo, ou caso da Linguiça Humana,
ocorrida em Porto Alegre, entre 1863 e 1864.
Pues,
hoje, vou resenhar mais um livro ligado à temática. Desta vez, é um romance. De
um dos maiores escritores do Rio Grande do Sul do século XX – ou pelo menos,
onde sua reputação ficou.
Hoje,
então, falarei de CÃES DA PROVÍNCIA, de Luiz Antonio Assis Brasil.
O REDATOR
Antes
de falar do livro, propriamente dito, é justo, como sempre faço, que antes eu
fale do autor – no caso, Luiz Antonio de Assis Brasil, às vezes grafado sem o
“de”.
A
capa acima é da edição de 1997 – a sétima – de CÃES DA PROVÍNCIA, sua principal
obra, publicada pela editora Mercado Aberto. É dessa edição que extraio a
síntese biobibliográfica inicial a respeito do autor, com algumas inserções de
informações extraídas da internet:
“Gaúcho de Porto Alegre,
1945. Embora de família fortemente ligada à formação do Estado, passou a
infância e a adolescência em Estrela, zona de colonização germânica. De volta a
Porto Alegre, estudou com os padres jesuítas e seguiu Direito [na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS], formando-se em 1970. Durante os
estudos e mesmo depois, atuou na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre [OSPA] como violoncelista. A música, entretanto,
foi substituída pela literatura, e a prática da advocacia pelo magistério
superior. Doutor em Letras, (...) professor adjunto na PUC do Rio Grande do Sul
onde, no Curso de Pós-graduação em Letras, coordena uma oficina de criação
literária que já publicou várias antologias de contos [e revelou diversos
escritores que ficariam célebres, como Letícia Wierzchowski, Cíntia Moscovich,
Daniel Pellizzari, Monique Revillion e Daniel Galera].
Atuou na administração
cultural, exercendo sucessivamente os cargos de diretor do Centro Municipal de
Cultura de Porto Alegre e diretor do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande
do Sul – em sua gestão deu início à publicação da série Autores Gaúchos, de
repercussão nacional –, e foi, por último, subsecretário de Cultura de seu
Estado. No inverno 84/85 foi bolsista do Goethe-Institut na República Federal
da Alemanha. Por solicitação do Ministro Furtado fez parte, com Affonso Romano
de Sant’Anna, da comissão especial que ofereceu sugestões para uma política
federal do livro. Em 89/90 foi Catedrático Convidado de Literatura Brasileira
na Universidade dos Açores, Portugal. Presidente da Associação gaúcha de
Escritores no Biênio 88/90. Membro dos Conselhos Editoriais das editoras da
PUC/RS e da Universidade de Caxias do Sul, bem como do Conselho Estadual de
Cultura.
Obras publicadas: Um quarto de légua em quadro (1976)
[...]; A prole do corvo (1978) [...];
Bacia das Almas (1981) [...]; Manhã
transfigurada (1982) [...]; As
virtudes da casa (1985) [...]; O
homem amoroso (1986); Cães da
Província (1987) [...]; Videiras de
cristal (1990) [...]; [A trilogia Um Castelo no Pampa, composta por:]
Perversas Famílias (1992) [...]; Pedra
da Memória (1993) [...]; [e] Os senhores
do século (1994) [...]; Anais da
Província-Boi (1997); Concerto
Campestre (1997). Em 1988 publica no
jornal Diário do Sul o folhetim Breviário
das Terras do Brasil [compilado em livro em 1997, que também foi o ano em que
Luiz Antonio de Assis Brasil foi escolhido patrono da 43ª Feira do Livro de
Porto Alegre].
Elogiado por A. Bosi, em
sua História Concisa da literatura brasileira, foi incluído pelo brasilianista Malcolm Silverman na obra A Moderna
sátira brasileira. Faz parte do livro A
posse da terra, de Cremilda Medina (Ed.
Casa da Moeda, Portugal), e é objeto de estudos e citações em obras de Antonio
Hohfeldt, Regina Zilbermann, Flávio Loureiro Chaves, Volnyr Santos e outros.
[...]
Prêmios recebidos, sem
inscrição prévia: prêmio Ilha de Laytano (1977) por Um Quarto de Légua em Quadro; Prêmio Érico Veríssimo (1987), concedido pela Câmara de Vereadores de
Porto Alegre pelo conjunto de sua obra, e o Prêmio Literário Nacional, do
Instituto Nacional do Livro (1988), por Cães da Província.” (in: Cães da Província, 7ª edição. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1997,
p. 3-4. As inserções entre colchetes saíram do verbete sobre o autor na
Wikipedia).
Para
completar as informações a respeito de Luiz Antonio de Assis Brasil, depois de
1997: em 1998, ele é palestrante convidado na Brown University, em Providence,
EUA; em 2000, ele participa do programa Distinguished Brazilian Writer in
Residence, na Berkeley University, Califórnia, EUA. E, entre 2011 e 2014, atuou
como Secretário da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, durante a gestão do
governador Tarso Genro. Ele continua atuando como professor e, periodicamente,
escreve para jornais, como Zero Hora.
Obras
publicadas nos anos 2000: O Pintor de
Retratos (2001); A margem imóvel do
rio (2003); Música perdida (2006);
Ensaios íntimos e imperfeitos (2008);
e Figura na Sombra (2012).
Prêmios
recebidos nos anos 2000: prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional
(2001), por O Pintor de retratos; menção
honrosa do Prêmio Jabuti (2003) e prêmio Portugal Telecom de Literatura
Brasileira (2004), por A margem imóvel do
rio.
A
obra do autor, atualmente, está sendo editada pela editora L&PM, nas
versões normal e pocket (mais adiante, veja a capa da edição de CÃES DA
PROVÍNCIA pela L&PM). E também ganhou edições no exterior, na Europa e
América Latina. E sua obra também é constantemente analisada em teses
acadêmicas – já saíram até livros de análise de livros específicos do autor.
Ah:
a obra de Luiz Antonio de Assis Brasil também já ganhou adaptação para o
cinema! Foram quatro filmes até o momento em que escrevo, adaptando livros do
autor: o primeiro foi Videiras de
cristal, adaptado em 2002, pelo diretor Fábio Barreto, sob o nome A Paixão de Jacobina; em 2004, Concerto Campestre foi adaptado para um
filme homônimo, por Henrique de Freitas Lima; em 2005, Um quarto de légua em quadro é adaptado pelo diretor Paulo
Nascimento, sob o nome Diário de um Novo
Mundo; e, em 2008, Manhã
Transfigurada ganha um filme homônimo, dirigido por Sérgio de Assis Brasil.
Há notícias de que O Pintor de Retratos também
está prestes a ser adaptado para o cinema.
Luiz
Antonio de Assis Brasil é tido como um importante escritor gaúcho, e, como tal,
seus livros são mais “cabeça”, como todo bom literato gaúcho, ou, pelo menos,
levando em conta as atuais tendências da literatura comercial, cujos maiores
sucessos são, basicamente, livros de ficção fantástica. Por isso, tanto a
linguagem como os temas abordados são mais voltados a leitores mais
“instruídos”, e seus livros atraem mais quem já ouvira falar de sua obra
anteriormente. E o tema mais recorrente da obra do autor é o passado do Rio
Grande do Sul, principalmente o século XIX. Um
Quarto de Légua em Quadro, por exemplo, se passa na época da colonização
açoriana do Rio Grande do Sul, no século XVIII; A Prole do Corvo recupera episódios da Guerra dos Farrapos (1835 –
1845); As Virtudes da Casa, segundo o
estudioso Valdocir Esquinsani, que até mesmo publicou em livro a sua tese (As Metamorfoses de um Mito, Passo Fundo,
Editora Universitária, 2000), recria,
no Rio Grande do Sul do século XIX, o mito grego do herói trágico Agamenon,
imortalizado em peça teatral de Ésquilo; Videiras
de Cristal recupera o episódio da Revolta dos Muckers, uma seita religiosa
formada por colonos alemães na região de São Leopoldo, RS; Concerto Campestre se passa no contexto da atividade agropecuária do
século XIX (e, assim como O Homem
Amoroso, carrega um acento autobiográfico, tendo como tema condutor a
música); e CÃES DA PROVÍNCIA trata de acontecimentos da cidade de Porto Alegre
no século XIX.
O HOMENAGEADO
Bão.
CÃES DA PROVÍNCIA lança mão de dois episódios principais ocorridos na década de
1860: os crimes da Rua do Arvoredo, quando o ex-policial e açougueiro José
Ramos se torna suspeito de fabricar linguiças com carne humana; e o julgamento
do pedido de interdição dos bens do escritor José Joaquim de Campos Leão,
também conhecido como Qorpo-Santo. Ambos personagens reais.
Antes
de prosseguir, devo falar um pouco a respeito de Qorpo-Santo, o objeto do
romance citado. Escritor de peças de teatro, e considerado por vários críticos
teatrais o precursor do teatro do absurdo no Brasil, José Joaquim de Campos
Leão nasceu em Triunfo, RS, em 1829, e faleceu em Porto Alegre, em 1883,
vitimado por uma tuberculose. Ele não foi reconhecido em vida – suas ousadas
peças teatrais só foram redescobertas e montadas nos anos 1960.
Na
juventude, teve o pai assassinado durante a Guerra dos Farrapos, em 1839;
mudou-se para Porto Alegre para estudar gramática. Inicialmente, trabalha no
comércio, e, a partir de 1850, habilita-se para o Magistério Público, fazendo
carreira também como professor. Qorpo-Santo funda um grupo dramático em 1851,
escreve para jornais da Província do Rio Grande do Sul a partir de 1852, e, em
1855, deixa o magistério e leciona em vários colégios. Em vida, Qorpo-Santo
teve várias profissões, tanto em Porto Alegre como em Alegrete, para onde
muda-se em 1857 com a família (no ano anterior, ele casou-se com Inácia de
Campos Leão). Em Alegrete, Qorpo-Santo atua como delegado de polícia e
vereador.
Em
1861, a família volta para Porto Alegre. No ano seguinte, Qorpo-Santo, já
adotando o pseudônimo célebre (a grafia deve-se a uma proposta pessoal de
reforma ortográfica – muitos leem “Corpo-Santo”, mas eu, pessoalmente, imagino
que se leia, aproveitando o fonema da letra Q, “Kuorpo-Santo”), começa a
escrever suas peças teatrais. Em 1862, ainda, se faz notar sinais dos
transtornos mentais que levam Dona Inácia a pedir a interdição dos bens do
marido. Qorpo-Santo é diagnosticado com monomania, com “superexcitação da atividade
cerebral”, por sua compulsão de “tudo escrever” – apenas em maio de 1866, ele
escrevera oito peças teatrais, das dezessete que escreveu ao todo! Porém, os
psiquiatras da Porto Alegre daquele tempo não chegam a um acordo sobre o estado
mental do paciente, que alterna momentos de lucidez com alucinações. Ainda
assim, é decidida pela interdição dos bens. E Qorpo-Santo é enviado para novos
exames psiquiátricos no Rio de Janeiro, que atestam que ele goza de boa saúde
mental.
Mesmo
assim, em 1868, sob novo julgamento, a interdição é mantida, e seus bens são
administrados por terceiros – Dona Inácia também é impedida de administrar
esses bens. Mesmo com o parecer favorável, o estigma está criado, e Qorpo-Santo
se vê cada vez mais isolado, sendo obrigado a deixar a atividade jornalística.
Ainda assim, em 1877, Qorpo-Santo monta uma gráfica, e por conta própria edita
sua obra, reunida nos nove volumes da coletânea conhecida como Ensiqlopedia, ou seis mezes de huma
enfermidade. É na Ensiqlopedia que,
além de crônicas, poemas, confissões, receitas culinárias e outros textos,
Qorpo-Santo edita suas ousadas peças teatrais. A partir dos anos 1960,
inicia-se o resgate das obras de Qorpo-Santo – até hoje, só foram encontrados
seis dos nove volumes da Ensiqlopedia.
De vez em quando, é possível encontrar compilações de suas peças teatrais nas
livrarias e bibliotecas.
Qorpo-Santo
é tido como precursor do teatro do absurdo, com temas que iam contra as
tendências do teatro da época, guiado pelos ideais do Romantismo. Dentre as dezessete
peças de Qorpo-Santo, incluem-se: As
Relações Naturais; Matheus e Matheusa; Hoje sou Um, Amanhã Sou Outro; Eu Sou
Vida, Eu Não Sou Morte; Lanterna de Fogo; A Separação dos Dois Esposos. Nessas
peças, Qorpo-Santo lança mão de ousadias para sua época, como colocar
prostitutas como personagens; tratar do homossexualismo de forma natural; se
incluir como personagem; e até mesmo indicar ousadias cênicas difíceis de
reproduzir com as limitações cênicas do século XIX, como personagens que
simulam perder partes do corpo ou o fim da peça com jorros e explosões de luz.
Mas, o mais importante é que os personagens de Qorpo-Santo são projeções dele
mesmo, principalmente em seu inconformismo com as regras sociais de seu tempo –
inconformismo que se tornou mais forte depois que foi submetido aos exames,
internações e à interjeição de seus bens. Há de lembrar que os tratamentos
psiquiátricos do século XIX, pelos padrões de hoje, lançavam mão de técnicas
cruéis e questionáveis, como isolamento em hospícios, aprisionamento com
correntes e camisas-de-força, tratamentos com choques elétricos e até
lobotomia.
(Fonte:
sites Wikipedia e Enciclopédia Itaú Cultural
[enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8151/qorpo-santo])
QORPO-SANTO NO ROMANCE
É
como um sujeito inconformado com as regras sociais que Qorpo-Santo é retratado
em CÃES DA PROVÍNCIA. No livro, lançado em 1987 e vencedor do Prêmio Literário
Nacional do INL em 1988, Luiz Antonio de Assis Brasil reconstitui os aspectos
da cidade de Porto Alegre no século XIX, tanto na parte física – a descrição da
cidade – como social. A sociedade porto-alegrense do século XIX se encontrava
muito presa às convenções sociais, às regras de conduta impostas pela Igreja,
pela Política e pelos costumes, tanto as classes ricas como as pobres. Se
portam como cães fiéis e obedientes a essas convenções (daí o nome do romance).
Por seu provincianismo, qualquer fato que acabe saindo do comum agita e revolta
a população da Capital da Província, mobiliza as autoridades, provoca
interdições e depredações.
Por
isso, as notícias da prisão de José Ramos, o linguiceiro, e da interdição dos
bens de Qorpo-Santo agitam a população da capital. Além de não conseguirem
aceitar o fato de terem, involuntariamente, consumido carne humana, não
conseguem suportar o fato de um louco dizer o que pensa de todos esses
acontecimentos, e expor a sociedade de uma forma que não consegue suportar. Ou,
pelo menos, de alguém que acreditam ser louco: Qorpo-Santo é retratado como um
homem de superioridade intelectual, o mais inteligente daquela cidade, mas que,
como a grande maioria dos gênios, não foi reconhecido por seus contemporâneos.
Loucos seriam, na verdade, os que queriam interditar o pobre gênio. Mas, mais
que isso, tais processos acabam escancarando histórias de crimes, adultérios,
incestos e outras crueldades, às quais Qorpo-Santo denuncia, a plenos pulmões a
quem assiste seu julgamento, ou através de suas peças, que ele começa a
escrever.
Para
escrever CÃES DA PROVÍNCIA, Luiz Antonio de Assis Brasil também contou com a
consultoria do historiador Décio Freitas, que conseguira o material referente
ao processo contra José Ramos e a mulher, Catarina Palse. Foi só em 1996 que
Freitas publicaria seu livro O Maior Crime da Terra – e só em 2004 que o escritor David Coimbra consultaria
Freitas para escrever Canibais. Então,
Assis Brasil chegou antes.
Bão.
O romance conta, de forma não-linear, e intercalando personagens e situações,
os acontecimentos ocorridos na Porto Alegre da década de 1860. Quanto à parte
de Qorpo-Santo, os acontecimentos concentram-se desde o início do processo de
interdição até a sua partida para o Rio de Janeiro.
Pelo
menos um personagem ficcional tem grande importância na narrativa: o comerciante
Eusébio Cavalcante, amigo de Qorpo-Santo, de início muito preocupado com as
convenções sociais e seus negócios, até receber a notícia de que sua esposa, a
geniosa Lucrécia, fugira com o amante. A ausência da esposa causa uma grande
angústia a Eusébio – angústia que só aumenta quando, instado por Qorpo-Santo e
levado a um necrotério, ele acaba reconhecendo um corpo esquartejado de mulher
como sendo o de Lucrécia. Corpo esse que fora encontrado entre os restos das
vítimas de José Ramos, na casa da Rua do Arvoredo. Nos dias que seguem, Eusébio
se entrega ao luto, que até dá uma melhorada depois que faz uma viagem e se
envolve com uma alemã, um caso rápido e fugaz; mas tem cada vez mais certeza de
que Lucrécia está viva, vivendo com o amante, e reconhecera o corpo, e lhe dera
enterro em nome da mulher, como uma forma de desviar a atenção da população.
Até
que Lucrécia, de repente, volta para casa, arrependida do adultério, infeliz
com a vida que levava com a família do amante... porém, não pode se mostrar ao
público, e, trancada em casa, sucumbe aos poucos ante à loucura de Eusébio, e
sua própria. O retorno da esposa só deixa o comerciante mais angustiado, e a
libertação só se dá depois que consegue, afinal, se livrar da esposa,
dando-lhes uma morte piedosa.
Não
sei dizer se os personagens do Dr. Joaquim Pedro e do Dr. Landell são baseados
em figuras reais. Esses são os médicos encarregados de discutir o caso do
paciente Qorpo-Santo, para depois oferecerem o parecer ao juiz, determinando se
ele deve ter os bens interditados ou não; e aproveitam qualquer ocasião para
discutir o caso, desde uma caçada nos campos até uma aula de anatomia na Santa
Casa de Porto Alegre – o principal hospital daquele tempo. Enquanto o Dr.
Landell é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é louco, o Dr. Joaquim
Pedro é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é são – e se convence disso
depois de ler as peças escritas pelo paciente (há, inclusive, pequenas e breves
descrições das peças de Qorpo-Santo ao longo do livro).
O
delegado de polícia Dario Calado, sim, é real. Acompanhamos alguns de seus
pensamentos diante dos casos que se apresentam diante de si. E também de seus
interesses amorosos: ele chega a desejar a criminosa Catarina Palse – que tem
uma participação muito breve no romance, assim como a de José Ramos – e,
depois, deseja até mesmo Inácia, a esposa de Qorpo-Santo. Por pouco, em um
segundo encontro, Calado não consuma seu desejo pela mulher do louco.
Inácia
de Campos Leão vive, ao longo do romance, um sentimento conflitante em relação
ao marido. Ambos se amam, mas Inácia não consegue suportar o fato de
Qorpo-Santo estar entregue à sua atividade insana de escrever, e deixar a
família de lado, vivendo na rua da amargura. Por isso, opta pela interdição dos
bens, com a certeza de que poderá administrá-los. Como prova de sentimentos
conflitantes, ela chega até a dormir com o marido, e, pouco depois, brigar com
ele, que foge, nu, pelas ruas, e depois é preso.
Apesar
da lucidez de Qorpo-Santo em denunciar as mazelas da sociedade em que vive, o
personagem também alterna momentos de pura alucinação e ações ilógicas: cria um
sagui em seu quarto, muda o nome de seu criado e confidente, Juvêncio, para
Inesperto, tranca a porta da frente de seu sobrado com tábuas – o acesso para
sua casa, agora, se dá através de uma escada portátil, pela janela de seu
quarto – e recebe “visitas” do imperador francês Napoleão III (sobrinho de
Napoleão Bonaparte), que exige que Qorpo-Santo reescreva seu destino, para que
não termine como o tio. Em alguns momentos, Qorpo-Santo chega a apresentar o
Imperador, que só ele vê, a pessoas em seu redor. Nos diálogos com o Imperador
imaginário, Qorpo-Santo (ou melhor, Assis Brasil) aproveita para discutir
reformas sociais lúcidas, e válidas para qualquer tempo. De vez em quando, a
imaginação de Qorpo-Santo confunde Porto Alegre com Paris. Aí, se pode
questionar: sim, Qorpo-Santo está louco. Essas não são atitudes de gente que
denuncia mazelas de forma tão lúcida. Ou seriam uma forma racional de protesto?
Os leitores podem decidir.
Inesperto
também se mostra um personagem importante no livro, o ponto de equilíbrio de
Qorpo-Santo entre a lucidez e suas alucinações, apesar de também agir como um
“cão da província” – apenas cumpre ordens, sem maiores questionamentos, por
mais insanas que sejam, e não tem, exatamente, uma opinião formada a respeito
do que presencia. Inesperto é o contato entre seu patrão e a realidade, uma
espécie de Sancho Pança para um Dom Quixote porto-alegrense.
Enfim.
CÃES DA PROVÍNCIA pode ser encontrado nas livrarias e bibliotecas. É um romance
“cabeça”, que pode exigir um pouco do leitor, mas livros, em tese, servem
justamente para isso: colocar cultura na cabeça dos leitores. Acrescentar
palavras novas ao vocabulário, acrescentar experiências novas à vida. E
procurar entender não apenas por que Luiz Antonio de Assis Brasil é um de
nossos escritores mais importantes; e porque CÃES DA PROVÍNCIA é um livro
premiado.
Quem
sabe, também, não se colocar no lugar do atormentado Qorpo-Santo.
Férias
são uma boa oportunidade para colocar cultura na cabeça: inclua livros na sua
mala! O Estúdio Rafelipe já deu sua sugestão.
PARA
ENCERRAR...
Coloco
aqui novas páginas de minha nova HQ folhetinesca, batizada, provisoriamente,
como “O Açougueiro”. Ela é baseada, como puderam deduzir até agora, nos Crimes
da Rua do Arvoredo. Mas sob um novo enfoque, que vai aparecendo à medida em que
vou produzindo – e o leitor vai lendo. É tudo o que garanto por hora.
Novas
páginas da série, agora, só no ano que vem. Mas ainda tem postagem este ano,
antes da virada. Aguardem e verão!
Até
mais!
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