sábado, 27 de fevereiro de 2016

A NOVA CALIFÓRNIA HQ ou: faça nosso teste de ambição

Olá.
Hoje, dou continuidade à minha série especial sobre a coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos, da editora Escala Educacional. Ainda continuo com a primeira leva de títulos dessa série, que foi composta, em seu lançamento, no ano de 2004, de adaptações de contos de Lima Barreto e Machado de Assis.
Começo hoje o terceiro pacote vendido em bancas, à época do lançamento. Mas, hoje, volto a falar de Lima Barreto, o autor do conto original. Hoje, volto a falar de Francisco Vilachã, o responsável pela transposição do título de hoje, A NOVA CALIFÓRNIA, para HQ.

Para começar, A NOVA CALIFÓRNIA é um dos mais famosos contos de Lima Barreto, presença garantida em coletâneas de contos selecionados do autor carioca. Foi publicado em periódico pela primeira vez em 1910, e compilado, junto com outros contos, na coletânea Histórias e Sonhos, de 1920. Divide com O Homem que Sabia Javanês o título de obra-prima curta do autor.
Bem, para entender a importância de A NOVA CALIFÓRNIA, basta dizer que a narrativa foi uma das principais bases de uma novela da Rede Globo. Fera Ferida, de 1993, escrita por Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, foi criada em cima do universo ficcional de Lima Barreto, de seus romances e contos. A NOVA CALIFÓRNIA forneceu alguns elementos principais, como o local onde a trama se passa e o nome de alguns personagens. Quem ler A NOVA CALIFÓRNIA, dificilmente deixará de fazer a associação com Fera Ferida, que, aliás, no momento em que escrevo, já está reprisando na TV paga, no canal Viva.
A adaptação de A NOVA CALIFÓRNIA para quadrinhos ficou a cargo, mais uma vez, de Francisco Vilachã, que, desta vez, cuidou de tudo, o roteiro, os desenhos e as cores. A adaptação da Escala Educacional, lançada por volta de 2005, é a única para quadrinhos, feita até o presente momento. Também chegou a ser distribuída nas bancas de revistas, em pacote junto com A Cartomante, de Machado de Assis, por Jô Fevereiro.
A NOVA CALIFÓRNIA traz diversos subtextos em seu conteúdo. Para começar, seu título remete à Corrida do Ouro da Califórnia, nos Estados Unidos, iniciada em 1848. Mas, claro, se passa no Brasil, e envolve ouro, ganância, superstição e um retrato da mesquinharia humana, que, em busca de vantagens pessoais, não se importa em passar por cima dos próprios valores morais – outros temas que Lima Barreto gostava de retratar em seus escritos.
Bem. O conto original é dividido em três partes. Passado na pequena e fictícia cidade de Tubiacanga, começa com a chegada de um misterioso homem chamado Raimundo Flamel. As pessoas da comunidade começam a traçar seu retrato a partir inicialmente dos relatos de outras pessoas: primeiro, do pedreiro Fabrício, que fez obras na casa onde ele se instalou, e relatando que ele instalara uma porção de instrumentos nunca antes vistos. O povo suspeita que ele possa ser um criminoso, ou bruxo com pacto com o diabo, mas o farmacêutico Bastos logo esclarece: trata-se apenas de um químico, que refugiou-se em Tubiacanga para trabalhar em seus experimentos tranquilamente. E devemos lembrar: no início do século XX, o cargo de cientista não era comum no Brasil, já que grande parte da população era analfabeta, e o Brasil não tinha influência na comunidade científica internacional, era um país majoritariamente agrário e cuja economia se baseava prioritariamente na agricultura de exportação, sobretudo de café, logo, ciência não era algo útil para a maioria da população.
Com o tempo e a convivência com o homem, logo uma nova imagem de Flamel é traçada. Além de ser um sábio, ele era bondoso com as crianças locais, e bom pagador. A única pessoa que, àquela altura, não tinha a menor simpatia para com o cientista era o Capitão Pelino, mestre-escola e jornalista com mania de corrigir erros gramaticais de conversas.
A segunda parte do conto começa quando, um dia, Raimundo Flamel procura o farmacêutico Bastos, para uma conversa em particular. E revela que, através de experimentos, fez uma extraordinária descoberta: produzir ouro a partir de ossos humanos. E pede que o experimento seja assistido por três pessoas, para atestar a veracidade e dar o aval. Uma delas é o farmacêutico; este escolhe mais duas: o Coronel Bentes e o coletor Tenente Carvalhais. Os três homens vão, no domingo, assistir ao experimento; e, dias depois, Flamel desaparece da cidade, sem deixar vestígios.
Até aqui, o público mais bem-informado já deve ter percebido que o nome do cientista remete ao lendário alquimista europeu Nicolau Flamel, que teria descoberto o método para transformar metais em ouro (vamos, turma, vocês sabem quem é, ele foi citado em um volume de Harry Potter!). Na novela Fera Ferida, o personagem principal, que também se chamava Raimundo Flamel, interpretado por Edson Celulari, adquiriu uma capacidade parecida.
Voltando ao conto. Já a terceira parte do conto começa quando a então pacata cidade de Tubiacanga, de “três ou quatro mil habitantes”, ferroviária, produtora de café, cortada pelo rio de mesmo nome e que só registrava, em seu cadastro de crimes, um assassinato por motivos políticos, começou a assistir um crime repugnante: as sepulturas do cemitério local começaram a ser violadas. Ossos de cadáveres ali sepultados começam a sumir, dia após dia, apesar dos esforços do coveiro em tapar os buracos percebidos nos muros. E a vila começa a se perturbar. Muita gente clama pela apuração do crime; a filha do engenheiro residente da estrada de ferro, a bela e esnobe Cora, enche-se de temores e alucinações de que, quando vier a morrer, seu túmulo seja violado; e o Capitão Pelino vocifera ainda mais em seu jornal.
A perturbação é tamanha que os parentes dos mortos logo cogitam montar guarda junto às sepulturas dos parentes falecidos. Mesmo assim, os saques continuam; é montada uma comissão de vigias, de dez homens, que, depois de quatro dias, conseguem pegar os profanadores. Ou melhor dois dos três profanadores: o Coletor Carvalhais, que morre no tumulto, e o Coronel Bentes, que, sobrevivendo, conta à população que pegara os ossos para produzir ouro, evidentemente, a partir do experimento do cientista Flamel.
Logo, os ânimos começam a se acirrar: cada qual com suas necessidades, seus planos e/ou movidos pela pura ganância, os habitantes de Tubiacanga se enchem de esperanças de riqueza ao saberem desse experimento. Procuram o farmacêutico Bastos, o profanador que conseguira fugir, que promete ensinar a fórmula para produzir ouro. E, na mesma noite, os habitantes da cidade invadem o cemitério, para conseguir a maior quantidade de ossos possível. Todos, do mais importante até o mais humilde, acompanhados ou não dos filhos; até mesmo Cora veio brigar pelos ossos, alguns arrancados da carne não totalmente apodrecida. E dê-lhe tumultos, facadas, tiros... E, no dia seguinte, praticamente todo mundo se matou pelos ossos. Só duas pessoas não estiveram ali: o bêbado Belmiro, o único indiferente a tudo, e o farmacêutico, que fugiu com seu ouro.
Bem. Talvez a grande dificuldade na transposição do conto para HQ seja porque há um grande número de personagens. Lima Barreto dispensou-se de aprofundar as características físicas e psicológicas de cada um dos envolvidos. Atém-se apenas ao principal, que é a ação, e, por consequência, se atrapalha um pouco com a condução da narrativa, em uma escrita “atropelada” e apressada, possivelmente por causa do espaço oferecido pelo periódico onde o conto saiu pela primeira vez. Cabe ao leitor traçar o perfil de cada um dos personagens envolvidos, a partir de suas ações.
E importante também foi a tese sociológica montada pelo autor, que funcionou dentro do conjunto. Pensem bem e confessem: se um dia, diante de uma crise financeira, alguém aparecesse com a história, e conseguisse confirmar diante de vocês, que é possível converter ossos humanos em ouro puro, vocês também começariam a violar túmulos de cemitério para fazer seu pezinho-de-meia, certo?
A NOVA CALIFÓRNIA é um conto de leitura rápida, cuja impressão é a de acabar depressa, já que tem pouca descrição. E, tendo muita ação, também tem poucos diálogos, mas estes nem foram difíceis de traduzir para a linguagem gráfica das HQ.
Entretanto, algo impede que este seja o melhor trabalho de Francisco Vilachã. Em verdade, parece ser o pior trabalho do quadrinhista paulista para a coleção Liretatura Brasileira em Quadrinhos. O desenho é bastante apressado; a diagramação dos textos ficou muito desleixada, tornando difícil até mesmo saber a ordem de leitura dos recordatórios; até mesmo os poucos balões de fala saíram quadrados, confundindo-se com as falas do narrador nos recordatórios. Dá para notar que a diagramação dos textos foi feita no computador. As cores são chapadas, em tons sombrios, mas combinando com o tom mórbido da narrativa. Algumas páginas possuem poucos quadros; outras páginas possuem muitos quadrinhos, com muitos personagens, e as cenas de multidão, consequentemente, se tornam cansativas para o leitor. E Vilachã insiste em fazer personagens masculinos parecidos entre si, no molde único de “cara de cavalo”, de narizes grandes e largos e rostos alongados, com pequenas variações. Ainda por cima, o álbum apresenta alguns defeitos de impressão.
O álbum, de 48 páginas sem contar capa, sendo 40 para a história, completa-se com a biografia de Lima Barreto, e atividades complementares aos alunos do ensino fundamental.
Para um dos contos mais aclamados de Lima Barreto, bem que merecia um tratamento gráfico melhor. Mas Vilachã teve outras oportunidades de acertar e de errar dentro da série Literatura Brasileira em Quadrinhos... claro que teve.
Disponível em livrarias, ou no site da Escala Educacional (www.escalaeducacional.com.br).
Para encerrar, e tem sido já a praxe aqui no blog, deixo aqui mais algumas páginas de minha HQ folhetinesca, O Açougueiro. Ainda não aprendi minha lição... Ainda não engrenei a ação da narrativa... um hipotético álbum compilando estas páginas continuamente publicadas, tanto aqui como no meu Facebook, não vai vender... Não para um público ávido por ação, suspense, violência...
Mas, já que comecei, só me resta terminar. Não sei como terminar, mas vou tentar terminar. É o que posso dizer a respeito. Vamos, digam que não está bom, podem dizer.
Na próxima postagem, A Cartomante, de Machado de Assis, dando continuidade à série.

Até mais!

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