Olá.
Hoje,
dou continuidade à minha série sobre adaptações de obras da literatura para HQ
– ou melhor, das adaptações da Editora Escala Educacional, ou, mais
precisamente, da série Literatura Brasileira em Quadrinhos, a qual já
apresentei na postagem anterior.
Meio
que por ordem de lançamento, comecei falando sobre O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto, por Jô Fevereiro; hoje,
o álbum escolhido é UNS BRAÇOS, de Machado de Assis, por Francisco Vilachã.
SOBRE
VILACHÃ
Antes
de falar do álbum, melhor que eu fale, como costumo fazer, do responsável pela
adaptação do conto do “Bruxo do Cosme Velho” para os quadrinhos. Afinal,
Machado de Assis dispensa apresentações para que não fugiu das aulas de
Literatura na escola, certo?
Francisco
Vilachã nasceu no Rio de Janeiro, em 1953. Morou no subúrbio da ex-Capital
Federal, e é fã de Lima Barreto, o que contribuiu para que fosse escalado,
posteriormente, para fazer adaptações de suas obras para HQ.
Vilachã
meio que “aprendeu a ler” com os quadrinhos. Ele cursou aulas de desenho
publicitário no Senac, tendo por professor o quadrinhista Guidacci. Foi este
quem apresentou o jovem Vilachã ao cartunista Fortuna, que editava, então, a
revista O Bicho – e foi nessa
revista, em 1976, que Vilachã publicou seu primeiro trabalho. Depois disso,
Vilachã passou algum tempo na ilustração e nos trabalhos gráficos para jornais,
já que viver de quadrinhos não era possível; em 1978, ele começou a colaborar
para a revista Spektro, da editora
Vecchi, a partir do número 6, desenhando histórias de terror de forma quase
constante.
Mais
tarde, ele começou a colaborar para a histórica editora Grafipar, escrevendo e
desenhando histórias ao lado de feras como Flávio Colin, Watson Portela, Rodval
Matias e Mozart Couto. Após o fechamento da Grafipar, desenhou histórias para
as revistas da Press Editorial.
Por
volta de 1983, Vilachã, junto com Ronaldo Antonelli, edita, pela editora Ondas,
a revista Inter Quadrinhos. Nascida
como um suplemento de quadrinhos da revista masculina Big Man Internacional, a Inter
Quadrinhos, após o primeiro número, ganha vida própria, e a revista é
publicada em duas séries: a primeira, com cinco números e edição de Antonelli e Vilachã, tinha 68 páginas em
cada número e alternava entre páginas coloridas e preto-e-branco; a segunda
série, com edição de Itagyba de Oliveira e Marcelo Verde, teve seis números, com menos páginas em cada número (36) e impressa em
uma só cor (um número impresso em verde, um em vermelho, um em violeta, um em
preto...). Além dos quadrinhos, ainda trazia textos informativos sobre o
universo das Histórias em Quadrinhos, do Brasil e do Exterior. Na Inter Quadrinhos, 100% brasileira, mas
alinhada às revistas estrangeiras com histórias “adultas” (com doses de
erotismo, violência e humor negro altos para os gibis da época), colaboraram importantes artistas, como
Watson Portela, Mozart Couto, Xalberto, Miguel Paiva, Mosquil, Cláudio Seto,
Flávio Colin, Jô Fevereiro, Glauco Villas-Boas, os Deodato Borges, sênior e filho (este, o
futuro Mike Deodato), Franco de Rosa... entre muitos outros. E, claro, o
próprio Vilachã, que, em suas histórias, “brincava” com músicas da época e as
inseria no contexto de seus desenhos – entre suas “vítimas”, esteve Lou Reed,
As Frenéticas e Caetano Veloso. Nessa época, alguns de seus personagens eram
notáveis pela androginia (confusão de sexo masculino com feminino). Atualmente, dá para encontrar scans de exemplares da Inter Quadrinhos para download.
Após
o encerramento da Inter Quadrinhos e
da linha de HQs da Press, Vilachã começou a trabalhar como freelancer para
diversas publicações, como o jornal O São
Paulo e a revista Alô Mundo.
Em
2004, afinal, retorna aos quadrinhos: ele começa a fazer as adaptações de obras
literárias para a Escala Educacional. Solo, roteiro e desenhos, Vilachã
produziu, para a primeira leva da série Literatura
Brasileira em Quadrinhos: Uns Braços,
O Enfermeiro, A Causa Secreta e O Alienista, de
Machado de Assis, e Um Músico
Extraordinário e A Nova Califórnia de
Lima Barreto. Depois, passou para os romances “maiores”. Vilachã retomou a
parceria com Ronaldo Antonelli – este escreveu os roteiros para as adaptações
de O Cortiço, de Aluísio de Azevedo; Triste Fim de Policarpo Quaresma, de
Lima Barreto; A Polêmica e Outras
Histórias, de Artur Azevedo; Inocência,
de Visconde de Taunay; e Primórdios
da Literatura Brasileira, condensando textos dos primeiros cronistas da
história brasileira, como Pero Vaz de Caminha, Fernão Cardim e José de
Anchieta.
Não
ficou nisso: Vilachã e Antonelli produziram, para a série Literatura Mundial em Quadrinhos, também da Escala Educacional, o
volume Contos de Tchekhóv, adaptando
cinco contos do escritor russo.
Seus
trabalhos mais recentes também são adaptações de obras literárias para HQ,
lançadas na forma de e-book para Kindle: o conto Ideias de Canário, de Machado de Assis, e O Veterinário, de Maksim Gorki.
Conheça
mais a respeito do trabalho de Vilachã no website oficial do autor: www.franciscovilacha.com.br.
O
UNIVERSO MACHADIANO...
Well.
Como eu disse, o universo de Machado de Assis (1839 – 1908) dispensa
apresentações. O “Bruxo do Cosme Velho” é considerado o maior escritor
brasileiro de todos os tempos, o maior nome do movimento literário do Realismo,
que se opôs ao Romantismo, com suas histórias sem final feliz, sem idealizações
do amor e do país, essencialmente urbanas e retratando, de forma às vezes cruel
e abusando da ironia, a sociedade de seu tempo.
Isso
outros importantes escritores também fizeram, claro, mas Machado de Assis fez
mais... Afinal, ter, ainda no século XIX, ter colocado um morto para narrar sua
própria história, em Memórias Póstumas de
Brás Cubas (1881), e ter criado a maior dúvida da literatura brasileira,
até hoje não esclarecida, em Dom Casmurro
(1899) – Capitu traiu ou não Bentinho com Escobar? – já é uma boa amostra
da genialidade do mulato, primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras,
etc.
Bem,
em minha humilde (e sujeita a discordâncias) opinião de blogueiro, os contos de
Machado de Assis ainda são seu melhor material – mais digeríveis que os
romances, por terem uma linguagem menos rebuscada, serem mais curtos e mais
concisos, sem perder muito tempo com reflexões, etc... Enfim, os contos de
Machado de Assis ainda são o melhor material introdutório ao universo do “Bruxo
do Cosme Velho”, para depois tentar a “sorte” com os romances (chegando ao
final de um romance de Machado de Assis já constitui um ganho enorme).
E,
claro, Machado de Assis é o autor atualmente campeão em adaptações de seus
textos para HQ. Vários autores, por várias editoras, adaptaram contos e
romances de Machado de Assis para a linguagem gráfica, em muitos casos, mais de
uma vez. Já falei aqui, por exemplo, da adaptação de O Alienista, feita pelos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá (mais ou
menos na mesmo época, foram feitas outras três adaptações, por editoras
diferentes). De outras adaptações de Machado de Assis para HQ, vou falando com
o correr do tempo.
Hoje
vou falar de UNS BRAÇOS. Até onde sabemos, a adaptação de Vilachã para a Escala
Educacional é a única do conto, uma narrativa curta, rápida e que muitos
classificam como uma história “erótica” de Machado de Assis.
O
CONTO
UNS
BRAÇOS foi publicado inicialmente em revista (não sei informar, nesse momento,
em qual), e republicado na antologia de contos Várias Histórias (1896). A versão em HQ pela Escala Educacional foi
lançada em 2004, junto com a adaptação de O
Homem que Sabia Javanês. Ambos foram vendidos, em um só pacote, nas bancas.
Atualmente, está disponível em livrarias ou no site da Escala Educacional.
Além
da adaptação para HQ, UNS BRAÇOS também teve uma adaptação para o cinema – na
forma de um curta-metragem brasileiro de 36 minutos, dirigido por Adolfo
Rosenthal em 2009. Está disponível no YouTube, só procurar.
UNS
BRAÇOS é classificado por alguns como uma história “erótica” de Machado de
Assis, mas um erotismo apenas sugestivo, baseado apenas no desejo, sem nudez ou
sexo – ao menos, não da forma como já nos acostumamos a pensar. Dentro dos
padrões do século XIX, o “século hipócrita” segundo a historiadora Mary Del
Priore; em que mulheres andavam totalmente cobertas, e beijo na boca, em
público, era algo impensável para moços e moças “de bem”. E o objeto de desejo
do personagem principal é uma parte do corpo feminino mais improvável, menos
“erógena”.
Bem.
UNS BRAÇOS, que se passa “na Rua da Lapa, em 1870”, trata da tensão sexual
vivida pelo jovem Inácio, menino de 15 anos que, por indicação do pai, vai
trabalhar como assistente do Solicitador Borges, um importante empregado do
judiciário. Inácio está morando na casa do Solicitador, um homem rude cujo
prazer é xingar o pobre empregado – Inácio é um tanto “avoado” e atrapalhado. O
menino até mesmo participa das refeições ao lado do patrão e sua mulher, D.
Severina – o único momento de intimidade entre os três. Inácio não gosta muito
do trabalho, e só encontra prazer nessa vivência na hora das refeições: ele
está atraído por D. Severina, que tem o hábito de usar vestidos sem mangas,
deixando os braços nus. Esse pedaço de pele exposta é o maior motivo da
admiração de Inácio por D. Severina, e ele praticamente só tem os braços da
mulher de seu patrão na mente. Mas, claro, não pode dizer nada – e ainda tem de
ouvir as descomposturas de Borges, por conta de seu alheamento, suas distrações
e esquecimentos.
Por
outro lado, D. Severina já desconfia que o garoto está, sim, atraído por ela –
e ela, aos poucos, desperta uma atração por Inácio, o que a põe muito
constrangida. Ainda mais porque o marido parece reparar em alguma coisa errada,
já que todo mundo na casa, menos ele, está no “mundo da lua”.
Até
que, em uma tarde de domingo, Inácio, sem muito a fazer, dorme em sua rede e
sonha com D. Severina, naturalmente; e a mulher não consegue mais se conter:
vai até o quarto do rapaz e o beija na boca durante o sono. Mas, enquanto
Inácio toma o que aconteceu como um simples sonho, D. Severina, constrangida
pela ousadia, acaba mudando seu jeito de ser, sem mais nem menos... E Inácio
não pode mais ficar na casa do Solicitador, depois disso tudo.
Bão.
Na adaptação para HQ, Vilachã fez uma adaptação integral e bastante básica.
Sendo o conto curto, até o texto foi incluído, quase integralmente, à parte
gráfica – os quadrinhos. Quase não há falas e balões, só os recordatórios com a
“fala” do narrador. As imagens são, praticamente, apoio para o texto – e se
pode perguntar: seria mesmo necessário tantos quadros para traduzir a tensão
explícita no texto? UNS BRAÇOS HQ acaba sendo mais um storyboard para um filme
do que uma HQ. Com menos quadros por página, talvez o resultado fosse melhor...
Nem praticamente substituísse a versão original, em texto corrido, do livro Várias Histórias.
O
forte do álbum acaba sendo, mesmo, a arte, com linhas mais cinzentas e cores
difusas; a pesquisa de época feita por Vilachã, reproduzindo a ambientação do
Rio de Janeiro de 1870; e a caracterização física dos personagens, com destaque
para Inácio, com o olhar sempre vago, distante, a expressão quase o tempo todo
monótona – e isso acaba, depois de algum tempo, chateando o leitor.
E,
quem ver os outros álbuns desenhados por Vilachã, vai notar que os personagens
masculinos, narigudos e de certa forma caricaturais, são muito parecidos entre
si. Mais: Vilachã ainda escondeu, na história, um “avatar” de Machado de Assis,
que o leitor pode procurar como uma atividade complementar.
Bem,
são só 40 páginas de história, das 48 do álbum inteiro, né... As páginas
restantes compõem-se da biografia de Machado de Assis e atividades de apoio
para os estudantes (lembrem-se, a coleção Literatura
Brasileira em Quadrinhos é destinada aos alunos do Ensino Fundamental).
Para
gostar dos clássicos. Para entrar no universo de Machado de Assis de uma forma
mais... pop.
PARA
ENCERRAR...
...desenho,
quadrinhos, por Rafael Grasel! Continuo, nesse momento, a série O Açougueiro, baseada nos Crimes da Rua
do Arvoredo – Porto Alegre, 1863 – 64. Para esta ocasião, só consegui produzir,
por hora, duas páginas. A história vai aparecendo à medida que vou produzindo –
já devo ter dito isso várias vezes a vocês, não? Mas garanto que ainda há muita
história pela frente. Mas será que está legal para o leitor?
Na
próxima postagem: Um Músico
Extraordinário, continuando a série.
E
assim vamos seguindo.
Até
mais!
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