Olá.
Hoje,
tudo parece calmo. Ao menos no momento em que escrevo. É propício, então, para
falar de assuntos leves. Daqueles que não estragam nosso dia.
Hoje,
então, vou tratar de quadrinhos (ah, novidade!). Mas, hoje, vou falar de um
quadrinho diferente, disponível em álbum de editora conhecida.
Hoje
vou tratar de MUTTS, considerada uma das obras primas do quadrinho mundial em
tiras.
MUTTS
é uma dessas séries que acumulam adjetivos positivos. Genial, poético,
simplório (no bom sentido), minimalista, divertido, na medida para fãs de cães
e gatos. Eu mesmo comprovo.
Bem.
A tira chamada MUTTS, que no Brasil atende pelos nomes Os Vira-Latas ou Au, Miau, foi
criada em 1994 por Patrick McDonnell, que já tinha alguns anos de experiência
como cartunista e ilustrador antes de se dedicar a essa tira altamente
elogiada, e que angariou fãs famosos.
McDonnell
nasceu em Edison, Nova Jersey, EUA, em 1956. Ele é graduado na Edison High
School, de sua cidade, e na School of Visual Arts de New Jersey. O cartunista,
que também é vegetariano e ativista de diversas associações de direitos dos
animais, antes da criação de MUTTS, já tinha uma carreira estabelecida como
ilustrador e cartunista, desde 1978, desenhando para revistas como Village Voice, Sports Illustrated, Reader’s
Digest, Forbes, Time e New York
Times, onde ilustrou a coluna Observer,
do jornalista Russell Baker, de 1978 a 1993. Já para a revista Parents Magazine, fez, por dez anos, a
tira mensal Bad Baby.
Ele
ainda é escritor de livros infantis, atividade que exerce à parte do trabalho
como quadrinhista – seus principais livros são: The Gift of Nothing (2005), Art
(2006), Just Like Heaven (2006), Hug Time (2007) e o premiadíssimo Me... Jane (2011). E também ficou
conhecido como coautor de um livro sobre a clássica tira Krazy Kat, de George Herriman (Krazy
Kat: the Comic Art of George Herriman, publicado em 1986, pela editora
Harvey N. Abrams, e escrito por McDonnell, Karen O’Connell e Georgia Riley de
Havenon). Krazy Kat também pode ser
apontada como uma das grandes influências no trabalho de McDonnell, notável em
MUTTS.
A
criação de MUTTS representou uma grande mudança na vida de McDonnell. Em 1994,
ele submetera à megacorporação King Features Syndicate (a mesma que distribui
as tiras de Recruta Zero, Hagar o
Horrível, Popeye, Fantasma e outros clássicos) uma tirinha chamada
inicialmente de Zero, versando sobre
cães e gatos. A tira acabou rebatizada como MUTTS, e logo se tornou cult:
atualmente, é publicada em cerca de 700 jornais em todo o mundo, em cerca de 20
idiomas. E foi altamente premiada ao longo dos anos: dentre os prêmios
recebidos pelo autor, estão o Reuben, da National Cartoonists Society, de
Cartunista do Ano; o Max und Moritz Award, da Alemanha, de melhor tira
internacional; a Estatueta Adamson, da Suécia; cinco Harvey Awards de Melhor
Tira em Quadrinhos; dois Genesis Awards da The Ark Trust, de estímulo à
consciência da mídia; o HSUS Hollywood Genesis Award de compromisso contínuo; e
o Sierra Club Award.
E
MUTTS também angariou, como já dito, fãs famosos: entre eles, Matt Groening, o
criador dos Simpsons, e o saudoso
Charles Schulz, criador de Peanuts
(Charlie Brown e Snoopy), que considerava MUTTS “uma das melhores HQs de
todos os tempos”, já que, segundo ele, McDonnell “continua tendo ideias que eu
gostaria de ter tido”.
McDonnell
mora com a esposa, Karen, e seus dois mascotes, a cadela Amelie e o gato Not
Ootie.
McDonnell
continua produzindo a tira até hoje, compilada atualmente em coletâneas. No
Brasil, conhecemos duas edições de coletâneas de MUTTS: uma da editora Devir,
lançada em março de 2009 (Mutts – Os
Vira-latas), e uma da editora Pixel Media, selo do grupo Ediouro (Mutts – Cães, Gatos e Outros Bichos),
lançada em agosto de 2015. Esta última é a base desta postagem, e vocês podem
ver a capa abaixo.
...E SUAS CRIATURAS
Bem.
MUTTS, em princípio, não oferece muita novidade em matérias de tiras com cães e
gatos como protagonistas. Quer dizer, são centenas as tiras com bichos, como Garfield, Krazy Kat, a fauna de Walt
Disney, Pogo... A diferença maior de
MUTTS é a abordagem, o tom poético das histórias, baseadas na visão de mundo de
dois bichos de estimação, um cão e um gato não-antropomorfizados.
MUTTS,
em inglês, é o nome como são conhecidos os animais vira-latas, geralmente os
cães e gatos de rua. Nome, portanto, apropriado.
Earl,
um cachorrinho terrier (inspirado na mascote da gravadora RCA Victor, o icônico
cachorrinho sentado em frente a um gramofone), e Mooch, um gato de raça desconhecida,
moram com seus respectivos donos em um subúrbio de New Jersey, e convivem com
eles, e outros bichos, descobrindo seu pequeno mundo com a inocência de duas
crianças. McDonnell não fala de guerra ou violência na tira, e meio que
raramente faz críticas sociais. Ele prefere falar dos ciclos da natureza, e das
atividades básicas de qualquer ser vivente, isto é, comer, dormir, vadiar,
passear, brincar. Algumas situações apresentadas, com ou sem texto, são
bastante triviais para quem já está muito acostumado às tiras de quadrinhos em
geral, sem grandes sacadas filosóficas ou tiradas surpreendentes, mas tudo
compensado por um traço minimalista, sem grandes detalhes no desenho,
basicamente limitado ao essencial, muito pessoal. Como já dito, McDonnell certamente
foi bastante influenciado pelo Krazy Kat de
George Herriman, tanto no traço quanto no texto.
Well.
Earl, o cachorro (também conhecido no Brasil como Duque), mora com seu dono, o
solteirão de trinta e poucos anos Ozzie. Ambos são a maior companhia um do
outro, e Earl é do tipo que fica sentido quando Ozzie demora para voltar para
casa... e dá algum trabalho para ele quando Ozzie está. Curiosidade: foi
Charlie Schulz quem aconselhou McDonnell a dar ao cachorrinho o nome do próprio
cão de estimação de então. O Earl real viveu cerca de 18 anos com McDonnell e
faleceu em novembro de 2007.
Mooch
(também chamado de Chuchu), por sua vez, mora com uma família de velhos, o
casal Millie e Frank. Ainda vive na casa um peixinho de aquário, Sid.
Quando
Earl e Mooch se juntam, as diferenças entre eles se acentuam – mas nada daquele
conflito clássico entre cães e gatos que estamos acostumados a ver. Não, Earl
não costuma perseguir Mooch aos latidos. Mas isso não quer dizer que o
cachorrinho se irrite, às vezes, com o gatinho: enquanto Earl é mais
inteligente, sensato e ativo, Mooch é mais preguiçoso, cheio de ideias malucas
(e, não raro, furadas) e um tantinho vaidoso. Earl tem um pouco de dificuldade
em compreender as ideias e os atos excêntricos do amigo, e também em convencer
Mooch a se levantar de onde está deitado para brincar. Earl ainda adora passear
de carro, enquanto Mooch fica nervoso só de entrar no veículo. Ah: Mooch ainda
se destaca pelo modo peculiar de falar, com a língua meio presa, pronunciando
os “S” com som de “X” e os “Z” com som de “J” – mais ou menos um linguajar
infantil. Quer dizer, quando ele fala com Earl e os outros bichos – só os
humanos da série não entendem o que eles falam.
Em
suas andanças, Earl e Mooch praticamente aprendem sobre o mundo por tentativa e
erro. Não raro, vivem se acidentando. Seja em suas casas, seja tentando caçar
ratos; seja se perdendo embaixo de um lençol, seja no jardim; Seja interagindo
com um espelho ou com um bicho de pelúcia, seja com uma família de coelhos ou
uma de passarinhos; seja andando com outros cães ou gatos, seja tentando
conseguir um pedacinho de carne com o dono do açougue Snax, onde eles passam
horas até, não raro, serem chutados para fora; seja numa temporada na praia,
seja tentando pescar; seja se perdendo no depósito de lixo (depois de passar
horas remexendo em latas de lixo), seja tentando ajudar um amigo que se perdeu
de seu dono.
O
peixinho Sid, por sua vez, praticamente sofre dentro de seu microcosmo,
limitado a um minúsculo aquário, onde ele nada sozinho, sem muitas
oportunidades de interagir com outros personagens além de Mooch e do velho
Frank.
Outros
bichos que frequentemente aparecem na tira são o grandalhão e muito bravo cão
de guarda, que, mesmo limitado a uma corrente, cumpre seu papel; a família de
coelhos; os passarinhos; os gatos de rua com os quais Mooch costuma andar,
“cantando” nos muros à noite; um golfinho, um caranguejo (que passa boa parte
do tempo apertando o nariz de Mooch); e o desorientado gatinho que Earl e Mooch
chamam de Pudim Fedido (mas que na verdade se chama Jules, e mora com uma
família rica). Cada um com sua tirada, sua chance de brilhar na tira.
Algumas
vezes, Earl e Mooch tem dificuldade de compreender o pensamento dos outros
bichos com os quais interagem – cada um tem seu modo de pensar, que nem sempre
bate com o que um cão e um gato pensam. Uma coelha já teve 87 filhotes e ainda
acha pouco? Um caranguejo com um senso particular de tempo e de velocidade –
leva seis meses para reencontrar Mooch em sua casa, depois de conhece-lo na
praia, e ainda diz que veio “correndo”? Um rato que praticamente estimula o
consumismo humano porque o lixo que estes produzem se torna depois um tesouro?
Bem, o mundo só continua sendo um lugar encantador graças à diversidade de
modos de pensar de cada espécie...
Algumas
tiras da série também são organizadas em arcos de tirinhas. E isso está
presente no álbum da Pixel.
O ÁLBUM DA PIXEL
MUTTS
– CÃES, GATOS E OUTROS BICHOS, base para esta postagem, como já dito, foi
lançado em agosto de 2015, pela Pixel Media, no mesmo formato de outros álbum
especiais que a editora lançou, e continua lançando. 128 páginas (sem contar
capa), em papel couché, colorido. Sendo tira distribuída pela megacorporação
King Features Syndicate, recebeu o mesmo tratamento dos álbuns de Recruta Zero, Hagar o Horrível, Fantasma,
Mandrake, Popeye; e também os de outras distribuidoras, como os de Luluzinha, Garfield... Com texto
introdutório de Otacílio “Ota” d’Assunção, veterano editor e pesquisador.
MUTTS
é uma seleção de melhores tiras de todas as épocas, não sendo, logo, uma edição
nacional de alguma das compilações originais da série. E as tiras são separadas
por temas, vários deles já referenciados acima. Ainda reúne tiras dominicais e
ilustrações. Tudo saído da pena do Sr. McDonnell. Ah: eles optaram em manter os
nomes originais em inglês dos personagens – Duque e Chuchu foram adaptações do
álbum da Devir.
O
primeiro capítulo, Meu Ozzie, trata
do relacionamento entre Earl e Ozzie. Nenhum conflito forte, só o bom e velho
relacionamento entre o homem e seu cão – os momentos de maior tensão são mesmo
quando Ozzie leva Earl para passear.
Momentos de óxio (assim
mesmo, imitando o linguajar de Mooch) trata
das situações caseiras envolvendo Earl e Mooch: o cachorrinho tentando
convencer o gatinho a levantar da almofada e sair para brincar (mas o gato,
claro, é muito “compliqueiro”); Mooch passando por um momento de nervosismo, ou
perdido embaixo de um lençol; ou abusando dos favores de Earl.
Calor! nos
traz mais situações variadas depois da situação-título: como os bichos convivem
com o tempo quente; um conflito de ideias entre cães e gatos sobre como cada
espécie reage ao mundo; Mooch mostrando que não é muito competente na hora de
caçar um rato; o gatinho interagindo com um espelho; Earl abusando de seus
brinquedos de borracha, e da boa vontade de Ozzie na hora de pedir comida; e
aceitando alguns conselhos furados de Mooch para tirar o cheiro de um gambá.
Paxeando por aí traz
mais interações de Earl e Mooch com o mundo. Aqui, quem ganha maior espaço são
os passarinhos, tentando apresentar seu número de canto, uma lagarta meio
nervosinha em processo de metamorfose em borboleta, uma tartaruguinha se
intrometendo na estapafúrdia tentativa de Mooch pescar usando o rabo... e o
capítulo termina com alguns passeios de Earl e Mooch no açougue Snax, namorando
a carne na prateleira.
Um Peixe nos
traz algumas situações com Sid e seu mundinho limitado a seu aquário. Mesmo
quando ganha um companheirinho – um caracol nervosinho – ele não fica lá muito
feliz. O capítulo ainda traz algumas tiras com Earl e Mooch interagindo com o
cão de guarda – sua versão de verdade, e outra de pelúcia.
Perdidos na Noite nos
traz Earl e Mooch interagindo com outros gatos. Na verdade, começa quando Earl
tenta descobrir o que Mooch faz à noite, quando o cachorro está na sua casa – e
quase se mete em apuros.
Em Nexe mato tem coelho, Earl e Mooch
interage com a família de coelhos. Mais de 80 filhotes, para uma coelha, nunca
é demais...
Em Férias!, temos algumas situações de
nossos amigos na praia. Ozzie e Earl vão ao litoral junto com Frank, Millie e
Mooch. E o mundo dos dois bichinhos amplia-se – principalmente quando conhecem
uma ostra irritadiça, um pelicano, um caranguejo e um golfinho que se gaba de
sua inteligência. Ruim é voltar quando a gente já estava se acostumando...
Um estranho no ninho é
praticamente um arco de tiras solo dos passarinhos. Primeiro, vendo o filhote
nascendo; depois, tentando convencê-lo a voar para o sul. Com alguma
resistência por parte dos envolvidos...
Um novo amiguinho ou: a chegada do pudim
fedido no traz a primeira aparição do desorientado gatinho
perdido na vida de Earl e Mooch. Ele aparece sem que se saiba quem é (foram
Mooch e Earl que lhe deram o nome de Pudim Fedido), e a dupla tem de tentar
achar seu dono. Mas o pobre Pudim Fedido (que passa a maior parte do tempo
dizendo “eu não sei” ou “eu sei”) não parece muito bem da cabeça, porque,
apesar de ter aceito a acolhida na casa de Mooch, acaba se perdendo em uma
nevasca. E, para que o final feliz ocorra, o Papai Noel acaba entrando na
história (o arco foi feito para a época natalina). A revelação da verdadeira
identidade de Pudim Fedido segue um modelo consagrado de narrativa, mas ainda
funciona.
No lixo põe
Earl e Mooch em uma situação nada agradável: ao mexerem em latas de lixo,
acabam, sem querer, parando no depósito de lixo. E, ao encontrarem um rato que
vê no consumismo humano uma bênção para sua vida, eis uma rara oportunidade
para McConnell fazer uma crítica sobre a humanidade. O capítulo termina com um
breve arco em que o caranguejo – o mesmo da praia – resolve fazer uma visita a
Mooch devido a uma desilusão em seu casamento. Ele ainda vai ter uma chance de
se reconciliar com a amada – e quem sofre com essa complicação toda é o nariz
de Mooch.
Em A esfinge que tudo xabe, Mooch tem outra
ideia absurda: bancar um ser mitológico. É, a toalha na cabeça ajuda na
caracterização, mas falta ao gatinho talento para se passar por um ser que sabe
de tudo.
No fundo do poxo ou: a volta do fedido encerra
o volume. Earl e Mooch voltam a interagir com Jules “Pudim Fedido”, o gatinho
perdido, que caiu em um poço. E agora, como ajuda-lo?
Um
quadrinho bom para desestressar de tudo o que temos visto nas bancas de
revista. Para quem cansou de super-heróis e mangás. Temos sentido falta de boas
coletâneas de tiras de jornais – e, de preferência, acessíveis ao grande
público. Ainda mais depois que suspenderam o gibi do Recruta Zero...
O
álbum da Pixel custa R$ 24,90. É acessível ao grande público, sim, é só não ficar gastando com cachaça, cigarros e propinas.
PARA ENCERRAR...
Tendo
eu falado de uma série de tiras, eu acompanho a postagem com... tiras minhas.
Faz tempo que não publico tiras da minha menina, a Letícia, então, vai ela
desta vez, em um trecho de seu atual arco de tiras. Ainda me falta a
simplicidade característica do Sr. McDonnell. Por mais conselhos que tenho
recebido, não consigo me livrar da prolixidade textual – só consigo fazer as
minhas tiras assim, com excesso de texto. O que já apontaram-me como um
problema, em um país que ainda lê pouco.
Mesmo
assim, vejam as tiras mais recentes da personagem em http://leticiaquadrinhos.blogspot.com.br/. E
não esqueçam da página do Facebook: www.facebook.com/leticiatirinhas.
E
vamos esperando novidades. Para o mundo, para o Brasil, para este blog.
Até
mais!
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