sábado, 30 de abril de 2016

Livro: MEMÓRIAS SECRETAS DE D. CARLOTA JOAQUINA

Olá.
Hoje, vou tratar de livro. Vamos tratar um pouco de História neste blog, que faz algum tempo que não trato – assim, faço valer o “professor de História” de minha autodescrição no perfil deste blog.
Em tempos de intrigas políticas, o livro de hoje trata justamente de intrigas políticas... antigas. Do século XIX. Sobre uma personagem que ainda está na porta dos fundos da História do Brasil.
O livro escolhido hoje se chama MEMÓRIAS SECRETAS DE D. CARLOTA JOAQUINA. E foi escrito ainda no século XIX! Já chego lá...

O PERCURSO DE UMA CHANTAGEM
Para começar, MEMÓRIAS SECRETAS... é um dos livros mais raros do Brasil. Embora trate de uma época amplamente estudada por historiadores, foi pouco editada no Brasil.
MEMÓRIAS SECRETAS DE LA PRINCESA DEL BRASIL, ACTUAL REINA VIUDA DE PORTUGAL, LA SEÑORA DOÑA CARLOTA JOAQUINA DE BORBON, ESCRITAS POR SU ANTIGUO SECRETARIO JOSÉ PRESAS, nome completo da obra, foi publicado em Bordeaux, na França, em 1830. Seu autor, o catalão José Presas, era secretário particular da futura rainha Carlota Joaquina – sim, a que veio ao Brasil, junto com o marido, o príncipe-regente D. João, futuro rei D. João VI; a que mordeu sua orelha na noite de núpcias; a que passou quase toda a vida conspirando contra o marido; a que chamava o Brasil de “quinto dos infernos”; a que, quando foi embora, bateu a poeira dos sapatos na amurada do navio para não levar poeira do nosso país; a que foi retratada em um filme famoso. Presas escreveu o livro, como uma forma de vingança, por um acordo não cumprido junto à referida personagem. Não foi como um serviço à História, mas como uma defesa de interesses próprios – o serviço à História foi sem querer. E essa vingança foi inútil, ainda por cima. Já volto a esta parte.
A primeira edição é de 1830. Depois, houve uma edição publicada em Montevidéu, no Uruguai, em 1858. E permaneceu, depois, inédita até 1940, quando foi lançada uma edição brasileira, traduzida por Raymundo Magalhães Júnior, então membro da Academia Brasileira de Letras. Essa tradução foi reeditada pela Ediouro em 1966 – e esta edição é a que está sendo usada como base para a presente postagem. Esta edição já é rara e difícil de encontrar em sebos, bibliotecas ou mesmo livrarias. Eu tive sorte.
E, outra vez, desde então, a obra permaneceu esquecida no Brasil, até 2008, quando, por ocasião do bicentenário da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil, a editora Phoebus lançou uma nova edição, revista e ampliada, com um novo título (Memórias Secretas da Princesa do Brasil: As Quatro Coroas de Carlota Joaquina), um novo prefácio de Laura de Melo e Souza, apoiada pela Comissão para as Comemorações da chegada de D. João e da Família Real ao Rio de Janeiro, instituída pela prefeitura daquela cidade. A capa vocês podem ver adiante.
E, em 2010, foi lançada uma nova edição, pela editora do Senado Federal, de Brasília. A capa também pode ser vista adiante.

O AUTOR DA CHANTAGEM
José Presas é considerado um dos personagens mais pitorescos da História do Brasil pré-independente. Suas datas de nascimento e morte, bem como de boa parte de sua vida, permanecem um mistério. Para esclarecer melhor sua história, e as motivações para escrever as MEMÓRIAS SECRETAS, passo a palavra para o jornalista Laurentino Gomes, que dedicou alguns parágrafos a respeito de José Presas em seu livro 1808:
“(...) Um dos personagens mais pitorescos da época de D. João, Presas ficou conhecido como o autor de um caso explícito de chantagem literária. Sua origem era misteriosa. Teria nascido na região da Catalunha, na Espanha. Ainda menino, mudou-se para a Argentina, onde viveu aos cuidados de um tio e formou-se em Direito. Em 1806, quando a Inglaterra invadiu Buenos Aires, numa represália à aliança da Espanha com Napoleão, Presas imediatamente aderiu ao ‘partido inglês’, achando que a vitória britânica era inevitável. Calculou mal. Os ingleses foram derrotados e expulsos da região do Prata. Procurado como traidor, Presas fugiu para o Rio de Janeiro, onde se colocou aos serviços de Carlota Joaquina, como seu secretário particular, por indicação [de] (...) Sidney Smith [almirante, comandante da esquadra britânica no Rio de Janeiro e aliado de Carlota Joaquina], que o havia conhecido em Buenos Aires. Mais do que secretário, tornou-se homem de confiança, confidente, conspirador e, suspeita-se, talvez amante da Princesa.
Com a volta da família real para Portugal, Presas obteve um emprego na corte da Espanha, graças à influência de Carlota Joaquina. Caiu em desgraça ao escrever panfletos contra o absolutismo monárquico. Ameaçado de prisão, fugiu para a França, onde escreveu um livro chamado Memórias Secretas de D. Carlota Joaquina, repleto de intrigas, fofocas e insinuações. Era uma represália pelo não pagamento de uma pensão vitalícia que a rainha lhe teria prometido. Nele, Presas dá a entender que teria em mãos correspondência da própria Carlota Joaquina – que ele chama de ‘confissões’ –, na qual haveria informações comprometedoras sobre sua vida e seu comportamento. Dá a entender que poderia usá-las, caso não recebesse o dinheiro prometido. ‘Medite bem sobre as fatais consequências que lhe poderia ter acarretado, pondo em mãos do próprio príncipe (D. João) a confissão geral que, involuntariamente, e por esquecimento, me entregou’, escreve, dirigindo-se à Carlota Joaquina. No final, vai direto ao ponto: ‘Uma pequena resposta, acompanhada de uma letra de câmbio de modesta quantia, teria sido suficiente para que eu me calasse’.
Presas gastou papel, tinta e dinheiro em vão. Carlota Joaquina morreu no começo de 1830, quando o livro ainda estava sendo impresso em Bordeaux, na França. Não chegou a ler as confidências do seu ingrato e traiçoeiro secretário. Ainda que tivesse lido, dificilmente a chantagem produziria efeito. Na época em que Presas o escreveu, Carlota já era uma rainha viúva, vivendo no ostracismo em Portugal e mergulhada em dívidas.” (GOMES, Laurentino, in: 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p. 184 – 186).
Pois é. O livro, no fim, não serviu aos propósitos de seu autor. Mas, ainda assim, segundo o prefácio da edição de 2008, “(...) apesar (...) de ter sido escrito por um ressentido de mau caráter (...), foi lido e usado por quase todos os historiadores que se debruçaram sobre o período”, servindo em especial de fonte principal para a caracterização, usualmente pejorativa, da rainha Carlota Joaquina (fonte: verbete sobre José Presas na Wikipedia). Teria Carla Camurati, quando produziu o filme Carlota Joaquina – Princesa do Brasil (1995), usado o livro de Presas como fonte para o roteiro? Ah: se não estou enganado, José Presas é retratado no referido filme.
Interessante será também trazer ao leitor mais paciente mais algumas informações sobre José Presas. Então, passo a palavra a Raymundo Magalhães Júnior, em seu prefácio à edição de 1966 das MEMÓRIAS SECRETAS:
“Quem era esse singular personagem, que surgiu inesperadamente no Rio de Janeiro e se ligou, de tal forma, à história do período regencial no Brasil? São poucos os vestígios que deixou José Presas de si mesmo nos arquivos e bibliotecas. Os dicionários biográficos nada dizem sobre a sua existência, seu nascimento, sua origem, suas obras, sua morte. Omissão completa e inexplicável. Pouco conseguimos apurar sobre esse misterioso espanhol, hábil intrigante, arguto observador dos acontecimentos políticos, homem de muito engenho e habilidade, capaz de encher de sonhos vãos a cabeça da infanta D. Carlota, servi-la, enquanto possível, como secretário e homem de confiança e, em seguida, ainda obter, por sua real mercê, uma boa sinecura na Espanha, além da promessa de uma gorda pensão... O não pagamento dessa pensão foi a origem deste curioso livro, cheio de encarecimento dos serviços prestados e de ameaças de escândalo, caso não fosse o autor pago dos atrasados de dezessete anos de completo olvido...
Do pouco que se sabe a seu respeito, consta o seu lugar de origem, a Catalunha. Meninote, ainda, José Presas fora para Buenos Aires, onde se educou sob os cuidados de seu tio e protetor, D. Francisco Salvio Marull, que o internou, por sua conta, no Real Colégio de São Carlos. Terminado o curso de humanidades, Presas cursou a Universidade de Charcas, onde obteve o título de licenciado em leis. Estabeleceu-se, então, por conta própria, em Buenos Aires, com banca de advogado, fazendo-se chamar, de então por diante, Dr. Presas. Quando a Inglaterra, tomando represálias contra a atitude política da Espanha em face de Napoleão, fez invadir Buenos Aires, Presas se declarou pelo partido inglês, convencido de que a dominação britânica era um fato consumado. Ao verificar-se a reconquista de Buenos Aires, com Don Santiago Liniers à frente, Presas foi preso como traidor, conseguindo, no entanto, fugir para o Rio de Janeiro. Nas ‘Memórias Secretas (...)’ o ardiloso catalão omite, por completo, esses interessantes detalhes...
A maneira pela qual chegou ao Rio e se colocou ao serviço da princesa, ele próprio no-la relata nesse trabalho. J. M. Rubio, na sua obra ‘La Infanta Carlota Joaquina y la politica de España en America’, dá-nos algumas notas sobre as atividades de Presas: ‘Sua atuação como secretário de Dona Carlota mereceu sempre lisonjas por parte desta, que apreciava e reconhecia nele as qualidades necessárias para o desempenho de sua difícil missão. Merecia absoluta confiança da princesa. Pode-se dizer que foi ele quem conduziu sob os ombros o pesado encargo de todas as negociações afim de realizar os propósitos da infanta, mantendo ativa correspondência, com os partidários de sua senhora e com os vice-reis e demais autoridades coloniais. O marquês de Casa Irujo lhe imputa o fato de haver protegido no Rio de Janeiro os perseguidos pelo vice-rei de Buenos Aires. Isso, se realmente prejudicava os interesses da Espanha, favorecia os da princesa, porto que muitos destes perseguidos eram partidários seus. Por sua mediação, foram enviados importantes auxílios para Montevidéu, sendo, para isso, burladas as intrigas de Lord Strangford. Apesar das censuras dos historiadores argentinos à conduta de Presas, devemos reconhecer nele grande habilidade para a intriga e excelente perspicácia para observar as questões políticas. Esses dons representam o motivo que influiu para que o embaixador inglês obtivesse, em 1812, a separação de Presas da princesa, seguindo ele para a Espanha no desempenho de missão especial’.
Sua vida, anos mais tarde, na Espanha, teve lances de certa sensação. Resolveu o ex-secretário de Dona Carlota Joaquina fazer-se publicista, contribuir com a sua opinião para o esclarecimento das questões políticas e entrou logo a guerrear o absolutismo. Seu primeiro livro, impresso na casa Carlos Lawalle Sobrinho, em Bordeaux, circulou em 1817 e despertou grande celeuma, sendo proibido por decisão das autoridades policiais.
Aludindo a esse panfleto, cujo autor mereceria, no seu entender, pena de açoites, senão mesmo de fuzilamento, disse o alcaide de Madrid, D. Julian Cid y Miranda:
- Si Presas cai em meu poder, em menos de três dias eu o terei mandado à Plaza de la Cebada...
Era o lugar em que os inimigos da realeza pagavam pela sua audácia. Presas teve, porém, a prudência de fugir para a França...
Esse livro não era outro senão a ‘Pintura de los males que há causado a la España el gobierno absoluto de los ultimos reinados y de la necessidad del restabelecimiento de las antiguas cortes por estamentos, ó de uma Carta Constitucional dada por el rey Fernando’.
Além desse livro e destas “Memórias Secretas (...)’, escreveu Presas um ‘Juicio imparcial sobre las principales causas de la revolución em la America Española, y acerca de las poderosas razones que tiene la Metropoli para reconocer su absoluta independencia’, um ‘Proyecto sobre el nuevo método de convocar la santiguas cortes de España, conforme a las leyes fundamentales de la monarquia, y arreglado a las luces y circunstancias del dia’; um panfleto político, ‘Filosofia del trono y del altar, del império y del sacerdocio’, a que se seguiu outro: ‘El triunfo de la verdad’; e, por fim, uma ‘Cronología de los sucessos más memorables ocurridos en todo el âmbito de la monarquia española, desde el año 1759 hasta 1836’, este editado na Imprenta de M. Calero, em Madrid, em 1836, ao passo que todos os demais foram impressos em Bordeaux.
Imprimiu também, em 1815, antes de qualquer outro livro, uma ‘Representación que eleva al Rey Nuestro Señor D. Frenando VII’, por motivo ‘das perseguições que sofreu em Granada, onde foi contador provincial, por parte de vários empregados, por ser ligado à família reinante e, especialmente, à princesa do Brasil, de quem fora secretário’.
Em ‘El triunfo de la verdad’, publicou o ex-secretário de Dona Carlota as cartas de Fernando VII a Napoleão Bonaparte, escritas em Valençay e nas quais o fraco soberano espanhol, num deplorável excesso de bajulação e covardia felicitava o poderoso imperador dos franceses, usurpador de sua coroa e dos seus domínios, pelas brilhantes vitórias militares alcançadas... Esse livro se caracteriza, sobretudo, pela polêmica com o abade de San Juan de la Peña, defensor do absolutismo e de Fernando VII.

Qual o intuito de José Presas escrevendo as ‘Memórias Secretas (...)’?
Na verdade, o aventureiro catalão só teve em mira cobrar-se dos seus serviços como secretário particular e fomentador da intriga do Prata. Escreveu esta obra com o intuito premeditado de fazer revelações indiscretas e dar a entender à então rainha viúva de Portugal que poderia ir mais longe ainda, relatando por miúdos fatos a que faz alusões veladas e remotas. Em suma: tentava uma chantagem em grande estilo contra a antiga senhora e ama, cujas veleidades políticas animara, a fim de melhor fazer valer os seus serviços e justificar a permanência a seu lado.
Época pitoresca era essa, em que os reis e rainhas colocavam acima do seu poder pessoal o seu confessor, temerosos de uma omissão, punível pela justiça divina, a ponto de escreverem suas ‘confissões completas’ que, imprudentemente, deixavam ao alcance dos seus áulicos, capazes de comerciar com esses segredos, exigindo dinheiro em troca de silêncio!
A parte final do livro de Presas, a conclusão, o arremate dessa obra que seria um simples pano de amostra, uma indicação do muito que ele sabia e do quanto seria perigoso deixar a rainha de atende-lo, insinua com tanta arte e habilidade quanto era possível em tão escuso negócio a premeditada chantagem (...). Finório como era, se naquela época já estivessem em uso as cópias fotostáticas, Presas teria, sem dúvida, muito inocentemente, tirado ‘fac-simile’ das confissões de Dona Carlota, como por certo havia tirado cópia manuscritas dos trechos mais comprometedores...
Adiante, (...) alega Presas, para justificar o desprimor de sua atitude, que ‘devia LANÇAR MÃO DE QUALQUER RECURSO para que, pelo menos, se conheça a justiça que me assiste’...
Queixando-se da ingratidão da princesa, alegando sempre estar na posse de outros segredos, ainda mais importantes, Presas indicava o meio pelo qual Dona Carlota facilmente conjugaria o perigo de tais revelações, inconvenientes numa época em que seu filho dileto, D. Miguel, se encontrava como rei absoluto no trono de Portugal, usurpado a D. Maria da Gloria (...).
Presas não foi, todavia, afortunado nesse lance. Bem sabia ele que, na época, Dona Carlota estava endividadíssima, uma vez que empenhara quase todos os seus haveres nos manejos destinados a manter D. Miguel no trono – de que viria ele a ser arrancado pelo próprio irmão, o ex-imperador do Brasil, que passaria à História de Portugal sob o nome de D. Pedro IV. Em todo caso, ameaçada de um escândalo ainda maior, a rainha viúva devia fazer todos os esforços possíveis para responder com ‘uma letra de câmbio’, na medida dos desejos de Presas. O ex-secretário da infanta viu, porém, sair-lhe o triunfo às avessas. Precisamente na época em que imprimia o livro em Bordeaux – início de 1830, – a rainha viúva entregava a alma ao Criador, sem ter tido o dissabor de ler as desairosas referências de Presas a seu respeito.
Morria depois de ter-se confessado beatamente ao religioso beneditino Frei João de São Boaventura – (‘hay siempre um frayle!’ – teria dito Presas) – que a limpou de todas as culpas e ainda lhe fez um necrológio altamente encomiástico... Morria ainda em dívida para com o ex-secretário e deixava nomeado o filho querido. D. Miguel, seu herdeiro universal, incluindo entre os bens que ao então rei pertenceriam a Quinta do Ramalhão, de tão célebre memória...
Presas deve ter lastimado o tempo, o papel e os gastos da impressão, em vão sacrificados em obra tão improdutiva...

O aventureiro espanhol nem por um instante pensou em ‘servir à História’, como alardeavam quase todos os memorialistas de outrora. Teve em mira apenas a defesa dos seus interesses e o desafogo de sua bolsa de exilado político. Por certo, Maria Graham não pensou também que seu ‘Jornal de viagem ao Brasil’ as notas e os desenhos com que is enchendo o seu caderno de viajante curiosa e atilada, viriam a ter a importância que hoje teem, para levantamento do panorama da corte brasileira e da sociedade do Rio de Janeiro, dos usos e costumes da cidade no tempo de D. Pedro I. Essas notas, no entanto, tal como as de Presas sobre os acontecimentos de 1809 a 1812, formam hoje uma fonte cujo exame é indispensável aos que estudam a vida brasileira no princípio do século [XIX].” (JÚNIOR, R. Magalhães, in: Memórias Secretas de D. Carlota Joaquina. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966, p. 15 – 21)

A CHANTAGEM PROPRIAMENTE DITA
MEMÓRIAS SECRETAS DE D. CARLOTA JOAQUINA, a rigor, não é um livro interessante ao público em geral – em verdade, é bastante, digamos assim, burocrático. O foco de Presas é divulgar os passos dados por Carlota Joaquina, a partir de 1808, para se tornar rainha da Espanha ou dos domínios espanhóis na América, uma vez que seu irmão, o rei Fernando VII, fora obrigado por Napoleão Bonaparte a abdicar do trono espanhol e estava aprisionado pelos franceses. Essas tentativas não contavam com o apoio do então príncipe regente D. João, marido de Carlota Joaquina, que então andava separado da esposa. Logo, Carlota Joaquina começou a conspirar junto a vários atores políticos, como por exemplo o citado Sir Sidney Smith.
O livro é contado, em primeira pessoa, pelo próprio Presas, em 25 capítulos – tirando, assim, o sentido do título (se o “memórias” fosse seguido ao pé da letra, talvez Presas teria feito Carlota Joaquina narrar os próprios percalços em primeira pessoa – teria sido um recurso literário interessante...). Vai desde a chegada de Presas ao Rio de Janeiro, quando Sidney Smith apresentou-o a Carlota Joaquina, até o exílio do mesmo para a Europa, onde vive, segundo diz, em dificuldades econômicas devido ao não cumprimento do acordo de recebimento da tal pensão vitalícia.
Não esperem encontrar, quem for ler, alguma evidência da muito referida coleção de amantes que Carlota Joaquina teria (citada no filme e que hoje é contestada pelos historiadores). Há algumas insinuações, como por exemplo, a descrição de Presas de uma reunião da princesa com Sidney Smith em uma casa de campo no subúrbio do Rio de Janeiro – sem revelar, no entanto, a natureza do tal encontro – e o ato de Carlota Joaquina ter presenteado o almirante com uma espada cravejada de brilhantes. O relato de Presas não traz, na verdade, quase nada da vida pessoal de Carlota Joaquina na Europa, antes de vir ao Brasil – só depois, ou melhor, algumas pistas, visto que, após o retorno de Presas à Espanha, os dois nunca mais se viram pessoalmente, só se comunicaram, esporadicamente, através de cartas. Presas se fixa basicamente no momento em que trabalhava para Carlota Joaquina, até quando ele, já demitido, vai para a França. Praticamente História feita “nos gabinetes”.
Há um capítulo onde Presas descreve a índole do filho de Carlota Joaquina, D. Miguel, então menino. Futuramente, D. Miguel entraria em conflito com o irmão, D. Pedro – o que proclamou a independência do Brasil – ao usurpar o trono de Portugal. O nosso D. Pedro I, para resolver essa questão, abdica ao trono brasileiro, em 1831, e volta para Portugal, como os estudantes de História sabem. Essa descrição da índole do príncipe destina-se a dar uma ideia do D. Miguel que posteriormente se envolve nessa intriga palaciana.
Basicamente, é tudo intriga política. Por isso, em vários momentos, a leitura é maçante e pouco interessante. Presas escreve preferencialmente a membros do governo e da corte real da época, mais instruídos e acostumados a ver esse tipo de coisa, não a um leitor em geral, a quem, certamente, intrigas palacianas interessam menos que a necessidade de sobreviver a tempos difíceis e pré-tecnológicos (sim, falo do povo em geral da época, trabalhadores, camponeses, classes “médias”, mulheres, crianças, índios, negros libertos e escravos...), e cujo único interesse em política, a seu alcance, é esperar e ver o que o Poder Público fará pelos desvalidos, se fizer mesmo algo por eles. Pena que foi tarde demais para que os leitores a quem Presas interessava dessem uma olhada nas acusações do ex-secretário. São utilizadas muitas abreviaturas para se referir a Vossa Alteza (V.A.), Sua Alteza Real (S.A.R.), Sua Majestade Benigna (S.M.B.) e outros pronomes de tratamento.
E, claro, nem ao menos temos como saber a veracidade das afirmações e das transcrições das cartas de Presas. O livro, segundo alguns historiadores, deve ser analisado com prudente reserva. Ainda assim, os historiadores reconhecem – R. Magalhães Jr., inclusive – como um retrato não apenas da índole de Carlota Joaquina como da política, de um modo geral, do período joanino.
A edição de 1966, publicada em edição de bolso, tem 272 páginas. Ilustrado com algumas figuras e retratos de personalidades da época. Mas é cheia de erros ortográficos, alguns por conta das regras ortográficas da época, outros por conta de deslizes na revisão do texto. E inclui, ainda, alguns anexos: cartas pessoais inéditas de D. Carlota, extraídas do Arquivo Nacional, com a grafia da época (basicamente, só cartas pessoais dirigidas a D. João), outras de D. Carlota, em espanhol, dirigidas aos pais e familiares da Espanha; e um manifesto de D. Carlota candidatando-se ao trono da América Espanhola.
Pela mesma série da Ediouro – que ainda se chamava, na época, Edições de Ouro – saíram também alguns livros interessantes, como as autobiografias de Francisco Gomes da Silva, o Chalaça – o amigo e alcoviteiro do imperador D. Pedro I – e do Visconde de Mauá, o Empresário do Império.
É mais interessante aos historiadores – isto é, aos que conseguirem resistir ao efeito soporífero do texto. Boa sorte a quem se arriscar a aprender um pouco mais sobre o período joanino.

PARA ENCERRAR...
... não queria encerrar o mês sem deixar aos leitores mais algumas páginas da minha HQ folhetinesca, O Açougueiro. Já me distanciei do tema que sustentava esta história, do ponto de vista da pesquisa – os crimes da Rua do Arvoredo, ocorridos em Porto Alegre entre 1863 e 1864 – mas tenho de dar prosseguimento a ela, que já angaria alguns fãs... Não posso decepcionar meu público.
Em breve, mais páginas desta história, até onde puder produzir e publicar.

Até mais!

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