Hoje, domingo, cumpriu 15 dias desde o último capítulo publicado; portanto, hoje tem episódio inédito de nosso folhetim ilustrado, MACÁRIO. Talvez os leitores estejam se decepcionando pela falta de um clímax, mas estaremos resolvendo isso em breve... Por hora, vamos com o capítulo de hoje.
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de consumo de bebidas alcoólicas, de maus modos em lugares públicos e insinuações de linguajar chulo.
Bem, foi um sucesso. Minha experiência como
chopeiro foi um sucesso.
Mas como foi, em detalhes, vou contando aos
poucos.
Não precisei mais que uma hora para aprender
a lidar com aquela máquina. Aliás, não há muito segredo, é só puxar as
alavancas para baixo, do jeito certo, controlando o fluxo de líquido que sai da
torneira, e deixar a cerveja cair no caneco, levantar espuma. Mas é preciso aprender
a contrabalançar as quantidades adequadas de cerveja e de espuma, dando uma boa
aparência ao caneco cheio, de acordo com o gosto do freguês – por isso é
preciso controle no uso da torneira. Mas isso também é fácil de aprender.
Além da máquina, e do préstimo em instalá-la
no balcão, eles mesmos, os “monstros”, ou melhor, a gangue de excêntricos que
passou a frequentar o bar, nos presenteou com três dúzias de canecos de chope,
em vidro. Canecos grandes como a sede deles por cerveja. Em dois tamanhos,
grandes, quase do tamanho de uma leiteira, e médios, ligeiramente menores.
Ainda assim, feitos para saciar qualquer sede com uma única dose.
Os próprios “monstros” me orientaram, sob o
olhar do meu patrão, que pouco fez para interferir. Depois de um tempo, o
patrão foi cuidar de outros afazeres e me deixou ali, no balcão. Os oito
“monstros” ali presentes continuaram em seus papeis de “professores”, e ficaram
me olhando atentamente. Quase todos, na verdade.
Sentia a pressão, mas também uma segurança,
uma crescente autoconfiança – eles tinham plena confiança em mim, e me
incentivavam. Não podia decepcioná-los: a máquina de chope foi uma prova de
estima deles para com minha atividade – e talvez para com a dos outros dois
garçons, que ainda não haviam chegado ao serviço. A máquina de chope não deve
ter saído barata, evidentemente.
De alguma forma, eu sabia que o líder deles
era o tal Luce, o cara com cabelos vermelhos. Apesar de aparentar ser o mais
baixo, em altura, dos homens do grupo, sabia, de alguma forma, que ele tinha a
liderança.
Era ele, evidentemente, que me chamava mais
atenção. Não pelo fato de, a cada noite, ele comparecer ao bar com o cabelo
pintado de uma cor diferente, ou pela gola alta do casaco, que quase cobria a
sua cabeça, contrastando com o estilo dos outros membros, que usavam casacos
mais “convencionais”, em couro, alguns com golas felpudas.
Era pelo fato de ele estar estabelecendo uma
ligação mental comigo. Devia ser isso: uma ligação mental. Que outra explicação
para o fato de ele olhar para mim toda vez que eu cruzava meu olhar com ele,
estivesse onde estivesse?
Hoje, ele ficou andando pelo bar, enquanto eu
estava no treinamento, meio absorto em encher canecos de chope. Os outros
“monstros” me olhavam com atenção, mas Luce se afastou e foi dar uma olhada nos
arredores, como se não fizesse parte da “banca de juízes”, estivesse certo de
que eu me sairia perfeitamente bem – afinal, por impressão minha, foi ele quem
me recomendou aos ourtros. E, toda vez que eu erguia o olhar e olhava para onde
Luce estava, ele instantaneamente olhava para mim.
Podia estar olhando, distraído, para os
cartazes nas paredes, para o jukebox, para a porta. Alisando a cobertura
aveludada das mesas de sinuca, brincando com a bola branca, depois voltando a
circular pelas mesas. Até mesmo se dava ao trabalho de alinhar, o mais
perfeitamente possível, os guardanapos de papel repousados nos porta-guardanapos
das mesas. Ele podia estar de costas quando meu olhar o encontrava, mas, no
mesmo instante, ele olhava para mim, olho a olho.
Só umas duas ou três vezes ele voltou ao
balcão, para pegar seu caneco, que ele avaliava com cuidado. Depois, se afastava
de novo. Em uma das “voltas”, ele me questionou:
- Puxa, Macário, por que fica me vigiando
desse jeito?
- Eu não estou vigiando. É você que fica se
afastando do restante do pessoal... Eu só levanto o olho de vez em quando e...
- Ué, não posso conhecer melhor o bar
enquanto ele não enche de gente? Gosto de me familiarizar com os locais que
frequento.
E se afastou. Aí, ouvi uns comentários:
- Esse Luce, francamente.
- Sempre com a cabeça fora de lugar.
- Sempre fora de sintonia.
- Em vez de ficar mais junto com a gente...
Ele aparentemente não ligou para os
comentários. Nem eu: a distração constante do Luce não me dizia respeito. Do
mesmo modo, eles todos não deveriam ser tolerantes com a minha distração
constante.
Quem mais me orientou no treinamento como
chopeiro foi o grandalhão Flávio Urso. Com aquele jeitão de homem da montanha,
barbudo, cabelos mal penteados e o casacão surrado, ele devia ser mesmo um bom
bebedor de cerveja, sabia bastante a respeito de cerveja, devia ter conhecido
vários chopeiros, selecionado os seus favoritos, e queria que eu seguisse os
passos deles.
Mas, das vezes que o servi, nas duas noites
anteriores, ele preferia uísque com gelo. E engolia as pedras de gelo junto com
o uísque! Não estava enganado, eu vi, da última vez, quando eu servi-lhes o
uísque ontem, as pedras de gelo do uísque caindo em sua boca e desaparecendo em
sua garganta! Talvez ele preferisse o uísque por falta de chope; eu nunca o vi
bebendo das cervejas que comumente tínhamos em estoque (diferente de Beto Marley,
o sujeito dos dreadlocks, que pedia da nossa cerveja mais cara e a consumia no
gargalo da garrafa). Decerto eram muito ralas para ele; talvez gostasse de
cerveja de espuma mais cremosa. O uísque era “só para variar”, certamente.
Flávio Urso fazia questão de provar cada
caneco que eu enchia. Ele sempre pegava dos canecos maiores. Seguido, é claro,
pelos outros do grupo. Flávio Dragão (e seu “smile” esculpido no cabelo da
nuca), Beto Marley e o gorducho do hip-hop, MC Claus, também eram bons
bebedores, mas Flávio Urso era o que mais bebia, aquele viking. Flávio Dragão
era o que mais fazia questão em ostentar um “bigode” de espuma de cerveja,
enquanto o Urso limpava a barba com a manga do casaco. Não era de deixar a
barba suja. Cerca de meia hora mais tarde sua manga estava muito úmida, havia
até mudado de cor, de tanto limpar a cerveja que escorria.
O mais estranho: conforme ia bebendo, seu
sotaque ia mudando. Quando começamos, ele falava com um sotaque normal, como o
dos outros; mas, a cada caneca que ele mandava para dentro, seu linguajar se
alterava, e ele passou a falar com um sotaque que não sabia dizer se era
francês ou alemão, dado que ele passou a carregar nos “RR” e a pronunciar “não”
como se fosse “non” e assemelhados.
- Não se preocupe, ele é assim mesmo – me
esclarece Morgiana a moça dos cabelos negros e incrivelmente brilhantes, ao
lado dele. – Não estranhe. Quando ele bebe, ele meio que esquece o que aprendeu
do nosso idioma e começa a regredir ao linguajar do país dele.
- Que estranho... Digo, é difícil não
estranhar... De onde ele vem?
- Da Europa... Digo... oh, Flávio, de que
parte da Europa você vem?
- Eurrrôpa?! Eu... eu non lembrrarr. Faz
tanto tempo que sairrr do Eurrrôpa...
Dessa eu tive de rir, junto com Morgiana.
Melhor não estender a conversa, porque Flávio Urso, me olhando feio, exigiu:
- Mais uma, rrrapazz. Continuarrr a encherrr
canecas até eu dizerrr que estarrr bom!
Não era de bom alvitre contrariar um tipo
como ele...
Embora absorto com o treinamento, que, como
disse, dominei em uma hora, tanto o modo de encher corretamente os canecos
quanto a velocidade necessária para encher uma maior quantidade de canecos, sob
pressão, e só erguendo os olhos de vez em quando para encontrar os de Luce, me
vi envolvido em conversas: os “monstros” não paravam de puxar assunto. Se não
uns com os outros, falando bobagem, se xingando, se desculpando, se ironizando,
mantendo um papo “hipster”, eles puxavam assunto comigo. Luce participava pouco
do papo; dirigiam-lhe a palavra mais quando ele voltava ao balcão, mas ele sempre
respondia usando frases curtas e secas.
As que mais puxavam assunto comigo eram as
mulheres, Âmbar, Andrômeda e Morgiana. Quando a conversa resvalava para algum
assunto polêmico, elas pediam minha opinião, tipo: “o que você acha, Macário?”,
“Isso não pode estar certo, não é, Macário? O que nos diz?”, “Creio que o
Macário deve concordar com isso, não é?”, etc. Não posso recordar agora quais
eram os assuntos, mas eu dizia “Ah, claro”, “Sim, sim”, “Ah, não, aí não, isso
não está certo”, “É, acho que você tem razão”. Eram mais atualidades, mas isso
não interessava muito. O que me interessava era dominar logo aquela “arte” de
encher canecos de cerveja. E que a noite passasse logo: eu tinha de ir para
casa, tinha louça na pia me esperando. Na noite passada eu fui para o
apartamento de uma garota; e estava pensando se ia cumprir minha promessa de
voltar lá...
Passada essa hora, creio que fui aprovado.
Claro que fui. Os próprios “monstros” deram o aval, até o Luce, que havia
parado um instante de “borboletear”. Ao todo, foram cinco rodadas de cerveja
para cada consumidor – em média. Tenho certeza que para Flávio Urso foram sete
ou oito rodadas dos canecos grandes – e seu sotaque estrangeiro estava a ponto
de se tornar língua enrolada. Não, espere: foram os homens que tomaram cinco
rodadas, uns com os canecos grandes, uns com os médios; as mulheres foram mais
comedidas, cada uma só consumiu três canecas médias, e devagar, para não borrar
a maquiagem com cerveja. E, se não me engano, o Luce também só tomou três
canecas, das médias. Ainda assim, foi o suficiente para eu ter sido considerado
aprovado.
- Parabéns, Macário. Você aprende rápido. –
disse Luce, depois de sorver o último caneco que enchi.
- Obrigado. – respondo, encabulado.
- Está vendo só, Flávio? Fizemos uma boa
escolha! O Macário tem nossa plena confiança! E você duvidava, hein? Hein? –
disse, dirigindo-se a Flávio Urso.
- É, non poderrrmos negarrr. – respondeu o
grandalhão. – Macárrrio serrr dedicado, prrrestativo. Terrr meine rrrespeite
(sic).
- É um garçom de sonhos! – exclamou
Andrômeda.
- Dificilmente se encontra gente assim, com
tanta energia, disposição, vontade de agradar ao freguês! – elogiou Jorge
Miguel, o homem da barbicha, e tive certeza de que seus olhos ficaram vermelhos.
- Esse sabe o que a gente quer! – emendou
Morgiana, evidenciando os dentes afiados em seu sorriso.
Podia sentir minha cabeça inchando, mas
precisava manter a atitude modesta.
- Acho que já podemos chamar o resto do pessoal.
– disse Breevort, o cara da tatuagem no rosto, tão simpático apesar do jeito
agressivo.
- Acho que já podemos começar nossa festa! –
exclamou o gorducho MC Claus. – Agora que vem o teste pra valer!
- Como você está, Macário? Preparado? –
pergunta Flávio Dragão.
- Hã... um pouco tenso, mas acho que sim. –
Em realidade, eu estava muito tenso. Devia ser visível o suor na minha testa.
Não é possível que já tenha de emendar o treinamento ao trabalho, sem poder dar
uma descansada!
- Ah, pessoal, esperem – interferiu Âmbar. –
Deixem o Macário descansar, viram como ele se dedicou nessa máquina. Não chamem
o pessoal ainda. Esperem uma horinha antes. Ainda é cedo para o bar abrir de
fato... Olha, são sete horas, a recém... Tudo bem que hoje é sábado, mas...
Alguém foi compreensiva comigo.
- Hã... acho que você tem razão. – falou MC
Claus. – Então tá. Vamos deixar o Macário aliviar a cabeça um pouco.
Decerto, Âmbar tinha alguma influência sobre
o exaltado MC Claus. Não é à toa que os dois formavam um casal. Seriam casados?
Noivos? Namorados? Irmãos? Parentes? Algo me diz que não posso perguntar sobre
isso agora. O importante era que, no que Âmbar se manifestou, os outros já
sossegaram seus fachos. E não devia ser difícil para ela conseguir poder sobre
os homens, afinal ela usava aquele artifício natural de toda mulher, a beleza.
Como deixar de reparar que ela usava roupas que chamavam bastante a atenção, um
decotão pronunciado na blusa curta, o umbigo de fora, a saia curta de couro com
meia arrastão e sapatos de cano baixo? Bem, Andrômeda e Morgiana também tinham
seus atributos, seus decotes, mas usavam mais tecido que Âmbar – e,
evidentemente, esta era a que mais chamava a atenção. Andrômeda, em seu vestido
decotado e esvoaçante, mas longo até os tornozelos, e Morgiana, com uma
camiseta de mangas largas e a calça jeans colada, não chamavam mais atenção, à
primeira vista, que Âmbar, vestida para provocar. Como o MC Claus não se
importava com isso?!
- Nhah. Estraga-prazeres. – disse Flávio
Dragão, fingindo estar indignado.
- A gostosa fica aí sempre cortando nosso
barato. – disse Beto Marley.
- Essa aí gosta de mandar, e o Claus aí só
beijando seu sapato. – emendou Breevort.
- Que é que tem se gosto que a gata aqui me
diga o que fazer? – defende MC Claus. – Qualquer uma consegue o que quer se caprichar
no decote...
- Que é isso, Clauzinho... – responde Âmbar,
avermelhando.
Dava para notar que Andrômeda e Morgiana não
estavam muito contentes com a “rival”. Flávio Dragão implicou mais um pouco:
- E você ainda permite que a mina aí se vista
feito uma p...
- Ei, mais respeito! Quem escolhe as roupas é
ele aqui! – defendeu-se Âmbar.
- Pra quê, eu pergunto? – censura Morgiana.
- Não, mas, voltando àquele assunto, a Âmbar
tem razão. – disse Luce. – Temos de dar um tempo, nós já bebemos chope demais,
pegamos pesado na “entradeira”. Vamos dar um tempo, não vamos ficar bêbados
antes da hora, ou o nosso Macário aqui vai pensar que estamos nos aproveitando
da nossa benevolência, dos nossos préstimos, para ficar bebendo de graça.
- E não é o que merecemos, depois de termos
dado a máquina para o bar? – disse MC Claus.
- Não, só estou dizendo que não devíamos
abusar da cerveja antes de começar a festa, tampouco da boa vontade e da
disposição do nosso Macário, que precisa aliviar-se da tensão. – continuou
Luce. – Olha para o Flávio Urso, o nosso caro “avaliador”, por exemplo... chega
a estar até vermelho.
De fato, estava. E, inesperadamente, o
grandalhão soltou um arroto monstro, que balançou levemente o bar.
- Pardon... – desculpou-se Flávio Urso.
Os rapazes deram grandes risadas (até eu
acabei rindo, apesar da surpresa), as garotas não.
- Flávio! – exclama Andrômeda. – É sempre
assim!
- Que nojo! Por isso ele não pode beber
cerveja com frequência! – exclamou Morgiana.
- O que o Macário vai pensar, que somos
ogros, em ficar nos comportando assim?! – repreendeu Âmbar.
- Ei, “for” só um arroto. – disse Flávio
Urso, sem jeito. – Não “for” uma peido.
- Ainda bem né?! Se fosse peido, estragaria
nossa festa, o bar teria de ser evacuado... – continuou Andrômeda.
- Se você arrotar desse jeito durante a
festa, você vai ser esfolado vivo, estou avisando! – ameaçou Morgiana. – Vou
usar essa sua barba pra forrar a gola do casaco que vou fazer com sua pele!!!
- Ah, garotas, mas que drama, só por causa de
um arrotinho, que vocês também podem soltar de vez em quando... – Jorge Miguel
tentou conciliar.
- Arrotinho?! Arrotinho?! Desde quando ISSO é
arrotinho?! – interveio Âmbar.
- Vindo dele, é como uma carga de dinamite! –
disse Andrômeda.
- E vocês ainda defendem esse... porco! –
exclamou Morgiana. – Vocês já nos viram arrotar desse jeito, em público? Já?
- Eu já. A Âmbar aqui, quando resolve tomar
um copinho a mais de Coca Cola... – disse MC Claus. – Por pouco eu não perdia o
contrato com...
- Claus! Aqui não!! – interrompeu Âmbar. –
Não conte aqui!
- Vamos, fala pro Macário aqui que...
- Não, não fale!
E começou um bate-boca. Disso eu tive de rir.
Só o Luce não se envolveu na discussão, uns defendendo o Flávio Urso, outros
censurando-o, e a questão sobre arrotos femininos aflorando...
- Francamente... – comentou Luce comigo. –
Mulheres, fazendo alarde por qualquer coisinha.
- Eles são sempre assim? – perguntei.
- Eles, ou elas?
- Todos vocês, eles e elas. Vocês sempre
discutem assim?
- Ah... Nem sempre. Só quando o Flávio Urso
não consegue controlar os seus... gases.
Não consigo deixar de pensar que eles todos
já estavam bêbados, embora não aparentassem.
- Turma! Turma! – interveio Luce no meio da
discussão. – Chega, por favor, estamos todos fazendo um espetáculo patético na
frente do nosso garçom. A Âmbar está certa, querem que ele pense que somos...
monstros?
Claro que eu pensava, mas tentei bloquear
minha mente – vai que ele posso mesmo lê-la do mesmo modo como envia pedidos de
bebida por telepatia.
- Aham. Vai, defende, cara, defende a mandona
aqui, já que você anda a fim dela... – ameaçou Beto Marley.
- Que é isso, cara! Não é verdade! Eu, a fim
da moça do Claus aí?!
- Qualquer um estaria, com a mina vestida
assim... – interferiu Flávio Dragão.
- É, pode ir tirando o olho gordo, viu, seu
sanguessuga, se você pensar em passar a mão na Âmbar, eu vou... – ameaçou MC
Claus, o punho a centímetros do nariz de Luce.
- Porrr favorrr, non baixarrr a nível do
convêrsa! – pediu Flávio Urso, carregando o sotaque. – Eu já pedirrr desculpa,
“iafôl”? Non fazerrr mais. Vamos descansarrr, bebemos muito na teste. Vamos darrr
tempo. Non vamos agir feito... monsterrrs por causa disso.
- Perfeitamente. – falou Âmbar. – Vamos
demonstrar que somos pessoas civilizadas. Ao menos na frente do Macário aqui. O
que ele vai dizer de nós nas conversas com os amigos dele?
Todos sossegaram o facho. Eu até estava me
divertindo, mas já estava absurdo do jeito como estava.
- Certo, certo. – disse Luce. – Vamos manter
o nível. Esta é uma casa de respeito, é um bar, mas não um bar qualquer, ao
nível de um prostíbulo. Esperemos uma horinha e meia para ir chamando o
restante do pessoal. Enquanto isso... podemos ir batendo um papinho amistoso,
sem ataques pessoais. Passemos a palavra ao nosso querido Macário. Temos de
conhecer melhor o nosso garçom.
- Eu? – perguntei.
- Verdade. – falou Morgiana, o cabelo negro brilhando
sob a luz das lâmpadas agora acesas do bar, na rua já devia estar escuro. – A
gente mal conhece o nosso garçom. Já que somos praticamente fregueses aqui,
talvez seja melhor sermos mais... íntimos.
- Sim, sim. – concordou Andrômeda, lançando
um penetrante olhar sedutor para cima de mim. – Por que não descobrirmos mais a
respeito desse... bonitão?
Engoli em seco. Não é possível que aquelas
garotas estivessem a fim de mim. Eu ainda tinha o papelzinho que Âmbar me
passou ontem, com seu telefone. Mas não tinha condições de fazer frente ao MC
Claus. Decerto os dois eram namorados mesmo. Ou casados.
- Claro. – falou Âmbar. – Por exemplo:
Macário, de que cidade você vem? Você não parece ser daqui...
- Hum... – procurei manter a naturalidade. – vim
de uma cidade menor, sim. Não tão grande como esta, mas é uma malha urbana.
- É? E o que trouxe você aqui? Veio tentar a
sorte? Veio ser artista? – pergunta Andrômeda, com aquele olhar penetrante.
- Vim fazer faculdade. – respondo, com toda a
calma que consigo reunir.
- Faculdade! Que curso?
- Medicina.
- Aah... um futuro médico. Mas que pena. Em
vez de curar, está ajudando a matar mais gente... de bêbada. – Que piada ruim,
a do Flávio Dragão. Mesmo assim, houve risadas.
- Não tenho culpa. Foi o cargo mais... digno
que encontrei. – respondo, com um acento taciturno. – Para poder trabalhar à
noite.
- Você gosta de trabalhar à noite? – pergunta
Luce. – Quando o resto do mundo dorme, você gosta de andarilhar, digo,
trabalhar?
- Hum... Troquei o dia pela noite. Digo, é
como se eu frequentasse o curso de manhã, e à tarde fosse trabalhar. Só os
horários que estão invertidos. Eu estou cursando o horário noturno. Que sorte
que esta faculdade tem Medicina no horário noturno.
- E já atende pacientes?
- Ainda não. Mas devo, em breve.
- E não tem medo da parte das dissecções de
cadáveres?
- Não. Faz parte do curso. É macabro, mas eu
consigo suportar. Além do mais, os cadáveres usados já estão mortos, não seria
legal se a gente dissecasse pessoas vivas, extraísse órgãos vitais ainda
pulsantes... se é que me entendem.
Eles entenderam. Talvez a morbidez também
faça parte de suas existências – de outra forma, não teriam motivos para
fazerem alterações bizarras em seus próprios corpos. Ou teriam?
- Aah... Sabe, Macário? – pergunta Âmbar. –
Minha irmã mais nova está prestes a entrar para o curso de Medicina, também.
- Ah, você tem uma irmã...
- Qual, Âmbar? – se intromete Breevort. –
Aquela que é bru...
- Não, não! – interrompe Âmbar, tapando a
boca de Breevort com a mão, uma expressão envergonhada no rosto, quase
espetando seu rosto com aquelas unhas exageradamente compridas. – Ela não é
isso, não. Só porque ela está envolvida com o misticismo, não quer dizer que
ela seja bruxa, não mesmo!
- Ora, vamos, Âmbar – interrompe Luce – ela
já vendeu a alma ao demônio.
- Não, não vendeu! – falou Âmbar,
visivelmente brava. – Parem de insinuar coisas a nosso respeito! Ainda mais na
frente do Macário!
- Pô, que tanto vocês se importam com o
Macário! – responde Beto Marley. – Que que ele tem que nós não temos?
- É isso aí, respeitem a família! – intervém
MC Claus. – Querem assustar o garçom? O que a família da mina aqui faz não lhes
diz respeito!
- Obrigada, querido. O importante é que a
Malva vai entrar no curso de Medicina! Vai ser médica e vai superar as suas...
deficiências.
- Malva... devia se chamar Malévola. – falou
Luce, com um sorriso irônico.
- Luce, seu...!
Decerto mexer com a família era o ponto
nevrálgico de Âmbar. Ela só não apertava os dedos em punho por causa das unhas.
Mas, mais uma frase e ela poderia avançar em cima de Luce.
- Misticismo? – intervim. – Sua irmã é
esotérica?
- Não, é bruxa, mesmo. – disse Luce, querendo
provocar.
- É nada! Ela não sabe fazer magia negra, não
vendeu a alma ao demônio, e só recentemente ela conseguiu superar o medo de
sangue! Nada relacionado! Parem de insinuar coisas! O que querem que o Macário
pense?!
- Está bem, está bem. – disse Luce. – Não
falo mais nada.
- É, aliás, por que tanta intimidade para com
um humilde garçom como eu? – pergunto. – Por que você quer me contar a respeito
de sua irmã, Âmbar? Digo, um garçom, em princípio, não deveria se envolver com
assuntos alheios, ele só ouve histórias contadas por bêbados, mas não interfere
nas mesmas...
- Ah, Macário, qual é o problema? – pergunta
Morgiana. – Qual é o problema em sermos todos amigos, o garçom e os fregueses?
Decerto um dia poderemos precisar de sua ajuda, digo, se um de nos sofrer algum
ferimento...
- E eu – continua Âmbar – só estive falando
que minha irmã vai cursar medicina. O Luce que é um bobo.
- E a sua irmã que é bruxa.
- Ah, vai tomar no...!
Senti que deveríamos mudar de assunto.
- Bem... e quanto a vocês? – perguntei,
interrompendo a descompostura de Âmbar. – O que fazem da vida?
- Nós? – manifesta-se Luce. – Nós
aproveitamos a vida. Temos nossas fontes de renda que permitem uma intensa vida
noturna.
- Mesmo? Tipo, vocês são ricos e...
- Mais ou menos, meu querido. – continuou
Luce, com uma evasiva. – Mas talvez não seja bom falarmos disso agora. O que
importa saber a nosso respeito é que, assim como você, também somos
apreciadores da noite, das luzes coloridas. Somos insetos em volta da lâmpada.
- Verdade. – disse Morgiana. – Somos
privilegiados em fazer da noite nossa companheira. Da escuridão tiramos nossa
força, nossa energia. Buscamos formas de aproveitar a vida, a diversão antes do
apocalipse, que sabe-se lá quando chegará. E temos como pagar por isso.
Estavam sendo enigmáticos, mas eles estavam
deixando claro que eram ricos, eram parte de uma elite despreocupada. Entendo:
o dia revela as mazelas da sociedade, a noite as encobre. Mas quem sou eu para
fazer tais questionamentos?
Bem, o importante é que eu comecei a achar os
“monstros” figuras muito simpáticas. Eles eram educados o suficiente para pedir
desculpas por uma malcriação mínima, sabiam se censurar por seus atos, e as
aparências estranhas e agressivas eram apenas fachada. Julgar o livro pela capa
não era o canal. Vou ficar feliz em continuar enchendo seus copos. Afinal,
quantos membros de uma elite excêntrica se dão ao luxo de dialogar
amigavelmente com um humilde garçom de bar, a ponto de dividirem certas
intimidades, e pedirem as intimidades dele?
Bem, ainda tivemos muito a conversar, muitas
ideias para trocar. Mas não vou me estender muito; vou contando aos poucos
sobre o que conversamos, em recurso de flashback. Melhor que eu passe adiante.
Que eu vá direto para a hora em que decidiram convocar o restante da “turma”
para lotar o bar e experimentar a novidade – chope espumante, cremoso e gelado,
servido pelo garçom Macário.
E, em nenhum momento, estranhamente, o patrão
interferiu no diálogo. Não sei por quê. Talvez queria que eu me entendesse com
meus novos “amigos”, que estão garantindo um maior faturamento do bar.
Decerto, o pior já passou. Ou será que não?
Fregueses me “adotando” como “o” garçom de
suas festas, garotas vindo me procurar... havia algo estranho nisso tudo, mas
depois eu volto a pensar nisso...
O próximo episódio, até segundo aviso, será daqui a 15 dias.
Como está a experiência de leitura de vocês até o momento?
Por um lado, a falta de feedback, positivo ou negativo, é angustiante; por outro, permite que a gente possa fazer o que quiser. Não vamos nos responsabilizar se o autor e ilustrador resolver "apelar" nos próximos episódios...
Continuem com a gente.
Até mais!
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