Olá.
Hoje,
volto a falar de livro – mas, hoje, escolhi um que não é necessariamente do
interesse geral do público, apesar de fazer eco a fatos recentes.
O
livro de hoje trata de crimes ocorridos na primeira metade do século XX, mas
nem todos apreciarão – não pelo tema apresentado em si, mas por causa da
linguagem pouco acessível, visto que a obra é, originalmente, de outra época.
Se quiser prosseguir a leitura, eu explico.
Hoje
vou falar, então, de CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE.
O TRAJETO DE ALGUNS “TEXTINHOS”
JUDICIAIS
A
capa que vocês veem acima é da edição mais recente da publicação. CRIMES QUE
COMOVERAM O RIO GRANDE foi lançado originalmente em 1962; a sua segunda edição
é de 2003, lançada pelo Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul e
Editora Nova Prova. A reedição da obra tratava-se de uma iniciativa do Memorial
do Ministério Público do Rio Grande do Sul, dentro do projeto editorial Memória Política e Jurídica do Rio Grande do
Sul, que visava resgatar e disponibilizar ao público documentos judiciais
históricos, dentro do projeto geral de resgate da memória jurídica do Estado,
incluso a do próprio MP-RS, cujo prédio, sediado na Praça da Matriz de Porto
Alegre, passara por uma reforma no ano anterior. O Memorial já havia lançado,
anteriormente, para a série Memória
Política e Jurídica, o livro Os
Crimes da Ditadura, resgatando documentos a respeito do período inicial da
República no Rio Grande do Sul, com foco no complicado período do governo de
Júlio de Castilhos. CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE é o volume 2 da série. E
havia mais volumes em planejamento, mas agora não sei informar se realmente
saíram.
A
edição original de CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE, de 1962, fora organizada
por iniciativa do Corregedor do MP da época, Ladislau Fernando Röhnelt,
responsável pela compilação de quatro célebres peças acusatórias que
mobilizaram a opinião pública do Rio Grande do Sul entre as décadas de 1930 e
1950.
A
nova edição de CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE foi reorganizada pelos
historiadores Álvaro Walmrath Bischoff e Gunter Axt e pelo então coordenador do
Memorial do MP-RS, Ricardo Vaz Seelig. A edição de 2003, que tem 324 páginas
sem contar capa, se diferencia da de 1962 por ser complementada com textos
introdutórios novos, de Seelig e Bischoff, trazendo o contexto histórico da
época dos acontecimentos, bem como um resumo dos acontecimentos, e um caderno
iconográfico com fotos de notícias de jornais referentes aos quatro crimes
relatados. Os textos introdutórios originais da edição de 1962, de Floriano
Maya D’Ávila (promotor em um dos casos arrolados) e Ladislau Fernando Röhnelt, também
foram mantidos.
Bem.
CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE, desde a primeira edição, resgatou “dos
empoeirados escaninhos judiciais quatro importantes atuações de Promotores de
Justiça em processos criminais que sacudiram a opinião pública” do Rio Grande
do Sul (palavras extraídas do texto de 4ª capa) entre os anos de 1931 e 1944, durante
o controverso período do governo de Getúlio Vargas (1931 – 1945), que, de “revolucionário”,
após a vitória na Revolução de 1930, acabou se tornando uma ditadura com a
implantação do Estado Novo (quem não fugiu das aulas de História no colégio
sabe a que estou me referindo). Os quatro processos judiciais referem-se a
crimes máximos, os homicídios, envolvendo cidadãos comuns (por isso, não
influíram diretamente na história política e social dos anos 1930 e 1940), mas
com diferentes relações com o poder, e diferentes motivações para tirar a vida
de outrem. Alguns casos demandaram vários júris, mas em nenhum dos casos, houve
condenação definitiva dos réus. Os processos levaram anos, em alguns casos, mas
os réus conseguiram se livrar do “castigo” em vida. E os promotores envolvidos
nesses casos, apesar de terem de carregar derrotas em seus currículos, tiveram
importante atuação no Ministério Público gaúcho e também na política do Estado.
Os
chamados casos Gaffrée, Creso, Carus e Papst possuem características distintas,
inclusive na forma como os réus se relacionaram com a lei. Os processos
expuseram casos de relações de caudilhismo/coronelismo, abuso de poder e até
mesmo do patriarcalismo nas relações familiares. Tiveram ampla cobertura da
imprensa, com toques de sensacionalismo, dividindo os espaços dos jornais com
as notícias da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e, por isso, chamaram
bastante atenção da sociedade de sua época.
SOBRE AS DIFICULDADES DE UM PESQUISADOR
Bem,
até aqui vocês conseguiram entender? Não? Mas também, o livro segue nessa base:
como os textos judiciais, com foco maior nos discursos das promotorias, foram
transcritos no original, com o formalismo dos tribunais e o linguajar difícil
utilizado por juízes, promotores, advogados e agentes dos fóruns do século XX,
o texto é difícil e enfadonho para quem não tem vivência com as instituições do
judiciário. E, muitas vezes, o jargão técnico do Judiciário já foi utilizado
como forma de exclusão social – com a utilização de muitos termos latinos
(“data venia”, “ipsis litteris” etc.), ou palavras que não fazem parte do
dia-a-dia da maioria das pessoas, muitas vezes juízes e advogados utilizaram a
linguagem dos tribunais para manipular a legislação contra as camadas menos
instruídas da sociedade – às vezes, o favorecimento de membros da elite em
questões contra membros do povo. Isso vocês devem ter entendido...
Bem,
embora trate de crimes, o que é um assunto que sempre desperta atenção – tanta
gente gosta de ler a respeito de crimes ocorridos na História, ou mesmo as páginas
policiais dos jornais, ou gosta mesmo de assistir ao noticiário sensacionalista
da TV – CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE não é um livro 100% acessível. É mais
para quem é profissional do Direito ou estuda Direito, ao oferecer um panorama
da vivência nos tribunais da primeira metade do século XX. E também interessa
mais aos que estudam História, esses sim profissionais que precisam ler muito e,
portanto, já estão mais acostumados a lidar com termos difíceis; o livro
refere-se a épocas em que as leis gerais, incluso as Constituições, a forma de
se portar na sociedade e as relações gerais de poder eram outras – por exemplo,
as mobilizações da sociedade civil para cobrança de direitos junto aos órgãos
do Governo eram dificultadas pela censura e pela repressão policial, e pela
inexistência da internet para agendar grandes passeatas, para conseguir adesão
a greves e protestos, era na base da panfletagem com papel e no boca-a-boca,
com baixíssima possibilidade de anonimato. Quanto ao trabalho do Poder Judiciário,
imaginem só: nem existiam computadores para, por exemplo, facilitar o trabalho
de acondicionar processos judiciais nos arquivos; as transcrições das falas nos
tribunais dependia do trabalho dos taquígrafos, profissionais encarregados de,
através de códigos especiais de escrita, passar para o papel tudo o que ouviam,
e na velocidade da fala; e era tudo 100% em papel, datilografado nas máquinas
de escrever, ou escrito à mão – para consultar o que diz a lei, era necessário
pesquisar em toneladas de páginas de legislação, e sem a facilidade de um
Google para conseguir a dita lei por simples palavra-chave. Quem lida com
documentos sabe como é lidar com montanhas de papel, e, muitas vezes, bancando
o farmacêutico – sendo obrigado a decifrar a caligrafia, em muitos casos ruim,
como se escrevessem em código, dos encarregados em transpor as palavras para o
documento físico.
OS CRIMES QUE CHOCARAM O ESTADO
Bão.
Os tais processos judiciais, da forma como conseguimos entender.
O
livro abre com o longo caso Gaffrée, ou “crime do alto da Santa Casa”, ocorrido
na cidade de Bagé, entre 1944 e 1952. Longo mesmo: o texto referente ocupa
quase dois quartos do livro. Em 10 de novembro de 1944, o chefe do serviço de
radiologia da Santa Casa de Bagé, Walter Aguiar, foi assassinado a facadas, na
frente do hospital, pelo sicário uruguaio Salustiano Miéres. Após uma caçada
humana, que se estendeu por toda a linha de fronteira com o Uruguai, Miéres foi
capturado no dia 23 do mesmo mês. E o escândalo começou quando Miéres confessou
ter assassinado o dr. Aguiar a mando de um colega e desafeto do médico, o dr.
Cândido Gaffrée. O motivo para o assassinato teria sido um desentendimento
durante o trabalho: o dr. Aguiar teria, em uma discussão, desferido uma
bofetada no rosto do dr. Gaffrée. Dá para imaginar que, em uma época em que
médicos eram, e deviam ser, profissionais de respeito, a imagem do dr. Gaffrée
foi seriamente manchada. O caso esquentou com o assassinato de Pery Ungaretti,
principal testemunha de acusação contra do Dr. Gaffrée, por um amigo do
acusado. O dr. Gaffrée e Miéres enfrentaram o primeiro processo judicial em
1946, tendo por promotor Floriano Maya D’Ávila, posteriormente Procurador Geral
do RS entre 1959 e 1962. No primeiro julgamento, Miéres foi condenado a 18 anos
de prisão, e o dr. Gaffrée a 15 anos, mas a defesa conseguiu a anulação do
julgamento, invocando uma tecnicalidade judiciária – apenas um juiz apreciou o
caso, e os acusados teriam direito à apreciação por, no mínimo, dois. Miéres
acabou falecendo na prisão, em 1948, enquanto aguardava o recurso. Enquanto
isso, o dr. Gaffrée enfrentou mais dois júris. No de 1950, conseguiu
absolvição, mas, devido a falhas detectadas pela Defesa, o dr. Gaffrée
enfrentou mais um júri, em 1952 – e conseguiu ser absolvido. De todo modo, o
caso Gaffrée chamou bastante a atenção, tanto pela condição social dos
envolvidos, quanto pela presença de relações de caudilhismo/coronelismo,
simbolizadas pela relação entre Gaffrée e Miéres.
O
segundo caso, ocorrido em Passo Fundo, foi o mais sangrento – o caso Creso (não
é trava-língua). Na noite de 20 de julho de 1937, o soldado reformado Valpírio
Dutra da Cruz foi emboscado, ferido a tiros e, agonizante, ainda foi degolado
de orelha a orelha, e seu corpo foi jogado nos trilhos da viação férrea. Uma
minuciosa reconstituição de seus últimos passos, incluindo casos amorosos e
inimizades, feita pelo MP local, concluiu que Valpírio foi vítima de um complô
armado por antigos colegas de farda. O mandante da degola teria sido o
tenente-coronel Creso de Barros Monteiro, que a ordenou ao seu mais fiel
ordenança, Antunes Pereira da Costa – e o motivo envolvia mulher. O caso ainda
envolveu abuso de poder: o tenente-coronel Creso era interventor em Passo
Fundo, nomeado por Getúlio Vargas, e ainda era parente do Ministro da Guerra da
época, Góes Monteiro. Logo, era uma figura poderosa: Creso utilizou dos
recursos de sua posição para inibir as investigações contra si – até ordenou a
prisão dos dois advogados de acusação. O promotor do caso foi Henrique Fonseca
de Araújo, deputado estadual pelo Partido Libertador nos períodos 1947-51 e
1955-59, Procurador Geral do RS entre 1955 e 1958 e Procurador Geral da
República entre 1975 e 1979. O caso ganhou notoriedade porque, na acusação, foi
nomeada Sofia Galanternick, a primeira mulher promotora do RS, que, inclusive,
teve de enfrentar Góes Monteiro no tribunal. Mas os réus conseguiram ser
absolvidos, e o recurso posterior não obteve êxito. É o poder...
O
terceiro caso teve menos requinte de crueldade – a morte foi lenta e “em
parcelas”, e motivada por uma prosaica intriga familiar. O caso Carus ocorreu
em Alegrete, e começou em 1949. Por volta de julho daquele ano, o fazendeiro
Otacílio Carus faleceu; mas, algumas semanas depois, seu irmão, desconfiado,
conseguiu que fosse feita uma necropsia no corpo. O laudo apontou uma grande
quantidade de arsênico nos intestinos do fazendeiro – logo, as fortes dores no
estômago e os acessos de vômito que o fazendeiro vinha tendo, há seis meses,
não eram sintomas de uma simples azia. O laudo foi fortemente alardeado na
imprensa, e as suspeitas do crime recaíram sobre a esposa de Otacílio Carus,
Alice – ela teria ministrado pequenas doses arsênico à erva do chimarrão
consumido pelo marido, diariamente. Alice já não se dava bem com o marido, e as
brigas chegavam a ser escandalosas, mas o motivo imediato para premeditar o
homicídio foi a oposição de Otacílio ao casamento de uma das filhas. E o caso
ainda foi marcado pelo machismo da época: Alice foi desconstituída, pela acusação,
da imagem de esposa dedicada e de mulher ideal – mãe, esposa, filha – conforme
a concepção da época, o que causou espanto. Atuou no caso o promotor Paulo
Moraes Dutra, escritor e nomeado prefeito de Guaporé em 1945. Alice Carus foi
submetida a júri em julho de 1950, e absolvida por uma diferença pequena de
votos. O texto da promotoria teve até citações poéticas.
Por
fim, o último caso do livro é o Caso Papst, ou “crime do Caminho Novo”, ocorrido
em Porto Alegre, em 1931, época em que os latrocínios (roubos seguidos de
morte) eram muito raros. Por conta disso, houve uma verdadeira comoção na
cidade quando ocorreu um assalto seguido de morte: em 22 de janeiro de 1931,
ocorreu um assalto na esquina das ruas Garibaldi e Voluntários da Pátria. Um
malote do trem pagador, com uma fortuna em dinheiro e cheques, foi roubado por
dois homens. Na ação, um dos guardas, José Sant’Ana, foi morto com um tiro.
Seguiu-se uma caçada humana, que chegou inclusive a expor as deficiências
presentes no aparato policial da época, até que os dois acusados, João Papst
Filho e Rudolfo Kindermann, foram presos em Curitiba, por um assalto semelhante
ocorrido lá. Papst e Kindermann foram ligados ao assalto de Porto Alegre por
conta do depoimento da amante de um deles. Os pais de João Papst, todos
imigrantes austríacos, foram submetidos a júri sob acusação de serem cúmplices
do crime. O advogado de defesa da família Papst foi o futuro jornalista e
escritor Vianna Moog (e foi sua estreia na vida pública). Porto Alegre parou
para assistir ao júri dos Papst, em 15 de outubro de 1931, que terminou com a
absolvição de Juliana Papst e a curta condenação de João Papst Sênior, que
posteriormente teve a sentença anulada. Mas João Papst Filho e Rudolf
Kindermann, ainda no Paraná, acabaram pegando penas de 17 e 23 anos de cadeia,
respectivamente, pelo assalto em Curitiba. Cinco anos depois, ainda presos,
vieram para Porto Alegre para julgamento. Kindermann faleceu na Casa de
Correção de Porto Alegre, antes do julgamento; Papst Filho enfrentou júri em
março de 1938, tendo por promotor do caso foi Luiz Lopes Palmeiro, fundador da
Associação do Ministério Público, e seu primeiro vice-presidente. O advogado de
defesa de Papst Filho foi Victor Graeff, posteriormente deputado estadual; mas
essa relação entre réu e advogado foi marcada por conflito, e o próprio Papst
Filho, em princípio, recusou um novo advogado e fez sua própria defesa, mas, no
fim, teve de aceitar a defesa de Graeff. Papst Filho conseguiu ser absolvido
por uma pequena margem de votos.
Relações
sociais, de poder (incluindo a capacidade de manipular a lei a seu favor),
relações trabalhistas (incluso o que podemos classificar como coronelismo),
deficiência dos aparatos policiais e judiciários, patriarcalismo e machismo
entranhados nas relações familiares. Eis os pontos presentes nos julgamentos,
que revelam aspectos da sociedade dos tempos do período Vargas. Quem conseguir
driblar o jargão técnico dos tribunais, vai conseguir aproveitar muita coisa.
Se os casos tivessem sido adaptados como se fosse um romance, ou em linguagem
jornalística, mais a ver com o dia-a-dia do leitor, talvez atraísse mais
público; mas, como se tratam de originais de textos judiciais, transcritos dos
publicados em revistas judiciárias (os originais dos processos estão perdidos),
a leitura acaba sendo um pequeno desafio a quem não tem vivência com o Poder
Judiciário, em quaisquer instâncias – ou mesmo para quem, na difícil situação
do Brasil de hoje, descrê no Sistema Judiciário. Bem, é o que posso dizer no
momento.
Após
o relançamento do livro, esteve em planejamento, pelo Memorial do MP, o
lançamento de um segundo volume de CRIMES QUE COMOVERAM O RIO GRANDE, com o
resgate de outros casos históricos, como o Kliemann, o Olímpia Menna Zen, o
Daudt, o Alex Thomas, etc. Mas, pelo que pude verificar em pesquisa preliminar,
esse segundo volume não chegou a sair.
CRIMES
QUE COMOVERAM O RIO GRANDE é mais fácil de ser encontrado em bibliotecas,
principalmente as universitárias. Também não deve ser difícil encontrá-lo em
sebos.
Temos
de incentivar mais a educação brasileira, para que a recomendação de livros
como este não tenha sido “para bonito”.
PARA ENCERRAR...
...já
que falamos no passado do Rio Grande do Sul, aqui vão mais páginas de minha HQ
em folhetim, O Açougueiro. Uma
compensação depois de nos aventurarmos no difícil terreno do judiciário.
Aguardem
novidades: a vida continua depois da política.
Até
mais!
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