segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Livro: TRAGÉDIA DA RUA DA PRAIA

Olá.
Hoje, vou falar de livro, mais uma vez. Já que faz tempo que não falo de livro. E de livro que evoca crimes, mas de uma outra época. Mais precisamente, o início do século XX, quando tendências políticas e sociais eram mais definidas.
Hoje, voltamos a revisitar o passado da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
Hoje, vamos falar de TRAGÉDIA DA RUA DA PRAIA.


TRAGÉDIA DA RUA DA PRAIA – UMA HISTÓRIA DE SANGUE, JORNAL E CINEMA foi lançado em 2005, pela editora Libretos, de Porto Alegre. Foi escrito por Rafael Guimaraens. E trata, na forma de romance, de um episódio real ocorrido em Porto Alegre, em 1911.
Bem: antes falemos do escritor, que com certeza meus 17 leitores ainda não haviam ouvido falar até agora...
Carlos Rafael Guimaraens Filho nasceu em Porto Alegre, em 1956. Jornalista, escritor e roteirista. Participou da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (Coojornal), foi editor de política do jornal Diário do Sul e atuou nas áreas de comunicação social da Prefeitura de Porto Alegre, do Governo do RS e da Assembleia Legislativa. Também realizou o projeto editorial da revista Aplauso, da Editora Plural (1998), e colabora com a Enciclopédia de Teatro do Instituto Itaú Cultural. É autor dos livros: O Livrão e o Jornalzinho (infantil, 1997, Tchê Editores, e 2010, editora Libretos), Porto Alegre Agosto 61 (2001, Libretos), Trem de Volta – Teatro de Equipe (2003, Libretos, coautoria com Mário de Almeida), Teatro de Arena – Palco de Resistência (2007, Libretos, vencedor do Prêmio Açorianos, categoria especial, e eleito Livro do Ano), Abaixo a Repressão! Movimento Estudantil e as Liberdades Democráticas (2008, Libretos, com Ivanir José Bartot), A Enchente de 41 (2009), Rua da Praia – Um Passeio no Tempo (2010, Libretos), Unidos pela Liberdade! (2011, Libretos), Coojornal – um Jornal de Jornalistas sob o Regime Militar (2011, Libretos, com Elmar Bones e Ayrton Centeno, Prêmio Açorianos de Literatura, Categoria Especial) e Mercado Público – Palácio do Povo (2012, Libretos, com Edgar Vasques, Marco Nedeff e Ricardo Stricher). Além de TRAGÉDIA DA RUA DA PRAIA, é claro, de A Dama da Lagoa (2013) e Águas do Guaíba (2015, com Edgar Vasques e Marco Nedeff). Ele ainda editou as obras Legalidade 25 Anos (1986) e Dispersos, de Eduardo Guimaraens (2002, prêmio Açorianos categoria Poesia Especial). E participa ainda da antologia de textos Os Filhos Deste Solo (2015). É o básico a saber, a partir da biografia constante nas páginas finais do livro, e do website da Editora Libretos.
TRAGÉDIA DA RUA DA PRAIA é um livro premiado: recebeu o Prêmio O Sul, Nacional e os Livros, em 2005, categoria Melhor Romance do Ano. Ao longo da postagem, vocês podem ver as capas da primeira edição, de 2005, e da segunda edição, de 2011. Ah: e, em 2011 ainda, o romance ganha uma versão para quadrinhos! Com roteiro do próprio Rafael Guimaraens e desenhos do conceituado quadrinhista Edgar Vasques. Desse eu falo mais tarde.
Bueno. A ideia de Guimaraens para escrever o livro veio de dez anos antes da publicação: em outra pesquisa, ele havia deparado com um exemplar do jornal Folha da Tarde, de 1961, que trazia a seguinte notícia: Há 50 anos, russos tumultuavam a cidade. Guimaraens então reservou a história para uma reportagem, e procedeu as pesquisas a respeito do tema em questão, que desenvolveu na forma de romance; já a versão em quadrinhos da narrativa acabou vindo naturalmente, dada a riqueza do caso como enredo para uma história de ação.
Em 304 páginas (sem contar capa), com uma narrativa dinâmica e altamente fácil de compreender, em tom de romance policial, fragmentada em diversos episódios paralelos e com muitos personagens e situações, e fartamente ilustrado com fotos e fac-símiles de jornais da época, TRAGÉDIA DA RUA DA PRAIA reconstitui, em um exercício de micro-história exemplar, um verdadeiro panorama da cidade de Porto Alegre em setembro de 1911, quando se deu um assalto que causou comoção na outrora pacata capital. Não apenas reconstitui um ousado caso de latrocínio (roubo seguido de morte) ocorrido ali, numa época em que esse tipo de crime era raro na cidade; também reconstitui diversos aspectos da sociedade portoalegrense da época da República Velha, como a política, o funcionamento da polícia, do jornalismo, dos lazeres e da imigração estrangeira – Porto Alegre recebia muitos migrantes europeus, contando, inclusive, com uma expressiva comunidade judaica.
Em apenas três dias de setembro de 1911, mais precisamente os dias 5 a 7 de setembro, e alguns dias depois, a vida dos cidadãos de Porto Alegre muda radicalmente. Não apenas por causa do caso de latrocínio em si, mas também por causa de uma verdadeira batalha que foi promovida na imprensa. E porque, também, sobrou para muitos inocentes – ocorreu perseguição à comunidade judaica local. E também porque o caso rendeu um filme. Quando a arte cinematográfica ainda era uma novidade na cidade, alguém teve a ideia de transformar o episódio em um filme de curta metragem – e a estreia foi dez dias após o desfecho do caso!
Bão. Vejamos.
Tudo começou na manhã de 5 de setembro de 1911, em uma casa de câmbio da Rua da Praia, uma das principais avenidas da capital gaúcha. O atendente, Alcides Brum, recém havia aberto o local, quando quatro homens, estrangeiros e armados com pistolas, apareceram para assaltar o local. Há um tumulto, e Alcides, ao tentar reagir à tentativa de assalto, acaba baleado. Os quatro assaltantes fogem, e promovem mais tumulto em sua fuga enlouquecida pelo centro da cidade. Os quatro, primeiro, apreendem uma carroça. Na Rua Voluntários da Praia, a carroça acaba batendo em outra, matando o cavalo; os assaltantes capturam, então, um bonde elétrico, mandam seus passageiros desembarcarem (exceto três senhoras) e forçam o motorneiro a dirigir até certa altura, quando, aproveitando um momento de distração, o motorneiro desliga o bonde. Às senhoras, nada acontece. Em seguida, os quatro estrangeiros, mais tarde identificados como russos, raptam a carroça conduzida por um jovem leiteiro, Antônio Bottaro; e o forçam a conduzi-la até a chácara onde vive, na periferia. Depois, os ladrões se refugiam no matagal dos arredores do Rio Gravataí. E o jovem Bottaro, apesar de ter até recebido dinheiro dos assaltantes, fica traumatizado.
Tal ação é tão rápida que a polícia praticamente fica sem reação. Alcides Brum é hospitalizado, e agoniza em leito da Santa Casa de Porto Alegre por dois dias, até falecer. Quem fica mais estarrecido com isso é o chefe de Alcides, que considerava o ambicioso empregado como um filho.
Mas, na mesma tarde, é iniciada a caçada aos criminosos, comandada pelo delegado Chico Flores. Quem não perde tempo, mesmo, diante dos fatos, é a imprensa. Na época, havia uma verdadeira batalha de jornais, no contexto do mandato do então governador Borges de Medeiros, herdeiro político do positivista Júlio de Castilhos, cujo governo havia sido caracterizado pelo autoritarismo. Dois jornais se destacavam: A Federação, jornal de situação, e A Reforma, jornal de oposição ao governo borgista. Pues, A Reforma, então dirigida por Francisco Maciel Júnior, não perde tempo: horas depois do ocorrido, solta uma edição extra relatando o crime e aproveitando a deixa para atacar a atuação da polícia, das autoridades e, por extensão, do governo Borges de Medeiros, que, ao saber disso, cobra providências imediatas por parte do então intendente (prefeito) de Porto Alegre, José Montaury. A Federação foi mais comedido no relato dos fatos, mas envia um de seus jornalistas, Mário Almeida, para cobrir os acontecimentos.
Entre estes dois jornais, havia também o jornal O Diário, noticioso onde trabalhavam dois importantes personagens desta história: o redator, jornalista e médico Antônio Carlos Penafiel, genro do então falecido Júlio de Castilhos, e o repórter Mário Cinco Paus, que conduz uma investigação própria. Oh: a narrativa do livro é entrecortada com narrativas em primeira pessoa, atribuídas a Penafiel – Guimaraens assume a voz deste como testemunha dos fatos.
A polícia faz suas próprias investigações. Indicações do jornalista Mário Almeida logo fazem ligações entre os assaltantes e a comunidade judaica estabelecida em Porto Alegre, o que acaba fazendo com que muitos judeus acabem presos, injustamente, por suposta ligação aos crimes e pela suspeita de estarem formando uma quadrilha – não bastasse o que eles já haviam sofrido na Europa, sendo que muitos judeus eram provenientes da Rússia, onde eram promovidos os pogroms – perseguições, patrocinadas pelo governo, de judeus.
Com efeito, são feitas batidas em várias lojas onde trabalham estrangeiros. Mas, posteriormente, todas as pistas se mostram falsas.
Enquanto isso, outra equipe de policiais promove uma caçada pelo rio Gravataí. Outro jornalista, Carlos Cavaco, do jornal O Independente, se oferece como voluntário na procura aos criminosos, mas tudo o que acaba conseguindo é, junto com um parceiro, acabar atolado em um açude, sendo resgatado por pouco.
Enquanto isso, Mário Cinco Paus faz a já citada investigação própria – e obtém mais sucesso que Almeida e Cavaco. Cinco Paus, após algumas horas investigando, e graças a pistas fornecidas pelo cunhado (que, dias antes, vendera pistolas aos assaltantes) chega a um trabalhador braçal estrangeiro, Yurian Kirienko, que lhe dá pistas mais consistentes sobre a possível identidade dos criminosos. Mais: Cinco Paus descobre que os assaltantes eram ligados ao movimento anarquista, uma corrente radical, seguida por muitos trabalhadores da época, de reivindicação por melhores condições de vida e trabalho ao proletariado. Logo, consegue estabelecer a identidade de um dos assaltantes: Alexander Grauberger, o Sasha, imigrante russo que teve passagem pela Argentina antes de vir ao Brasil. Cinco Paus chega a entrevistar a família de Sasha.
O núcleo do movimento operário estabelecido em Porto Alegre também já começa a ficar temeroso por causa do assalto, visto que o governo pode usar o crime como pretexto para apertar o cerco ao movimento operário, onde muitos membros seguiam a corrente anarquista. Um dos principais nomes desse movimento era Reinaldo Geyer, que inclusive ministrava aulas de esperanto (idioma criado na Europa para servir como universal) a trabalhadores na Federação Operária local.
Enquanto tudo isso acontecia, alguém teve uma ideia para capitalizar em cima do episódio: o italiano Nicola Petrelli, que, junto com o irmão, Umberto, comandava o Teatro Colyseu, que, na época, além de peças teatrais, também exibia filmes. Foi dele a ideia de fazer um film em cima do episódio – e ainda quando o primeiro dia dos acontecimentos sequer havia terminado. Nicola contata então o cinegrafista italiano Guido Panello, que se encontrava em Porto Alegre fazendo filmagens promocionais para o governo, para filmar os acontecimentos. Quer dizer, captar algumas cenas reais, e, com a ajuda de uma companhia teatral, encenar alguns momentos-chave com atores. Os bastidores do film de catorze minutos (na época, o normal era que os filmes tivessem sete minutos) chegam a provocar até mesmo batidas policiais, mas tudo acaba esclarecido.
Bem: os Petrelli e Panello, de cenas reais, conseguem captar o desfecho do caso. Ocorreu na madrugada do dia seguinte, 6 de setembro: um destacamento do exército, acampado próximo a uma estação de trem, consegue, por acaso, localizar os quatro assaltantes, e segue-se um tiroteio: os quatro acabam mortos. E ainda houve a suspeita que, mesmo com os criminosos caídos, os soldados não pararam de atirar – e receberam ordens de não pegar ninguém vivo. Os quatro corpos foram colocados sentados e deles foi batida uma fotografia. E ainda foi promovido um cortejo: os soldados, em marcha pelas ruas de Porto Alegre, levaram os corpos dos criminosos. Isso serviu para alimentar a fogueira da oposição, visto que foi uma atitude deplorável, fazer da captura dos criminosos um ato de triunfo.
Carlos Penafiel conduz a necropsia dos corpos dos quatro assaltantes – identificados como: Alexander “Sasha” Grauberger, Stefan Sedoreski, Pablo Pavlowsky e Feodor “Fedko” (sobrenome não identificado). A necropsia descarta que eles fossem judeus, portanto, os judeus presos acabam inocentados e soltos. Mas todos são ligados ao anarquismo. Cogitou-se que os quatro pudessem integrar alguma quadrilha, mas algumas cartas encontradas junto aos corpos, mais investigações policiais, indicaram que os assaltantes tinham por principal motivação para o assalto a pobreza, mesmo. E um exame preliminar do local do crime, que considerou até os furos das balas nas paredes, indica que eles eram amadores – e que não era intenção deles atirar em Alcides Brum.
Mesmo com o desfecho do caso, a cidade demorou um pouco para voltar ao normal. A oposição ao governo não ficou calada; a Igreja foi até atacada por promover um culto pelo enterro dos criminosos; Alcides Brum vem a falecer, depois de lenta agonia, no dia 7, sendo seu enterro concorrido; e o film estreia no Teatro Colyseu depois de dez dias, e faz uma boa bilheteria. Porém, nos dias de hoje, o filme está perdido – suspeita-se que tenha sido destruído em um incêndio.
De todo modo, com tantos acontecimentos interessantes, TRAGÉDIA DA RUA DA PRAIA faz uma reconstituição detalhada de uma época da história de Porto Alegre. E é mais um fato a considerar na pitoresca crônica policial da capital gaúcha, como os Crimes da Rua do Arvoredo, ou Caso da Linguiça Humana (1862), o caso Qorpo-Santo (1864) e o Caso Papst (1931), que já foram relatados neste blog. Qual será o próximo caso que este que vos escreve acabará encontrando, por acaso, relatado em livro?

PARA ENCERRAR...
Já faz meses desde a última vez que publiquei páginas de minha HQ folhetinesca em “pílulas”, O Açougueiro, aqui no blog. Pois, a série, neste momento, está sendo retomada – já que estamos falando de Porto Alegre, cuja história serve de inspiração para a HQ. Desculpem por fazer vocês precisarem esperar para continuar acompanhando a história, é que eu tenho passado por alguns problemas pessoais. Além disso, ando fazendo muitas coisas ao mesmo tempo, o que impede uma dedicação maior a este folhetim. Mas, até o dia 20 de dezembro, quando a publicação de O Açougueiro completar dois anos, já teremos páginas suficientes para fechar um volume dois.
Na próxima postagem: TRAGÉDIA DA RUA DA PRAIA, a história em quadrinhos.
Aguardem novidades.

Até mais!

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