Olá.
Hoje,
volto a falar de livro. E retomando outro autor do qual já falei anteriormente.
Há
algum tempo atrás, apresentei aos leitores distraídos o jornalista e escritor
gaúcho e, antes de tudo, porto-alegrense Rafael Guimaraens, um especialista em
recolher histórias pitorescas da capital gaúcha. Já falei de um de seus
melhores livros, Tragédia da Rua da
Praia, e de sua versão em quadrinhos. Pois, hoje, o livro escolhido também
fala da Porto Alegre do século XX. De um fato aparentemente isolado, mas
responsável por uma de suas maiores desavenças.
Hoje
vou falar de A ENCHENTE DE 41.
Como
quase todos os livros de Guimaraens, A ENCHENTE DE 41 foi publicado pela
editora Libretos, de Porto Alegre, em 2009. O livro se apresenta em formato
álbum: tamanho 28 x 19 cm, em média, 100 páginas sem contar capa, impresso em
papel couché de alta gramatura, altamente ilustrado em preto e branco.
Fazendo
o já tradicional exercício de micro-história – começando com uma
contextualização quase completa da cidade na época retratada, nas áreas da
política, economia, sociedade e entretenimento, para depois falar, detalhadamente,
do fato em si – Guimaraens trata da grande enchente ocorrida em Porto Alegre no
ano de 1941, e que alterou a rotina da cidade durante mais de 22 dias, entre
abril e maio daquele ano.
Na
época, o Brasil vivia o período do Estado Novo, ou o período ditatorial do
governo de Getúlio Vargas. A Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) estava
ocorrendo, mas os Estados Unidos ainda não haviam entrado no conflito, e o
governo brasileiro ainda estava alinhado com as forças do Eixo (Alemanha –
Itália – Japão). Só no ano seguinte o Brasil se voltaria contra o Eixo. E,
embora houvesse supressão da democracia, perseguição a opositores e censura à
imprensa, Getúlio Vargas era um presidente muito popular entre o povo, dada a
série de concessões dadas aos trabalhadores
Enquanto
isso, Porto Alegre experimentava uma vida social e cultural agitada. O trecho
da Rua da Praia entre a General Câmara e a Paysandu (futura Caldas Júnior) era
conhecido como “pequena Broadway”, dada a presença de cinemas e teatros. A vida
intelectual girava em torno da Livraria do Globo, responsável por editar obras
importantes de autores consagrados – entre eles Érico Veríssimo, que na época
estava trabalhando nos Estados Unidos. Além disso, estavam sendo feitos grandes
investimentos em infraestrutura, levadas a cabo pelo intendente (prefeito)
Oswaldo Cordeiro de Farias. O maior símbolo desse período desenvolvimentista
era a Avenida Farrapos, ligando o Centro a Zona Norte – e cuja construção foi
complicada, demandando inclusive demolição de casas. E, é claro, nem todos
desfrutavam das mudanças pelas quais a cidade, que há pouco comemorara seu
bicentenário (em dezembro de 1940), passava – os moradores dos subúrbios viviam
a constante luta pela vida.
Bem:
os meses de abril e maio de 1941 trouxeram uma enchente de grandes proporções,
embora não fosse a primeira vez que a cidade encarava as consequências de uma
grande cheia do Rio Guaíba, ocasionada por dias ininterruptos de chuvas que
aumentavam o volume dos rios da bacia da Região dos Sinos. Outras grandes
enchentes já haviam sido registradas anteriormente, com destaque para as
“Enchentes de São Miguel”, ocorridas entre setembro e outubro de 1926, e em
setembro de 1928. Mas a maior de todas, no fim, foi a enchente de 1941 – outras
ocorreriam em anos posteriores, com destaque para as de 1973, 1983 e 2001,
porém sem maior gravidade.
Bueno.
As chuvas chegaram em 10 de abril de 1941. Mas foi no dia 22 de abril que as
águas invadiram para valer diversas áreas da cidade, notoriamente aquelas que
ficavam mais próximas ao Rio Guaíba, como os bairros Floresta, Caminho Novo,
São João, Navegantes, Areal da Baronesa, Menino Deus e Ilhota, se alastrando
até o Riacho Dilúvio, um pouco mais distante do Guaíba. O Centro, incluindo a
Rua da Praia, o Cais do Porto e o Largo da Prefeitura, viram a água subir.
Diversas casas e prédios de empresas foram atingidas. Houve mortos e
desabrigados – a primeira vítima fatal foi um funcionário da Limpeza Pública,
morador das proximidades da Ponte do Guaíba. Até mesmo a Usina do Gasômetro,
principal fornecedora de energia elétrica da época, foi atingida, deixando boa
parte da cidade às escuras. Só com muito esforço foi possível a reativação da
energia elétrica.
Apesar
de as chuvas diminuírem sua intensidade por volta do dia 2 de maio, a “pequena
Broadway”, no dia 5, se transformou em Veneza, não apenas por causa da invasão
das águas, mas também por causa da quantidade de canoas e barcos que,
oportunamente, começaram a circular pelas áreas inundadas, transportando
pessoas e bens. O transporte fluvial ocasional foi legalizado até pelas
estações de rádio, que informavam o horário de saída e itinerários de algumas
embarcações. E, é claro, houve uma grande rede de solidariedade organizada em
favor dos flagelados, acolhidos em diversos locais improvisados, recebendo
doações. O governo também se viu obrigado a fazer alguma coisa – entre outras
coisas, determinou o tabelamento de preços dos produtos de primeira
necessidade, ante as denúncias de comerciantes que aumentavam o preço destes,
se aproveitando da situação caótica.
Foi
no dia 8 de maio que as águas atingiram sua altura máxima: 4,76 metros.
Ironicamente, foi o primeiro dia de sol após o período de chuva ininterrupta.
As coisas só começaram a se normalizar por volta do dia 14 de maio, quando as
águas, afinal começaram a ceder e baixar. Hora de calcular os prejuízos: entre
outros números, foram 70 mil pessoas desabrigadas, e mais de 600 empresas
atingidas. E foi necessário um grande programa de vacinação da população contra
tifo e febre amarela, para tentar evitar o que acontecera em 1928 – quase em
seguida à enchente, ocorrera uma epidemia de tifo na Capital, porque as águas
também danificaram o sistema de escoamento de esgoto e, como todo mundo sabe, a
contaminação das águas por matérias fecais causa doenças como cólera, tifo e
leptospirose. A vida em Porto Alegre foi se normalizando de forma gradual.
A
enchente de 1941 certamente expôs a fragilidade dos poderes públicos da
Capital. E foi uma das causas de uma das maiores polêmicas porto-alegrenses: a
Cortina de Proteção, popularmente conhecida como Muro da Mauá. Construído entre
1971 e 1974, e praticamente imposto pelo Regime Militar do período, o Muro da
Mauá, em tese, protegeria a área central da Capital contra uma nova enchente –
levando em conta os parâmetros estabelecidos pela enchente de 1941 – mas a
maioria dos porto-alegrenses odeia a construção, entre outras coisas, porque
atrapalha a vista para o Rio Guaíba, que proporciona aos admiradores a visão de
um dos mais belos crepúsculos do mundo. Isso não é segredo para nenhum gaúcho
ou brasileiro.
Bem.
Guimaraens procura resgatar tudo o que pode a respeito do evento. Informes de
jornal, estatísticas, fotos (muitas fotos), mapas. Até mesmo um poema popular
de cordel é usado como base. E, no final, o autor também discute a respeito da
polêmica do Muro da Mauá. Praticamente, só o tempo dirá se a Cortina de
Proteção é realmente útil, enquanto nem o governo, e nem a sociedade local, se
decidem sobre uma possível demolição do Muro.
De
todo modo, A ENCHENTE DE 41 vale a leitura. Não apenas por ser bem rápido de
ler – cerca de uma hora e meia é suficiente para completa-lo – mas também pela
linguagem acessível, pela boa contextualização histórica e pela grande
quantidade de ilustrações, que transportam o leitor para a Porto Alegre dos
anos 1940. Difícil não concluir que Porto Alegre já foi outra cidade, quando
ainda tinha cinemas nas calçadas, quando a Livraria do Globo funcionava, e
quando seus edifícios ainda não eram muito altos. Quando suas principais
edificações ainda não haviam sido desocupadas e hoje ocupadas por centros
culturais, quando o Olímpico ainda era a sede do Grêmio Football
Porto-Alegrense e, claro, quando o tal Muro da Mauá ainda não existia.
PARA
ENCERRAR...
...mais
páginas de O Açougueiro, minha HQ de
folhetim! Já que falamos mais uma vez da Porto Alegre antiga. Embora estejamos
falando do século XX, e esta HQ se passa no século XIX. Mas Porto Alegre não
deixa de ser Porto Alegre, desde sua fundação no século XVIII.
Na
presente ocasião, só consegui fazer três páginas – justo quando a história
entrou em seu clímax. E já se aproxima o aniversário de 2 anos da publicação da
série...
Mas
aguardem novidades. Há de ser feito algo especial para marcar os 2 anos de O Açougueiro. Ainda vou definir.
Até
mais!
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