domingo, 3 de dezembro de 2017

MACÁRIO - Capítulo 23: "As Inacreditáveis Noites Seguintes VIII e Um Quarto"

Olá.
Quinze dias se passaram desde o último capítulo publicado de meu folhetim ilustrado para adultos, MACÁRIO. Então, hoje temos episódio inédito. E, por pouco, ele não saía, por causa dos muitos encargos que assumi nas últimas duas semanas...
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de violência, agressão, humilhação, vampirismo e presença de monstros e bizarrices.



Cerrei meus punhos. Meus dentes rangiam. Meu corpo dolorido estremecia, diante da verdadeira natureza do líder dos “monstros”.
Oh, céus.
Luce.
Ele parecia um cara tão legal. Tão gente fina. Tão bem humorado. O tranquilo líder da patota dos “monstros”, o que sempre ficava borboleteando pelo bar enquanto os demais discutiam entre si.
E agora, eis que vejo o que ele é, de verdade: um vampiro!
Isso tem de ser mais um de meus pesadelos!!!
Então era ele. O responsável pelas desgraças que começaram a recair sobre minha vida. O que invadia meus sonhos, comandando meus pesadelos.
Ali estava ele, diante de mim. O cabelo claro e brilhante, encurtado nos lados e na nuca, e repicado por cima; uma capa esvoaçante, com gola alta, que lhe dava o aspecto fantasmagórico – inicialmente lisa, alinhada e cinzenta, depois negra e com aparência de esfarrapada. Parecia mais alto do que eu conseguia lembrar – sua estatura aumentou de repente. E dentes afiados.
Um Conde Drácula loiro.
Seu terno alinhado, e sua capa, todos muito limpos, faziam Luce contrastar comigo, que estava de cabelo desgrenhado, a roupa suja e esfarrapada por conta de minhas aventuras fracassadas da noite.
E ele ria. Ria muito.
- Luce!... – exclamei, indignado.
- Ora, ora, Macário. – ele falou, depois de rir por um longo minuto. – Que vampiro mais desajeitado você se saiu. Infelizmente, tenho de dizer que você foi... reprovado.
- Você esteve me observando?!
- Pois sim, estive. Estive acompanhando seus movimentos desde que você saiu do apartamento. Estive cuidando de sua evolução. E vou te dizer: que patético.
- Luce!...
- Você não soube ser discreto. Você não soube usar seus novos poderes a seu favor. Deixou que uma gangue te deixasse feito um mendigo. E logo a mesma gangue que quase acabou com você no dia de nosso primeiro encontro... Olhe para você: todo sujo e esfarrapado. Não é o Macário que conheci. O máximo de sangue que conseguiu sugar foi de uns ratinhos magrinhos e de uns cãezinhos ainda mais magrinhos. E ainda apanhou de duas mulheres! Ah, ah... Seu patético Macário.
- Luce... Foi você quem me mordeu! – procurei desviar o assunto. – Você atacou a mim e a Valtéria, naquela noite! Eu lembro bem! Essa capa! Esse cabelo!
- Que tem meu cabelo? – falou, sem se alterar, mexendo no cabelo. – Está feio? Prefere ele pintado? Preferia ele penteado para os lados? Para trás?
- Foi você quem sugou me sangue... Foi você quem me transformou em vampiro!! Quantos mais você mordeu e...
- Que lhe interessa de quantos mais eu suguei sangue? Não transformei ninguém em vampiro.
- Não trans... mas... mas... E eu?! Eu não conto?!
- Mas você não se tornou vampiro.
Mas que cínico!
- Como assim?!
- Você nem serve para vampiro. Você apenas pensa que é um vampiro, mas você não se tornou vampiro. E, mesmo se tivesse se tornado... Você devia ter sugado o sangue daqueles cachorrinhos lá no beco, os que estavam deitados na caixa de papelão. Eu queria muito que você tivesse sugado o sangue deles...
- Cale a boca, seu...! – gritei.
- Não me mande calar a boca, seu falso vampiro! – Luce me apontou o dedo branco. – Quem manda aqui sou eu!
E ele sorria, doentiamente irônico.
Cínico filho da p(...)!
O que ele queria dizer com “você não se tornou vampiro”? Claro que eu me tornei. Ele me mordeu, e me transformei em vampiro, manifestei poderes de vampiro até agora. Tudo bem, o processo levou dias para acontecer na sua plenitude. Mas eu... sou um vampiro! Um vampiro fracassado... mas eu sou um vampiro!
Deve ter algum resto de poder que me permita ao menos enfrentar esse desgraçado. Eu estava fraco, precisado de sangue, mas talvez eu pudesse enfrentar esse desgraçado. Pelo menos dar um soco nele. Pensando nisso, já tirei a mochila das costas e joguei no chão, sempre olhando em seus olhos. Luce arregalou os olhos, numa expressão “agora a p(...) ficou séria”, mas não houve alterações em seu humor.
- E aí, Macário, o que pretende fazer agora? Vai sugar o sangue dessas meninas aí caídas?
Olhei para Créssida e Maura, que, atrás de mim, jaziam jogadas no chão, adormecidas por causa dos dardos de tranquilizante que Luce disparou contra elas. A zarabatana já sumira dentro de sua capa.
- Se você não vai sugar, eu vou... – disse Luce, lambendo o beiço.
Ah, não, isso não!
- Não toque nelas, seu... seu...
- Eu já disse que quem manda aqui sou eu, seu saco de trapos tornado gente. O que vai fazer? Vai me enfrentar para me impedir de sugar o sangue delas? Ou quer reclamar o sangue delas? Aproveita, não seja tímido, morda elas e...
- CALA A BOCA!!!
Não! Eu não vou morder a Maura, muito menos a Créssida – e nem vou deixar que sejam mordidas. A Créssida já havia sido mordida, e não vou transformá-la em vampiro com uma segunda mordida. Eu não. E muito menos a Maura. As duas foram minhas amantes... e machuca-las seria a última coisa que eu gostaria!
O que fiz, de verdade, foi avançar para cima de Luce, enfrenta-lo, arreganhando os meus dentes caninos novos. Avancei com tudo. Se ele tiver sangue no corpo, vai ser o dele mesmo! Ele deve ter ingerido sangue hoje, então eu vou...
Mas ele me deu um soco. Antes que eu conseguisse tocar nele, ele me tocou: me jogou para o lado com um soco no rosto. Caí no chão. Não foi um soco muito forte, mas senti meu crânio balançar.
- Não me obrigue a ser violento com você, seu espantalho. – ele falou, ainda sorrindo. – Você parece um espantalho, sabia? Esfarrapado, sujo e cheirando urina, seu fedido. Relaxado.
- AAARRRRRGH!!! – urrei, me levantando e avançando para cima de Luce. As forças que reuni para ataca-lo provinham essencialmente da minha raiva. Da descarga de adrenalina de meus rins. Meus rins, minhas glândulas suprarrenais, ainda devem estar funcionando, então...
Mas acabei recebendo mais um golpe. Desta vez, foi só um tapa com as costas da mão. Mas fui jogado para trás como um boneco de pano. Me levantei. Meu corpo doía, minha bochecha inchava, mas Luce não conseguiu quebrar nenhum osso meu. Assim espero...
- Quer brigar, Macário? Peraí, vamos deixar tudo mais interessante...
E, de dentro da capa, ele sacou um apito. Não vai me dizer que é...
É, sim. No momento em que ele soprou o apito, aquele apito de alta frequência para cães, e cujo som eu conseguia ouvir, senti as mesmas dores lancinantes nos ouvidos, que eu senti das outras vezes que ouvi esse maldito som. Fiquei de joelhos, acudindo os ouvidos. Parecia que Luce estava enfiando duas agulhas de tricô nos meus ouvidos... Pare, seu desgraçado... PARE!!!
Quando Luce parou de apitar, ao meu grito, as dores começaram a passar, lentamente. Me levantei. E me sentia mais disposto a lutar. Sentia meus ferimentos se curando.
Então era isso: ele ativava meus poderes de vampiro aos poucos com sopros daquele apito de alta frequência! Mas por que só assim?! Mas eu hei de arrancar a explicação dele...
Me joguei em cima dele. Ele conseguiu se desviar, e acabei caindo para o lado. Tentei de novo. Mas ele conseguia adivinhar meu pensamento, porque conseguia se desviar de todas as tentativas que fiz de agarrá-lo.
- Que você está pensando que é, Macário, um cachorro para tentar me morder?
- Seu filho da mãe...
- Respeite a mãe dos outros, seu...
Desta vez, consegui agarrá-lo. Minha tentativa de insulto o distraiu um breve momento, e consegui agarrá-lo. Mas sem muito sucesso. Ele conseguiu se desvencilhar do “abraço” que lhe dei, e sua capa se transformou na massa de sombras de meus sonhos. Fui envolvido pela escuridão de sua capa... Fui sugado, como se tivesse sido devorado por um espectro... e depois regurgitado para fora, como alguém cospe um caroço de cereja. Rolei pelo chão.
- Seu safado! Pervertido! – gritou Luce, sorrindo ironicamente, e espanando a roupa com a mão. – Me respeite! Que história é essa de vir me agarrar assim... E ainda por cima todo sujo, cheirando urina! Este terno é caro, sabia?
Que se danasse o terno...
- AAARRRGH! – gritei de novo. E tentei um novo avanço.
Mas Luce, desta vez, me atacou. Quase me derrubou com o primeiro soco de uma série. Socou meu estômago. Senti gosto de sangue na boca. Depois, me deu mais um soco no rosto. E outro. E mais outro. Ele vai arrebentar meu crânio a socos!!! Já sentia meus dentes amolecendo, prestes a cair. Tenho de resistir ou... Mas aí, ele me pegou pela gola do casaco e me jogou contra a parede. Caí sentado no chão.
- E fique no chão, seu espantalho!
- Uuunngh...
Tentei reunir o que sobrava de minhas forças. Meu corpo doía. Meu rosto doía. As dores estavam bem presentes, mas passavam rápido. O novo poder ativado deve ser o de cura instantânea – qualquer outra pessoa já teria empacotado com os golpes que Luce dava. Mas estava decidido a pegar esse desgraçado... Pelo menos um arranhão no rosto daquele... daquele...
Tentei um último ataque. Mas ele conseguiu me derrubar apenas com um movimento da capa: ele a fez chicotear para a frente. Senti a capa batendo contra meu rosto, e me derrubando. Parece até que ele amarrou um peso na ponta da capa para tornar o impacto mais duro.
Minha cabeça rodava, enquanto eu jazia no chão, tentando me mexer. Eu ainda estava vivo? Estava jogado no chão, e não conseguia me mexer de tanta dor. O que será que Luce vai me fazer agora... ele vai...
- Um pouco mais de exercício, agora...
Ele me fez levantar e me desferiu uma nova série de socos. Depois, me agarrou pela gola do casaco e me jogou longe, quase me fazendo bater contra a parede. Eu tenho que reagir... eu tenho que... Mas, a cada tentativa que eu fazia para me levantar, Luce me dava mais golpes, e sempre rindo, rindo alto, insultando. Virei um saco de pancadas. Luce descontava uma raiva interna dele em um espantalho – que, de certa forma, eu me tornei. A tortura durou cerca de dez minutos, até que eu não conseguisse mais me mexer. Estava vivo, mas levei tanta pancada que mal conseguia me mexer... Por que eu não desmaiava?
Luce me agarrou pela gola do casaco, e me ergueu, à altura de seus olhos. Sua força era impressionante: em suas mãos, eu não era mais que um boneco de pano.
- Seu patético Macário!!! Que você pensa que é para me enfrentar?! Um reles humano, é isso que você é e continua sendo! Você não se tornou vampiro! Será que vai custar a entender?!
- Is... isso... – falei, sentindo o inchaço na boca, o sangue escorrendo pelo nariz. – Isso é um teste?!
Era uma esperança... de que aquela tortura toda, aquela humilhação física e psicológica, fosse uma aula sobre como agir como um vampiro. Mas Luce não dava o mínimo sinal de que ia me ensinar a ser vampiro. Na realidade, parecia que ele ia me descartar.
- Que teste, meu?! Você foi é vítima de uma pegadinha! Você não se tornou vampiro! Você pensa que se tornou vampiro, mas não se tornou!!!
- Men... ti... ra...
Que estranho, apesar do estado lastimável em que me encontrava, eu ainda me sentia lúcido, e vivo. Por que, no mínimo, eu não desmaiava? Por que minha alma custava tanto a deixar meu corpo? Por que Deus ainda permitia que meu corpo continuasse doendo insuportavelmente, por que permitia que eu fosse torturado daquele jeito?!
- E agora, o que faço com você, hein, seu verme?! Me dá vontade de arrancar sua cabeça como a de uma barata... e ver se seu corpo ainda anda...
- Uurrhhhhh...
Eu não conseguia nem erguer meus braços, nem minhas pernas. As únicas partes do corpo que eu conseguia mover eram a boca, para falar, e os olhos, para chorar de raiva.
- O que será que eu faço agora com você, Macário?! – repetiu Luce.
É, o que ele pretendia? Será que eu vou ser morto, mesmo? Para poder acordar de mais um pesadelo que eu nem sei como começou? Talvez seja isso...
- Me mata, Luce...
O vampiro arqueou uma sobrancelha.
- Te matar?
- Me mata logo...
- Por que deveria te matar?
- É um pesadelo, tudo isso... Só pode ser um pesadelo... Se não me tornei vampiro, então estou vivendo mais um pesadelo... – incrível como eu estava conseguindo falar lucidamente, mesmo com o corpo dolorido, com a cabeça dolorida, com a boca dolorida. – Então... basta você me matar para eu acordar... Vai, me mata... Hoje você é o carrasco...
Ele me baixou um pouco, encostou seu nariz no meu, e, olhando em meus olhos, falou, entre risos:
- Não, Macário, não vou te matar, não...
- Me mata, Luce... eu imploro...
- E privar o mundo do melhor garçom que já encontrei? Nunca!
- Me mata logo...
- Eu não quero te matar. Só quero te deixar machucado... Quero que você agradeça por estar vivo... Ah, Macário, queres mesmo ser morto?
- Quero é que meus pesadelos acabem... Por favor, me mate, Luce...
Eu queria mesmo, tanto assim, ser morto? Talvez fosse o melhor para mim nesse momento... Quem sabe essa loucura chegue ao fim... É isso. Quero que essa loucura de monstros chegue ao fim...
- Ah, Macário... Mas, se você morrer, as suas garotas ficarão à minha mercê, eh, eh, eh...
Virei a cabeça, em direção a Maura e Créssida, adormecidas.
- Não... não faça nenhum mal a elas... A elas não... Apenas me mate e vá embora... Por favor... Se dê por satisfeito apenas me matando...
- Mas eu não quero te matar, eu já disse. Quero que você viva e continue fazendo drinques para meus amigos e para mim. Pare com essas ideias. Senão... ah, ah, ah...
E deu uma lambida em meu rosto, pegando um pouco do sangue do meu nariz, que eu já sentia formar um bigode ao redor de minha boca. Lembrei daquele dia, com Valtéria. Oh, Valtéria...
Senti a lágrima escorrer de meu olho inchado. Fiz uma careta. Pervertido, lambendo o rosto de um homem indefeso?!
- Mas não se preocupe, não... – continuou rindo Luce, parecendo um Coringa, do Batman. – Seu sangue não é tão bom assim... A Andrômeda talvez tenha gostado de seu sangue, mas para mim...
- Para de besteira e me mata... Não posso nem fazer drinques com meu corpo todo quebrado assim... Me mata...
- Não vou te matar, Macário. Você agora vai ver eu sugando o sangue de suas garotas...
- Não, não faça isso...
- Você vai ver agora eu sugando sangue... dela ali.
E apontou o dedo... para trás. Para a rua. Olhei sobre o ombro de Luce: na entrada do beco, estava Geórgia.
Oh, céus! Eu havia esquecido que havia marcado encontro com a Geórgia esta noite... e, de algum modo, ela agora estava ali, vestindo uma combinação de roupas similar à da noite de nosso reencontro – roupas curtas, meia-calça sob a minissaia de couro, sapatos baixos – e com o olhar aterrorizado, vendo Luce me erguendo pela gola do casaco.
- Macário?! – ela balbuciou. – É você?
- Geórgia... – balbuciei.
- Oh... é Geórgia o nome dela? – falou Luce, com um sorriso lascivo.
- Ma... Macário? – tornou a perguntar Geórgia.
- Ge... Geórgia... fuja... fuja! – gritei.
- Ah, não, não vai fugir não. – disse Luce, me soltando.
Caí sentado no chão. Luce então se transformou na massa de sombras e se atirou, feito um corvo, em cima de Geórgia, que, instantaneamente, reagindo rápido, começou a correr.
- Geórgia! Nãããooooo!!! – gritei.
- AAAAHHHHH! – foi o grito de Geórgia, no momento em que a massa de sombras a envolveu antes que ela conseguisse correr.
Oh não! Luce pegou Geórgia! Ela foi mordida! Ele está sugando sangue dela!!! Geórgia! Não!
Ainda sentindo as dores no corpo, me levantei. Não sei como, mas consegui correr até onde Luce estava apoiado. Só conseguia ver a capa dele, esvoaçante, cobrindo a visão, bem na beira da calçada. Mas podia imaginar a cena, Luce sugando o sangue da garota com seus caninos afiados. E como é que não aparecia ninguém na rua vendo a cena?!
- Pare, seu desgraçado!!! – gritei! – A Geórgia não! Pare!!!
Cheguei mais perto, mas sem saber direito o que fazer a respeito. De toda forma, era tarde demais! Luce já se levantava, e Geórgia jazia caída no chão, depois de ter tido seu sangue sugado por um... um...
...uma seringa?!
Quando cheguei perto de Luce e Geórgia, tive uma surpresa.
Geórgia jazia no chão, com os dois buracos ensanguentados no pescoço. Mas Luce não tinha a boca suja de sangue. Em vez disso, ele segurava algo que parecia uma bomba de bicicleta de metal. Tinha duas pontas afiadas, duas agulhas, e o êmbolo estava para cima; era... uma seringa gigante?
- Isso deve dar, por hora... – falou Luce, conferindo o objeto. Depois, olhou para mim. – Nossa, Macário, que expressão de surpresa é essa?
- Mas... mas...
- Que olhas, Macário? Oh... oh, sim, Macário, isto é uma seringa.
- Se... se... serin... ga?!
- É assim que um vampiro sensato suga sangue.
- Se... seringa?! Seringa?!!
Luce começou a rir, às bandeiras despregadas.
- Tinha de ver a sua cara, Macário!!!
- Mas... mas... – balbuciei, sem conseguir entender nada. – Mas... mas... mas... mas...
- O que foi, Macário? Achou que eu ia morder a garota? Logo a garota do Breevort? Ele ia me matar se eu soubesse disso... Além do mais, morder pescoços é coisa do passado! Ih, ih... Você não concorda, irmãzinha?
Ele falou isso olhando em direção ao beco. Me voltei para lá, e tive outra surpresa.
Havia uma figura apoiada sobre o corpo de Maura. Apurando o olhar, distingui uma cabeleira prateada, muito familiar, contrastando com um vestido muito branco. A figura ergueu a cabeça em direção a mim. E sorriu, sem jeito.
Era Andrômeda! Sem a peruca cor de rosa! E também segurava uma seringa similar à de Luce.
Então ela também era uma vampira!
Ela sorria sem jeito, pega no flagra.
- Eh, eh... Oi, Macário.
- An... Andrômeda?
Envergonhada, ela tentou esconder a agulha nas costas.
- Ma-ma-Macário, eu posso explicar...
- Andrômeda! Vo... Você também é uma vampira?!
- Ela, é, meu chapa. – falou Luce, atrás de mim. – Pensei que você já soubesse, afinal, vocês dois transaram, não?
- Mas... mas... mas... – eu não sabia nem o que responder, estava difícil se recuperar da surpresa.
- E o Jorginho ali também é um dos nossos. Né, Jorginho?
Havia uma terceira figura no beco, uma massa de sombras com olhos vermelhos e brilhantes. A figura saiu das sombras. Reconheci: era o Jorge Miguel. E ele ostentava, em seu rosto, os olhos vermelhos e bifurcados. Então... não era ilusão?! Ele tinha mesmo olhos vermelhos e bifurcados, no rosto emoldurado pelo cabelo cuidadosamente penteado para trás e pela barbicha?
- Oi, Macário. – ele falou, tranquilamente. – O Luce não te machucou demais? Pode andar?
Naquele local, só duas pessoas se encontravam constrangidas: Andrômeda e eu. Luce e Jorge Miguel estavam tranquilos, “de boa”. Geórgia, Maura e Créssida, jaziam no chão, adormecidas.
- Temos de levar as garotas para o hospital. – falou Jorge Miguel. – Quanto de sangue vocês tiraram desta vez?
- Não deu nem um litro, Jorge. – falou Luce, conferindo a seringa. – A Andrômeda que deve ter tirado mais...
- Não deu nem meio litro. – falou Andrômeda. – Deu pouco mais que uma bolsa de sangue. E... ah, olha só, Luce, por que você insiste em deixar as marcas profundas no pescoço dela?! Olha aí, o pescoço da moça está sangrando! Eu te disse para tomar cuidado com a agulha...
- Ah, mas e quanto a você?! – perguntou Luce, em tom de censura.
- Olhe só, Luce, as marcas serão mínimas. A cicatriz será bem menor que a de uma injeção convencional...
Cheguei perto de Maura para ver: de fato, mal se viam os buracos das agulhas. Havia sangue no local do ferimento, mas muito menos que as marcas que Luce deixara em Geórgia. Não eram mais que pontinhos vermelhos, comparados com a lambança que Luce deixara no pescoço de Geórgia.
- Eu te disse, Luce. Nunca enfie as agulhas fundo demais, enfie só a pontinha! Assim não deixa a cicatriz aparente! – reclamou Andrômeda, colocando um pedaço de gaze no pescoço de Geórgia, estancando o sangramento.
- Mas eu quero que fique uma marca aparente! – retrucou Luce.
- Mas assim vai atrair atenção para nós, Luce... Não tem ouvido os noticiários? – pergunta Jorge Miguel. – Já estão desconfiando que...
- Não vamos ficar discutindo pormenores diante do Macário. Pegue o carro. – interrompeu Luce. – Temos de levar as garotas ao hospital. Desta vez, vamos levá-las ao hospital do Centro. Se bem sei, a menina vestida de jeans – e apontou Maura – trabalha no hospital da universidade, então não faz sentido interna-la justo no local onde trabalha... Não acha, Macário?
- Mas... mas... – continuei balbuciando, enquanto Jorge Miguel corria para fora do beco.
Examinei o corpo de Créssida: não haviam marcas novas de...
- Não se preocupe, Macário. – falou Andrômeda, atrás de mim. – Ninguém tocou nessa aí. Ela já havia sido pega antes, então nada lhes acontecerá. Só às outras, que vão precisar de uma reposição de sangue. Mas essa aí vai ter de ir para o hospital mesmo assim... Sabe-se lá se o tranquilizante não vai provocar-lhes uma reação alérgica...
Olhei para Andrômeda, estarrecido.
- Mas... mas... o que está acontecendo, afinal?! Quem são vocês?!
- Macário... – Andrômeda deixou cair uma lágrima. – Eu lamento muito. Acho que chegou a hora de você saber de toda a verdade.
- Verdade? Verdade sobre o quê?! Sobre vocês serem... serem... vampiros?!
- Yes, amigo, yes. – falou Luce, atrás de nós, sempre sorrindo, e carregando Geórgia nos braços. – Yes, yes. Vamos levar as garotas ao hospital, e aí a gente vai explicando tudo.
Aí, as luzes de dois faróis brilharam forte no beco. Um carro vinha em nossa direção! Mas o carro não entrou no beco.
Os faróis foram apagados, e pude ver que era um carro extravagante. Parecia um modelo antigo, mas de nenhum modelo que alguém pudesse reconhecer. Parecia... uma combinação de diversos modelos de automóvel. Um modelo de teto retrátil, parecido com um Cadillac, mas com para-lamas arredondados como os de um fusca. Um desses modelos com porta-malas conversível, que, aberto, podia ser usado como um terceiro banco traseiro.
Jorge Miguel desceu do volante. E veio me ajudar a entrar no carro. Pegou minha mochila do chão e carregou, enquanto me amparava no seu ombro. Meu corpo já doía menos, mas minhas pernas estavam muito bambas.  Fui acomodado no banco atrás do motorista. Enquanto isso, Luce acomodava Geórgia junto comigo – desmaiada, ela parecia uma grande boneca, incapaz de mover um único músculo. Mas respirava e ainda tinha pulsação. Andrômeda, chorando, acomodou os corpos de Maura e Créssida no terceiro banco traseiro.
E o carro, poucos minutos depois, deu partida, numa velocidade estonteante. Jorge Miguel ao volante, com Luce ao seu lado, na frente; Andrômeda no segundo banco, comigo e com Geórgia. E ela chorava. Luce e Jorge Miguel estavam bem tranquilos, como se o fato de ter quatro pessoas feridas em seu carro não fosse nada de mais. Digo: Créssida não estava ferida, mas ainda estava sob efeito de dardos tranquilizantes.
Decidi não perguntar nada agora, enquanto Andrômeda soluçava. Tentei me concentrar apenas em minhas dores, de todas surras que levei nesta única noite. De uma matilha de cães demoníacos, de três bandidos, de uma prostituta, de Créssida, e de Luce. Foi a minha vez de deixar uma lágrima rolar. Eu sou tão patético. Por que Luce não me matava logo?! Por que Andrômeda não me matava logo?!
Não demorou muito para que o carro chegasse ao hospital central da cidade, que estava de plantão. Jorge Miguel estacionou o automóvel com bastante tranquilidade. Luce desembarcou saltando a porta – e sequer se desfez da capa. Abriu a porta de trás, tirou o corpo de Geórgia do banco traseiro e o carregou nos braços até o interior do hospital – Jorge Miguel fez o mesmo com o de Maura. Enquanto isso, Andrômeda e eu esperamos no carro.
Ela soluçava. E, visivelmente constrangida, começou a falar:
- Macário, nos perdoe...
Meu corpo doía menos, agora. O banco do carro era muito confortável, e estava ajudando.
- O que está havendo, afinal? – perguntei. – Será que alguém vai se dar ao trabalho de explicar?
- Um momentinho, Macário. Deixa só eu limpar seu sangue...
Sacou, de baixo do banco, uma garrafa de álcool e um estojo de primeiros socorros. Besuntou um pedaço de algodão no álcool, e começou a passa-lo em minha boca, limpando meu sangue. Depois, lambeu o algodão, com sua língua bifurcada.
- Seu sangue tem um gostinho bom, Macário. – diz Andrômeda, sorrindo sem jeito.
- Então, você é uma vampira...
- Sou sim, confesso que sou. Uma vampira, sanguessuga.
- Mas... eu não entendo. – eu queria perguntar muitas coisas, mas acabei dando prioridade a um assunto fora daquele contexto: – Onde foi que errei? Eu não consegui ser vampiro... Mas eu despertei poderes, e...
- Mas você não é vampiro, Macário. Apenas imaginou ter sido transformado em um. O Luce te fez uma pegadinha.
- Mas... mas como... mas se eu senti que...
- Na verdade, você esteve agindo sob o efeito de algumas drogas, Macário.
- Drogas?! Como assim?! Eu...
- Hã... Macário. Sabe aquelas doses de bebida que a gente pagou para você, no bar, semana passada? – Andrômeda sorria constrangedoramente. – É que... nelas foram acrescentadas algumas drogas, sabe... Elas é que estavam fazendo seu corpo simular poderes de vampiro. Elas foram ativadas com aquele apito de alta frequência, e...
- Bebi... ei, eu bem que estranhei que aqueles drinques, que vocês me pagaram... estavam com um gosto diferente do habitual!
- Sim, mas... Macário, saiba que isso tudo foi feito contra nossa vontade! Por favor... Foi o Luce quem nos obrigou a ministrar as... as... (soluço) Foi o Luce que... (soluço)
E recomeçou a chorar. Eu só conseguia olhar, atônito.
- Foi o Luce quem o quê, irmã?
Levei um susto. Luce já voltara, e pegava o corpo de Créssida para conduzir ao hospital.
- Você que obrigou a gente a dar drogas ao Macário (soluço)... – falou Andrômeda, chorando profusamente. – As poções que o deixaram (soluço) o deixaram vulnerável às suas sacanagens (soluço)...
- Ora, vai dizer que não foi divertido? Você pelo menos teve uma boa noite de amor com o bonitão aí, não?
E, rindo, Luce voltou ao hospital, com Créssida nos braços.
Andrômeda continuava chorando.
- Andrô...
- Macário (soluço)... caso esteja se perguntando (soluço)... sim, esse safardana aí é meu irmão.
- Irmão?! – perguntei, atônito. – Vampiros tem irmãos?!
- Ah, Macário (soluço)... Muito do que se escreveu a respeito dos vampiros não corresponde à realidade dos fatos (soluço)... É o que eu posso lhe dizer agora, que...
- Talvez seja melhor que os outros expliquem com calma. – falou Jorge Miguel, voltando ao lugar do motorista e assumindo o volante. Luce vinha logo atrás, ocupando seu lugar ao lado de Jorge Miguel.
- Você... Jorge... Você também é...
- Eu? Não, Macário, eu não tenho parentesco com esses dois. – respondeu Jorge Miguel, sorrindo. – Sou de outro clã. Só um amigo deles. E não se preocupe com as garotas que internamos, elas irão se recuperar depois da transfusão de sangue. A que ficou dormindo vai despertar em poucas horas, e não vai lembrar de nada, o que lhes aconteceu não passará de um sonho ruim. Tomamos cuidado para que tudo pareça apenas um acidente envolvendo animais. Depois você pode ir visita-las... Nenhuma virará vampiro.
- Mas... mas...
- Ô Macário, que parte que você não entendeu ainda? – falou Luce, olhando para o banco de trás. – Foi isso que você viu! Nós, vampiros, sugamos sangue humano através de seringas! Assim, ficam menos suspeitas para cima de nós!
- Oh, claro. – falou Andrômeda. – Exceto pelo Luce, que não sabe lidar com as seringas...
- Pare de me censurar, irmã. Já tem o que queria. O Macário está aí, com você. Só precisa de um banho, e tratar dessas feridas e se livrar desses trapos... mas antes, vamos apresenta-lo ao resto do pessoal...
- Pe... pessoal... – balbuciei. – Todos... todos são... Todos são vampiros também?
- Não, Macário, só nós três. – falou Andrômeda. – Os outros... bem, melhor que você veja com seus próprios olhos.
E nada mais disseram. O carro percorreu as vias da cidade em alta velocidade, porém dentro do limite. A cidade estava muito iluminada. Seria lindo de se admirar, não fosse o contexto bizarro da situação.
Em poucos minutos, o carro chegou a um bairro periférico, com poucas casas – o distrito industrial, com muitos galpões, indústrias, maquinários. O carro parou em frente a um galpão, com aparência de abandonado. Porém, podia ouvir sons vindos lá de dentro: tinha gente lá. Tinha luzes acesas.
Luce me passou um espelho.
- Confira sua aparência, Macário. Pelo menos o rosto tem de estar apresentável...
O rosto ainda apresentava inchaço nas partes onde recebera golpes. Mas nenhum olho roxo. Andrômeda limpara totalmente o bigode de sangue que antes corria pelo meu rosto. Nem sangramento no nariz havia.
Eu queria perguntar tanta coisa àqueles vampiros. Mas primeiro, eu tinha de... sei lá o que Luce queria que fizéssemos agora.
Desci do carro. E fui conduzido ao galpão, já podendo andar normalmente. As dores no corpo diminuíram drasticamente – devem ser as tais drogas agindo para me curar com rapidez, para eu poder enfrentar o que viria a seguir.
Luce abriu as duas grandes portas de metal como alguém abre uma cortina, em uma entrada triunfal. Estava muito eufórico, doido para contar uma novidade para quem quer que fosse – que novidade? Que um humano descobrira seu segredo. Se eu fosse mesmo um vampiro, eu não estaria doido para contar a alguém que descobriram que sou um vampiro... Quer dizer, nem tenho certeza se sou vampiro ou não...
Dentro do galpão – eu já devia ter desconfiado – estavam todos os outros monstros, aquela multidão que vinha quase diariamente ao bar. Todos os rostos com os quais já havia me acostumado. Breevort, Flávio Urso, Flávio Dragão, Âmbar, MC Claus, Morgiana, Beto Marley... e os vários outros que não decorei os nomes. Até a Fifi estava ali, viva – ainda bem, sua morte foi apenas no sonho, mas ela amarrou a cara para mim. E até o Marto Galvoni, o artista! Então, a viagem que eles disseram que iam fazer, era mentira – o final de semana inteiro, eles se encontravam na cidade!
Todos pararam o que estavam fazendo naquele instante, as conversas que trocavam entre eles, e o galpão ficou silencioso. Todos os olhares se voltaram para nós.
Então, Luce quebrou o silêncio:
- Pessoal: já não há mais segredos.
Todos arregalaram o olho.
- As barreiras caíram esta noite, amigos: está na hora do Macário aqui saber a verdade sobre nós.
Os olhos arregalados se voltaram para mim.
- Macário?! – ouvi Âmbar se manifestar. – O que houve com você?!
E todos começaram a cochichar, a sussurrar, mas o galpão recomeçou a ficar barulhento, dada a acústica do local.
- Eu... eu... – tentei falar, mas Luce me interrompeu.
- Ele já sabe. Mostrem a ele.
Eu já sei o quê?
Voltou o silêncio. Houve um grande momento de silêncio. E, a seguir, foi a vez de Flávio Dragão se manifestar:
- Uau, até que enfim.
- Podemos mesmo nos mostrar como realmente somos? – perguntou Breevort, sorrindo.
- Diante do Macário? – perguntou Beto Marley.
- Vocês entenderam, amigos. – falou Luce.
E todos, sorrindo, começaram a... a... a se transformar diante de meus olhos.
Sob as lâmpadas acesas do galpão, a multidão, de repente, começou a se transformar em... em...
Atônito, eu observava que os “monstros” começavam a se transformar em... monstros!
Além da aparência transgressora, com piercings, cortes de cabelo excêntricos, roupas, etc... Começaram a crescer chifres, orelhas pontudas, bicos de pássaro, pelos cobrindo cabeça e partes expostas do corpo, penas, escamas, caudas, dentes saindo da boca... Ninguém mais, dentro de poucos instantes, tinha aparência humana, cem por cento. Pareciam... pareciam...
Breevort adquiriu, de repente, um nariz comprido e adunco, feições de duende, e seus dedos ganharam unhas muito afiadas. Mas a tatuagem no rosto ficou.
O rosto de Marto Galvoni começou a derreter, ganhou rugas, uma aparência de bruxo.
Fifi se transformou na mulher-leopardo de meu sonho, com orelhas sob os cabelos, rabo...
Âmbar virava uma louva-deusa gigante.
MC Claus virava um ogro, de pele verde, dentro do casacão.
Flávio Dragão se transformava em... um dragão. Ou algo parecido com um dragão: virara um réptil gigante.
Flávio Urso se transformou em... não reconheci a criatura. Seu rosto ganhou um focinho, sua cabeça ganhou pelos compridos. Parecia um híbrido de urso com gorila...
Os dreadlocks do cabelo de Beto Marley viraram cobras verdadeiras.
Morgiana ganhou um rosto de tubarão.
E, logo, todos os “monstros” formavam uma verdadeira fauna de seres com chifres, rabos, presas... com rostos de animais, orelhas de animais, pelos de animais, escamas... um deles, dois, três até, ganharam asas. Mas as roupas em seus corpos ficaram intactas.
Dentro daquele galpão, agora, só quatro pessoas mantinham a plena aparência humana: Jorge Miguel, Luce, Andrômeda e eu.
Eu estava muito assustado, quase a ponto de gritar. Meu coração acelerado. Estremecia.
Isso tem de ser um pesadelo... Tem de ser um pesadelo...
- E aí, Macário, o que achou? – perguntou Luce.
Completamente atordoado, tudo o que consegui pronunciar foram cinco palavras:
- Isso é demais pra miiiiiimmm...

E desmaiei, desabando no chão. Não pude ver nem sentir mais nada do que veio a seguir...

Próximo capítulo daqui a 15 dias, com mais revelações a respeito do enredo.
Até aqui, o que estão achando? Devo continuar? Parar? Até o momento, o pouco feedback que recebi é positivo. Espero mais, para saber se estou no caminho certo ou não...
De toda forma, continuem acompanhando a história. Obrigado.
Até mais!

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