sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Livro: UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO

Olá.
Hoje, trago novamente uma resenha de livro para vocês. E, novamente, é romance brasileiro com fundo histórico. E, hoje, trago de volta aos holofotes o escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil, do qual várias vezes já falei aqui.
Luiz Antônio de Assis Brasil é reconhecido como um especialista em romances históricos, focados no passado do Rio Grande do Sul, seu estado natal. E ele demonstra isso desde seu primeiro romance publicado.
E é justamente seu primeiro romance que eu trago hoje: UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO.


UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO foi publicado pela primeira vez em 1976, pela editora Movimento. Com texto de orelha do crítico Antônio Hohlfeldt, que já destaca a importância do livro como representante da tendência – ainda tímida nos anos 1970 – do moderno romance histórico brasileiro, baseado em pesquisas historiográficas. Digo “moderno” romance histórico para comparar com o que se realizava no século XIX, na época da tendência literária do Romantismo.
Ao longo da postagem, vocês podem ver as capas de algumas das edições disponíveis de UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO.
E mais: UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO foi adaptado para o cinema! Foi em 2005, que o diretor Paulo Nascimento adaptou o romance, sob o nome Diário de um Novo Mundo – que contou com os atores “globais” Edson Celulari e Daniela Escobar no elenco. Falaremos desse filme mais tarde...
Bem. Como eu falei, Luiz Antônio de Assis Brasil se especializou em romances históricos, focados no passado do Rio Grande do Sul. Vide os outros romances que resenhei até agora: Cães da Província foca, de forma ficcional, o cotidiano da cidade de Porto Alegre da década de 1860, através da atormentada figura do dramaturgo Qorpo-Santo; Videiras de Cristal recria a dramática história da Revolta dos Mucker, na região de Sapiranga, no Vale dos Sinos; e Concerto Campestre se passa no contexto da indústria charqueadora gaúcha no século XIX (sem, contudo, especificar a região onde a história ocorre). Todos, até aqui, com certa exceção a Concerto Campestre, seguem a bula que o autor adotou desde UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO, seu primeiro romance: o foco em algum episódio do passado do Estado do Rio Grande do Sul.
Digamos assim que, desta vez, vamos retroceder no tempo: os romances anteriormente citados se passam todos no século XIX, quando o Rio Grande do Sul já estava praticamente formado, territorialmente, etnicamente, politicamente. UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO se passa no século XVIII, quando o Rio Grande do Sul ainda nem estava territorialmente definido. Mais precisamente, no contexto do jogo de tratados entre Espanha e Portugal e na imigração açoriana para a região do Rio Grande do Sul.

AULINHA DE HISTÓRIA:
O atual território do Rio Grande do Sul, com suas fronteiras bem conhecidas, só foi definitivamente definido (não é redundância) no início do século XIX. No século XVIII, a região, então pertencente ao império da Espanha, e aos poucos sendo invadida e tomada pelo império português, foi palco de uma série de conflitos entre os impérios português e espanhol. Do Paraná para cima, as novas fronteiras brasileiras, que já ultrapassavam o Tratado de Tordesilhas, e redefinidas pelos dois tratados de Utrecht (1713 – 15), já davam ao futuro território brasileiro o formato mais ou menos atual – mas sem o estado do Acre, parte do Mato Grosso do Sul e partes de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.
É que haviam duas questões complicadas a se definir na região mais ao sul: a primeira dizia respeito aos Sete Povos das Missões, localizadas no atual noroeste do Rio Grande do Sul – as reduções de jesuítas espanhóis e índios que estavam sendo invadidas pelos portugueses; e a segunda era a Colônia do Sacramento, uma povoação portuguesa fundada na região do Rio da Prata, ao sul do atual Uruguai, para tentar aproveitar o fluxo comercial realizado na região de Buenos Aires – logo, estava em território pertencente à Espanha. Uma série de tratados entre as duas potências procurou definir a quem pertencia cada possessão, por direito ou conveniência. Seguiram-se, ao logo do século XVIII, uma série de tratados: Utrecht, Madri (1750), Santo Ildefonso (1777). Cada um definia a quem iria pertencer a região das Missões e a Colônia do Sacramento. A definição só veio em 1801, com o Tratado de Badajoz: Portugal fica com as Missões, Espanha com Sacramento.
Bem. Quanto aos açorianos, eu agora sirvo-me das palavras do escritor e historiador Fidélis Dalcin Barbosa, em sua História do Rio Grande do Sul (3ª Edição – Porto Alegre: EST / Martins Livreiro, 1985, p. 37 – 39):
“Descoberto pelos portugueses, o arquipélago dos Açores foi colonizado a partir de 1439, por iniciativa do Infante D. Henrique, com elementos não só de Portugal, mais ainda holandeses, espanhóis, franceses, árabes, judeus...
Em 1620 as ilhas estavam superpovoadas, e a população vivia em penúria, enquanto o Brasil continuava sendo um imenso deserto humano.
Antes da vinda dos ‘casais de número’, açorianos avulsos chegavam ao território do Rio Grande. Em 23.8.1742, o Brigadeiro Silva Pais solicitava ao Governo de Lisboa a vinda de casais açorianos para a colonização do Sul do Brasil. Em 1748, começavam a aportar em Santa Catarina, em 1749, em Rio Grande e em 1752, no porto de Viamão, depois denominado Porto dos Casais. E daqui para Rio Pardo, Santo Amaro, Taquari, triunfo, Conceição do Arroio, Estreito e Mostardas...
O número de 4.000 casais, que aparece até em documentos oficiais, constitui ‘exagero algo fantasioso’ – diz Henrique Oscar Wiederpahn, em seu livro ‘A Colonização Açoriana no Rio Grande do Sul’. Em 1780, segundo o mesmo autor, havia aqui 10.503 açorianos, constituindo 55% da população total do território rio-grandense.
Destinados inicialmente a povoarem as Missões Orientais, cuja conquista entretanto não se efetuasse, os colonizadores açorianos inauguraram na região da atual Grande Porto Alegre e vizinhanças um sistema revolucionário no Brasil, com pequenas propriedades, modificando-se desta maneira as doações por sesmarias. O governo dava a cada casal um quarto de légua em quadrado, duas vacas, praças e construção de uma igreja, com provisão de sacerdote das próprias ilhas.
Dedicando-se à agricultura, cultivavam especialmente o trigo, que chegou a ser exportado. Depois, a ‘ferrugem’, o calote oficial das autoridades governamentais, que extorquiam o produto sem pagar o produtor, e ainda a sedução da vida mais cômoda dos criadores de gado, puseram fim à cultura do cereal, obrigando o açoriano a dedicar-se à pecuária, tornando-se então latifundiário. Nos livros de ‘Registro Geral”, guardados no Arquivo Público, consta que de 1780 a 1800, foram feitas concessões de terras a mais de cem açorianos com grandes estâncias em praticamente todos os atuais municípios da campanha. Em 1814, grande número de açorianos e seus descendentes receberam sesmarias na região missioneira.
Os açorianos formavam a elite do povo português, ‘os elementos mais excelentes da península, pertencentes à nobreza portuguesa. Dotado de natural vivacidade, trabalhador, liberal, hospitaleiro, generoso, alegre, expansivo, morigerado, caritativo, vigoroso e sóbrio, inimigo da vida militar’ – conforme diz Sousa Docca.
‘As mulheres açorianas – continua o mesmo historiador – eram em geral belas, esbeltas, virtuosas, inteligentes, de olhos castanhos, de extrema vivacidade e de grande meiguice. Muitas eram de tez alvíssima e de olhos azuis, a denunciarem a descendência flamenga dos povoadores dos Açores’.
‘As povoações açorianas – escreve Rubem Neis no seu livro ‘Guarda Velha de Viamão’ – distinguiam-se pela profunda religiosidade e pela devoção ao Divino Espírito Santo, em cuja honra faziam novenas aparatosas, pela fidelidade às tradições e à família... Após tantos anos, o povo gaúcho vive ainda em grandes parte o espírito, as tradições e a religiosidade das antigas famílias açorianas’.
Embora inimigo da vida militar, viu-se pelas circunstâncias obrigado a tomar em armas em defesa da sua nova terra. Espalhando-se pela campanha como criador de gado, cruzando-se com paulistas, lusos, espanhóis e índios, o açoriano perderá um pouco de sua nobreza, mas contribuirá para a formação do caráter do gaúcho, a um tempo altivo e belicoso, generoso e hospitaleiro (...).”
Bem, conforme demonstrado no trecho acima, apesar de algumas contradições apontadas por modernos historiadores, os açorianos deram uma grande contribuição para a formação do Rio Grande do Sul e seu povo. Contribuíram para a formação da capital Porto Alegre, contribuíram com diversas tradições que hoje fazem parte da cultura gaúcha – bons exemplos são as festividades do Divino Espírito Santo, comemoradas no mês de maio, e a dança do pau-de-fita, uma das mais tradicionais da cartilha dos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs).

DE VOLTA AO ROMANCE...
O foco de UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO está na imigração açoriana na região do Rio Grande do Sul, ainda no seu início. Se passa entre os anos de 1752 e 1753, ou seja, durante o período inicial da experiência migratória. É o período coberto pela narrativa do fictício diário do personagem principal do romance, o médico Gaspar de Fróis. O diário do personagem narra não apenas o que ele vê, mas também a tradução de seus sentimentos contraditórios; é um drama pessoal que se mistura a um drama coletivo – Gaspar de Fróis se torna testemunha, “cúmplice e partícipe de fatos que nunca desejou houvessem acontecido”.
O diário de Gaspar de Fróis é dividido em três volumes, constituindo capítulos, e cada capítulo dividido em subcapítulos – os dias em que o Dr. Gaspar escreve. O primeiro volume cobre o período de 2 de janeiro a 3 de março de 1752, quando o médico ainda está na embarcação que o leva, junto com um grupo de imigrantes, para a América; o segundo volume vai de 4 de março a 10 de junho de 1752, com o médico já estabelecido na América, inicialmente na Ilha do Desterro (atual Florianópolis, Santa Catarina), e depois em Rio Grande, já no futuro território gaúcho; e o terceiro e último volume vai de 10 de fevereiro a 20 de junho de 1753, tratando de suas peripécias pela região do Rio Grande do Sul.
Cada uma das partes do romance é entremeada com textos de um editor “contemporâneo” (datados de 1780), responsável pela publicação dos diários de Gaspar de Fróis. O curioso: os textos do editor são redigidos em português arcaico, enquanto que os textos do Dr. Gaspar estão adaptados à ortografia do século XX (a vigente nos anos 1970, é claro) – talvez para não confundir o leitor. De todo modo: a narrativa da experiência migrantista açoriana é narrada em primeira pessoa. E, tendo coberto apenas dois anos, o romance fica focado nas dificuldades e sofrimentos dos colonos açorianos, e passa muito por alto os êxitos da experiência. Ah: o título do romance é pego emprestado da última frase dos diários do Dr. Gaspar – e, é claro, se refere à quantidade de terra que, em tese, cada casal açoriano receberia em seu lote em território gaúcho (uma légua corresponde a mais ou menos 6660 metros; cada lote, então, equivalia, em média, uns 1600 quilômetros quadrados).
Bem. Gaspar de Fróis, proveniente da Ilha Terceira dos Açores, em realidade, vem para a América como um clandestino – útil por ser médico de bordo – na embarcação do Capitão Eleutério Gomes, responsável por transportar colonos até a Ilha do Desterro. O Dr. Gaspar, ainda marcado pela perda de sua esposa – morta de doença ainda nas ilhas – está acompanhado de seu criado Gaspar. Como médico de bordo, conquistou o direito de ter sua própria cabina, e leva consigo uma grande quantidade de livros em baús – seu principal passatempo é a leitura, um privilégio na época. Gaspar de Fróis consegue, inclusive, o pequeno privilégio de dividir uma refeição com o Capitão, que está temeroso quanto à reação do comandante da Ilha do Desterro, por causa dos mortos na viagem. E, nos dias que correm, o médico precisa se habituar à penosa rotina de tratar pessoas que, precariamente alimentadas e submetidas a más condições de higiene, adoecem na viagem, e não raro morrem antes de chegar à terra prometida, tendo seus corpos arremessados ao mar. Durante a viagem, Gaspar acaba travando amizade com D. Pedro Luiz de Souza, um fidalgo – o único a bordo. Após ter sido deserdado numa questão familiar, D. Pedro vai buscar a prosperidade na América, seu “quarto de légua em quadro”.
Ao chegarem, afinal, na Ilha do Desterro, os colonos são temporariamente alojados até que possam seguir para Rio Grande, daí para o interior, para a região das Missões. Porém, as notícias que correm é que as Missões ainda não foram conquistadas para o território português, logo, o período é de incertezas, se os colonos ficarão onde estão ou se irão para outro lugar. O responsável pelo alojamento dos colonos em Desterro é o Coronel Manuel Escudeiro – e Gaspar de Fróis é nomeado para auxiliar no hospital improvisado local, para auxiliar os colonos doentes a se restabelecerem antes de seguir viagem.
Algum tempo depois, Gaspar, junto com os outros colonos, embarca em outro navio e se muda para o porto de Rio Grande, com seu presídio, então presididos por Gomes Freire de Andrada. Ali, o Dr. Gaspar continua com suas atividades. Posteriormente, o médico passa um período de meio ano no sul, na região do Chuí, acompanhando uma expedição de demarcação de limites dos impérios espanhol e português, e depois retorna a Rio Grande, só para ver que a situação mudou pouco. A experiência na região do Chuí é narrada em uma carta, “encontrada” no meio do terceiro diário.
Durante a estada em Desterro, Gaspar de Fróis conhece o tenente Covas e sua esposa, D. Maria das Graças. Durante o romance, o Dr. Gaspar e Maria das Graças desenvolvem uma relação amorosa conflitante: Gaspar tenta, a todo custo, resistir às investidas de D. Maria, que está, evidentemente, interessada nele. Os dois se encontram constantemente, trocando conversas a respeito de livros e amenidades, antes e depois da mudança para Rio Grande. D. Maria chega, inclusive, a presentear o médico com um quadro, representando o episódio lendário do rapto das sabinas – Gaspar de Fróis guarda o quadro no fundo do baú. Até que, num extremo, em uma oportunidade em que o tenente Covas não está em casa, os dois acabam tendo uma rápida investida amorosa, que acaba resultando, algum tempo depois, em uma gravidez, que enche o Dr. Gaspar de temores. Mas D. Maria acaba perdendo o bebê – porém, o Dr. Gaspar não consegue de livrar da culpa.
Enquanto esses fatos acontecem, o Dr. Gaspar assiste a “adaptação” de seu povo à nova terra. O período posterior à chegada à América é de sofrimento: pessoas precariamente alojadas, aguardando o que vai acontecer, famílias se alimentando precariamente – os açorianos não conseguem se acostumar à carne bovina, que é o alimento mais abundante no local, e a indústria do charque ainda não estava estabelecida no Rio Grande do Sul. Quando conseguem um pedaço de terra, tentam se virar da forma como podem, plantando alguma coisa. Mas também assistem a uma injustiça na distribuição de terras, quando constatam que os portugueses, vindos do norte, já começam a receber sesmarias, pedaços de terra muito maiores, onde já começam a criar gado, que, mais tarde, se torna um negócio muito lucrativo.
Outro personagem interessante do livro é o padre Bartolomeu Panigay, um dos confidentes do doutor Gaspar: é prático em astronomia e fala numa mistura de português e italiano, o que já cria um pequeno aspecto cômico.
Outro drama o qual o Doutor Gaspar assiste é o de um colono, Lorvão, que sofre de demência mental. O doutor assiste, desgostoso, ao seu drama pessoal.
E o Dr. Gaspar ainda presencia a prepotência das autoridades – o melhor exemplo é o período passado nas expedições de demarcação. As autoridades espanholas e portuguesas, envolvidas nas negociações da demarcação, passam boa parte do tempo em festas e cerimoniais entremeados com exibições teatrais, contrastando com a situação das tropas.
E, em seus delírios de culpa, o Dr. Gaspar meio que “prevê” o grande ataque que os espanhóis empreenderiam a Rio Grande, em 1763, no contexto dos conflitos que se seguem ao rompimento dos termos pacíficos do Tratado de Madri.
E, ao final, não se sabe que destino o personagem teve – Gaspar de Fróis desaparece, deixando apenas seus registros escritos, o relato de seu brando suicídio moral, que acaba tomando o sofrimento coletivo como um sofrimento individual. Seu destino fica em aberto, bem como o de vários outros personagens.
A narrativa de UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO segue assim, como uma sucessão de episódios que devem ser lidos com calma, a fim de não se perder nenhum detalhe importante, apesar da grande quantidade de linhas de diálogo entre os personagens. E Luiz Antônio de Assis Brasil, já tem seu primeiro romance, demonstrava suas ambições literárias, a fim de não ficar devendo em nada a outros luminares do romance histórico, como o conterrâneo Érico Veríssimo. O estilo do autor ainda evoluiria muito, à medida que o tempo passou, e as décadas e séculos correm.
No final das contas, UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO é o retrato do artista quando jovem. E também do Rio Grande do Sul quando era jovem. É uma parte de nossa história que não pode ficar para trás. Por isso, vale dar uma procurada na biblioteca mais próxima de sua casa.

PARA ENCERRAR...
...não tem sido diferente: para terminar uma postagem sobre a História do Rio Grande do Sul, através de um relato fictício, só com outra narrativa fictícia – minha HQ folhetinesca, O Açougueiro. Até o momento, quem leu suas mais de 150 páginas – para ser mais exato, 154 – às quais acrescento mais algumas, tem dado um feedback bastante positivo. Não posso mais trair quem está acompanhando: tenho de produzir mais páginas. Tenho de estender a narrativa, e apontar para um final... Que nem eu mesmo sei quando chegará, e como será.


Na próxima postagem: Diário de Um Novo Mundo, o filme.

Até mais!

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