Hoje, segunda-feira, 15 dias depois; é dia, mesmo que na Semana Santa, de episódio inédito de meu folhetim ilustrado para adultos, MACÁRIO.
Desta vez, procurei aproveitar o tempo disponível e evitar de elaborar o episódio em cima da hora. Nos outros dias, tentarei aproveitar melhor os 15 dias entre cada capítulo.
AVISO: Leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de insinuação, de consumo de bebidas alcoólicas e de adulteração de substâncias originais.
Apesar de eu ter conseguido chegar a tempo
para a minha aula, eu mal conseguia prestar atenção nela. A ansiedade ainda não
havia passado.
Mas eu estava me sentindo melhor, ainda que
só um pouco, depois da certeza de não haver perdido mais nada do que eu havia
planejado.
Que loucura.
Visitado por duas mulheres. Depois, por um
vampiro. Depois, raptado por uma gangue de monstros anarquistas. Depois,
seduzido por mais três mulheres. Depois, fugi. Depois, embarquei, obrigado,
numa limusine mágica. Nessa limusine, recebi conselhos “amorosos” de um Duende
Rei. E escapei de todos esses episódios ileso. Ninguém quis vingança pelos
corações que parti... ainda.
Mas deve ter gente que queria explicações
pelo que fiz. Estava pensando nas garotas da gangue dos Animais de Rua,
incluindo Morgiana. Pensei em Fifi, Morgiana e Aura. Elas queriam sexo, e eu
fugi. E pensei também em Eliane, no ridículo que a fiz passar. Até em Gil eu
pensei, mas por que estava pensando também na única garota que nada quis
comigo, pois comprometida estava? E com um rapaz javali?!
Mas em outra oportunidade eu daria as devidas
explicações. Certamente, iríamos nos ver de novo, indubitavelmente.
Olho em redor da sala de aula. Quase todos os
meus colegas estavam... exceto Créssida.
Agora fiquei preocupado. Andrômeda havia me
garantido que Créssida estava bem, que já havia saído do hospital e voltado
para casa. E que não havia sido mordida pelos vampiros. Ela só recebera um
dardo tranquilizante, já haviam sugado sangue dela anteriormente. Mas e se
ela...?
Bem antes de eu formular o pensamento ruim,
Créssida entrou na sala.
Estava tão linda, com o cabelo escorrido, os
óculos, a camisa curta evidenciando o umbigo.
Fiquei aliviado, mas não muito. Créssida
entrou parecendo meio grogue. Como se tivesse levado uma pancada na cabeça, como
se tivesse tomado remédios fortes, ou como se tivesse sido zumbificada. Não era
a maneira habitual de quem trabalhou o dia todo, e à noite tinha de estudar, já
sentindo os efeitos do cansaço.
Não olhou para ninguém. Nem para mim. Apenas passou
por mim e sentou em seu lugar, como se na sala só estivesse ela e o professor.
Nem um “oi” consegui balbuciar.
Agora fiquei preocupado. Será que Créssida
não conseguiu se recuperar do trauma sofrido naquela noite? Ela estava prestes
a me denunciar como sendo o “maníaco mordedor”, e Luce teve de aplicar dardos
tranquilizantes nela. Nela e em Maura, que estava junto. Os tranquilizantes que
a jogaram no chão haveriam lhe afetado? Ou a hipnose que Andrômeda alegava ter aplicado
nela, para fazer esquecer aqueles acontecimentos, teve um efeito colateral
inesperado? E se tiver acontecido a mesmo coisa com Maura, e se ela, nesse
momento, estava atendendo os pacientes do hospital feito uma zumbi?
Por tudo isso, eu não estava conseguindo me
concentrar na aula.
Mas Macário, o que está havendo com você?!
Por que você andava desse jeito?! Por que você se preocupa demais com garotas
com as quais você só quis (em princípio) sexo?! Por que você não consegue
proteger as suas garotas?!
Saída da aula.
Fui me afastando do prédio do curso, meio
cabisbaixo. Agora, eu tinha de ir para o bar, não tinha jeito.
O que eu queria era tentar falar com Créssida
e saber se estava tudo bem, mas, em vez disso, eu tinha de ir para o bar. Os
monstros disseram que iriam para lá, hoje. Na noite anterior, só veio o Luce, e
tinha sido ele quem tinha me levado. Parece que tudo está voltando ao normal, ao
nível que eu conseguia levar a vida... ou não? Maldita hora em que resolvi
aceitar aquele pacto. Fiz um “pacto com o demônio” e, agora, anda tudo errado,
anormalmente errado...
- Macário?!
Alguém me chama, atrás de mim. Créssida! E
ela já parecia estar recuperada do transe. Me alcançou, respirando forte, a
pasta de livros mal segura em seus braços.
- Oh, Créssida! – não pude conter um sorriso.
- Oi, Macário! Você veio à aula hoje, que
bom! – ela também não pode conter o sorriso. – Acredita que só reparei agora,
na saída da aula?! Que eu vi você se afastando do prédio?
- Andei faltando, não foi? Ontem eu não
vim...
- Pois é. Mas ontem eu também não vim. Acordei
no hospital, sabe? Na terça-feira à tarde. Fui liberada ao fim da tarde. Hoje
eu tirei licença do serviço e fiquei no meu alojamento, meio de bobeira,
colocando a cabeça no lugar. Acho que dormi muito. Viu que eu cheguei meio
grogue na sala de aula, acho que na verdade eu hibernei... Quase me atrasei...
A metralhadora de palavras indicava que ela
estava bem.
- É mesmo? – foi o que consegui soltar.
- Bem... é uma longa história. Eu mesmo não
consigo entender o que aconteceu... Tudo o que me lembro é que eu... E você...
– Ela hesitou um pouco no que ia falar, e depois, foi de uma vez só, olhando
para mim: – Macário, vem cá: por que você fugiu do hospital?
- Hein? – assustei-me.
- Lembra, segunda-feira, digo, anteontem? Disso
eu lembro bem, ainda. Sei que hoje é quarta, então, foi na segunda-feira... Que
você estava com uma crise de vômito, intoxicação alimentar, algo assim? Que
você vomitou água em cima de mim? Você também deve lembrar. Minha cabeça ainda
está meio confusa, mas eu lembro que você... Você foi para o hospital ou não?
Seguiu mesmo o meu conselho? Hein?
- Eu segui, Créssida. – falei. – Eu fui.
Claro que fui. Mas não pude entrar.
- Como assim, não pode entrar?
- Bem, eu... – eu já hesitava entre contar a
verdade ou inventar uma historinha, mas fui interrompido:
- Por causa daquelas caretas horrorosas, não
é mesmo? Você também se assustou com elas, né?! Se assustou com sua própria
carranca, né? Né?! – uma voz atrás de mim entra na conversa.
Olhamos para trás: Maura.
Também estava tão linda naquele conjunto de
jeans todo azul. Camiseta azul, casaco, saia curta, tênis, tudo azul. O cabelo
ondulado e brilhante sob a luz dos postes. Porém, estava carrancuda.
- Oi, Maura! – sem querer, abri um sorriso, feliz
em ver que ela estava bem.
No entanto, Maura não sorria.
- Feliz em me ver, hein? – falou Maura, com
uma voz de repreensão. – Está feliz mesmo em me ver? Hein, senhor... Macário Monstro?
- Mac... Mons...? – fiquei desconcertado.
Senti o meu sorriso se desfazendo.
- Maura. – manifestou-se Créssida, arqueando
a sobrancelha, um indicativo de que deduzira alguma coisa. – Ele fez aquela
cara monstruosa para você também? Puxa, ele devia estar doente mesmo.
- Decerto, sim, doente, mas não tanto assim...
– responde Maura, sem desfazer a carranca. – Estava tentando comer salgadinho e
estava fazendo sujeira. E aí... ele me mostrou a carranca, e, enquanto eu
fugia, viu a própria careta no espelho e fugiu. Pra onde você fugiu, hein,
Macário Monstro? – ela me fez olhar em seus olhos. – Esse vai ser o seu apelido
agora, sabe? Em vez de Macário Mulherengo, agora você vai ser o Macário
Monstro. Ri, ri, ri...
E aí, ela deu risada. Que bom, seu bom humor
voltara. Ou será que não? Ela ria, mas seu cenho continuava franzido. E a
risada saiu forçada.
- Ei, Maura, não fale assim. Não foi tanto
assim... – falou Créssida. – Tudo bem que o Macário aqui faz uma cara feia
quando sente dor, mas não foi tanto assim...
- Claro que foi. – Maura desfez o sorriso. – Ele
não estava tão doente assim, para poder se dar ao luxo de fugir do hospital
antes do tratamento... Além de fazer caretas horrorosas, ainda fica tentando
morder pescoços de meninas inocentes.
Engoli em seco. Oh, não, ela...
- Bem, tudo bem que foi só um pesadelo que
tive naquele leito de hospital, mas... Oh, mas que ironia, eu, uma enfermeira,
acordando em um hospital, em um leito de hospital. Ainda bem que foi de um
hospital diferente do que eu trabalho... Mas, enfim. Sabe, Macário Monstro, eu
tive um sonho pesado com você, viu? Sonhei que você tentava morder meu pescoço!
Sonhei que te achei na rua, esfarrapado como um mendigo, e você tentou me
morder... mas aí a Créssida me salvou. Pareceu tão real...
Outro engulho.
- Sabe, pior que eu tive um sonho parecido! –
falou Créssida. – Sabe, Macário, sonhei que você que era o maníaco mordedor!
- Ma... maníaco mordedor, eu?!
Oh, não, será que elas estão, na verdade, se
lembrando daquela noite?!
- Mas... bem, ainda bem que era sonho.
Pensando bem, você não seria capaz de morder pescoços. Seria? Não, claro que
não. Afinal... bem, você também foi mordido, e...
Respirei aliviado. Elas tinham lembranças
daquela noite, mas encaravam como sendo apenas um sonho ruim! Menos mal. Pelo
jeito, a hipnose de Andrômeda fez o efeito desejado. Se é que foi realmente
assim.
- Só o que não consigo explicar é o que eu
estar fazendo naquele hospital! – continuou Créssida. – Não entendo por que fui
parar naquele hospital... Não entendo por que nós duas fomos parar no hospital.
Só disseram que nos encontraram desacordadas, na rua, e que nos levaram para lá
para averiguação. Disseram que demos entrada à noite, e acordamos na tarde do
dia seguinte, e nos liberaram na mesma tarde para...
- Já eu entendo. – interrompeu Maura, ainda
carrancuda. – Eu, sim, entendo como fui parar naquele hospital. Agora, sim,
posso me considerar membro do fã-clube do Maníaco Mordedor. Pois eu acordei,
sabe? Com uma marca de mordida como a de vocês! Olha aqui!
E Maura afastou a gola da blusa e mostrou o
curativo no pescoço.
Fiquei apreensivo. Será que as marcas no
pescoço dela estariam mesmo menos aparentes que as que Luce deixara no pescoço
de Geórgia, conforme Andrômeda garantira?
- Além de ter acordado no hospital, como se
tivesse levado um dardo de tranquilizante no traseiro, feito um animal
selvagem, ainda acordo com buraquinhos no pescoço! Chuparam meu sangue!... Me
anestesiaram e chuparam meu sangue... O tal maníaco tem um modus operandi muito
estranho. Em ti, Créssida, foi uma pancada na cabeça. Com o Macário, foi
derrubando no chão, foi, né, Macário? – concordei com a cabeça. – Ah. Com a
gordinha lá do hospital, como é que é o nome mesmo? Ah, Loreta, né? Com a
Loreta foi com pano com clorofórmio, e comigo foi com dardo tranquilizante na
bunda!! OH!!! Não me sai da cabeça que o Macário Monstro tem algo a ver com a
história. – Maura olhou terrível para mim. – Não sei por quê, mas sinto que o
Macário tem algo a ver com a história!
- Eu não tenho não... – menti. Eu sabia de
tudo, mas não queria contar a verdade. – Juro. O que quer que tenha te
acontecido, pode ter lhe causado confusão mental.
- Talvez seja, Macário Monstro. Não me lembro
de nada desde que você fez aquela carranca para mim... Só me lembro que voltei
ao hospital, correndo, e, depois... depois... ooh, as memórias das horas
seguintes sumiram da minha cabeça!! Quando tento lembrar, tudo o que consigo
ver é a face do Macário Monstro diante de mim... Como um vampiro...
Eu queria chorar. Mas não podia. Já havia chorado
hoje na frente de algumas mulheres-monstro. E aquelas garotas ali, o que iriam
pensar se me vissem chorando? Pensando bem, eu já havia chorado na frente de
Maura, mas não na de Créssida... enfim, algo me dizia que eu não podia chorar
diante delas.
- Ai, amiga, pare com isso. – Créssida saiu
em minha defesa. – Claro que o Macário não teve nada a ver. Que bobagem...
- É só uma leve desconfiança. – falou Maura,
olhando enviesado para mim. – Não sei por quê, simplesmente não sei por quê,
por quê, porqueporqueporquê... – e deu leves socos na própria testa, ficando a
seguir de costas para mim.
- Mas Maura... – balbuciei. – Isso quer dizer
que... você não gosta mais de mim?!
Maura me olha de soslaio, com o cenho
franzido. E, depois, muda a expressão subitamente, sorrindo para mim. Não mais
de cenho franzido. Mas com aquele sorriso zombeteiro com o qual já estava
acostumado. E, inesperadamente, me abraça.
- Ah, Macário, que é isso, cara. Claro que eu
gosto de você. Eu não sei por que desconfio que você tem algo a ver com a
história... mas também não sei por que não consigo deixar de gostar de você...
Será que é porque eu simplesmente não paro de pensar em você, seu filho da
p(...) gostoso, que até a sua imagem aparece nos meus pesadelos?!
- Comigo é a mesma coisa... – falou Créssida,
agarrando meu braço livre, e deixando a pasta cair no chão. – Seu vampiro, seu doce
vampiro.
E as duas suspiraram, agarradas a mim. Engoli
em seco. E me lembrei, de repente, de Geórgia, da noite em que voltamos a
transar – ela também me chamou de “filho da p(...) gostoso” – e da noite em que
ela fora “picada” por Luce, aquele... filho da p(...), apenas filho da p(...).
- Macário, Diz aí... – balbuciou Créssida. –
Não vai nos contar o motivo de você ter sumido nesses dois dias?!
- Eu... eu sofri um acidente. – respondi, de
pronto. – Não foi muito grave. Mas eu também acordei em um... hã... em um
hospital, mas foi em um hospital diferente do de vocês. Também fui achado na
rua, convalescente. Acho que desmaiei com o susto de uma motocicleta que quase
me atropelou... E eu quase não pude vir ao curso hoje, sabem? Eu... eu só
consegui alta hoje à tarde. Tive de vir correndo.
- Nossa, mas para quem sofreu um acidente
“não muito grave”... – falou Créssida.
- Que história confusa. – falou Maura. – Pelo
visto, você também teve a cabeça confundida. Será epidemia de confusão mental?
- Foi complicado, foi muito complicado. –
respondi. – Foi uma loucura.
- Por isso mesmo a gente quer explicações.
- Explicações que eu não posso dar nesse momento,
garotas. – falei, me desvencilhando do abraço de ambas. – Eu tenho de ir para o
trabalho.
- Macário!... – as duas exclamaram.
- Escutem: que tal vocês irem juntas ao meu
apartamento, em uma tarde? Aqui na rua, sabem... não é um momento muito
apropriado. Vai que o maníaco mordedor verdadeiro apareça para atacar vocês
duas de novo?! Vai que ele esteja rondando o campus?
- Macário?! Tem de ser no seu apartamento?! –
pergunta Maura. – Você não está pretendendo um... algo mais, não é? Macário
Monstro.
- Maura, por favor. – falei. – Minha vida
anda tão confusa quanto a de vocês. Não me encontro tão disposto ao sexo nesta
ocasião. Não é sexo. É para tentar pensar no que está havendo. Quero
explicações tanto quanto vocês. Não divido que já estejamos nas páginas do
jornal por causa disso tudo...
- Ele está certo. – falou Créssida,
recolhendo sua pasta do chão. – Melhor que pensemos nessa situação com calma,
em um lugar que, hum, possamos sentar. Seguros. Mas... Macário, tem de ser no
seu apartamento?!
- Bem, foi só uma sugestão. – dei de ombros.
- Bem, eu concordo. – respondeu Créssida. – Pode
ser. Qualquer dia desses, nós aparecemos lá para... conversar. E espero que
seja só para conversar a respeito deste surto de loucura.
- Claro que é só para conversar. Tô vendo que
tem quem pense mais em sexo do que eu... Estarão vocês dispostas mesmo a um...
ménage? – falei, fazendo um olhar sacana.
- Macário!... – as duas exclamaram.
- Brincadeira, meninas. E não se preocupem,
eu lavei e estou guardando bem as calcinhas que vocês deixaram lá.
E as três acabamos rindo, antes de nos
separarmos, cada uma para seu lado.
Mas eu, depois, fiquei cabisbaixo por causa
do apelido novo. Macário Monstro... talvez seja nisso mesmo que eu estava me
transformando, aos pouquinhos.
Os Monstros (agora eu passo a tratar deles
sem as aspas) eram “gente” de palavra (essa palavra, sim, tenho de usar entre
aspas).
Eles disseram que viriam, e eles vieram. Nem
sempre essa afirmativa foi verdadeira (ainda não esqueci que eles só disseram
que iriam viajar, no final de semana passado, e na verdade estiveram
escondidos, para me torturar). Mas hoje foi. Eles disseram que viriam, e
vieram.
Quase todos.
Não veio aquela multidão dos outros dias – os
Animais de Rua não vieram, eu não avistei nenhum dos membros (calculo que eles
representem um quarto da gangue dos Monstros). Nem Morgiana apareceu. Mas
vários dos principais, sim, vieram.
Até Andrômeda veio, escondendo a cabeleira
prateada sob a peruca rosa.
- Oi, Macário. – ela cumprimentou, com uma
expressão macambúzia.
- Oi, Andrômeda. O de sempre? – tentei
parecer natural.
- Margarita. Sim.
Andrômeda e Luce se sentaram separados, um de
cada ponta do balcão. Andrômeda, muito macambúzia. Luce, muito sorridente.
- O de sempre, Luce?
- Bloody Mary, sim.
Atendi rapidamente os pedidos. Mas notei um
ar de constrangimento. Luce e Andrômeda evitavam olhar um para o outro. Um só
olhava para suas respectivas bebidas. E a mim, só restava trabalhar como se
nada tivesse acontecido nos últimos tempos.
Hoje o trabalho não foi tão pesado. Estava
tudo, na verdade, um pouco mais calmo. Os pedidos continuavam chegando a mim
telepaticamente, sem que o cliente precise manter contato visual comigo.
Os Monstros estavam todos em suas formas
humanas, do jeito como conheci. Como haviam clientes humanos “normais” no bar,
eles tomaram a precaução de se fazerem passar por humanos excêntricos, adeptos
às modificações corporais, aos penteados esquisitos, à maquiagem pesada.
E houve revezamento no balcão. Depois de
alguns minutos, assim que terminava sua dose, um cliente saía, indo circular
pelo bar, e outro ocupava seu lugar. Apenas para puxar papo comigo. Ninguém
quis ativar o jukebox.
De alguns rostos, eu já estava sentindo saudade,
mesmo depois de passado cerca de um dia desde que nos vimos.
Ali estava Flávio Dragão, sentado ao lado de
Luce.
Ali estava o barbudo Flávio Urso, já bebendo
seu uísque com gelo.
- Hallo, Macárrio. Ouvirr falarr que você
aceitarr prropôsta de Luce...
- Ouviu? Digo, por quem você ouviu?
- Andrrômeda. Eu passarr no mansôn dela e
ouvirr seus grritos. Foi antes de virrmos parra cá. Ela grritarr muito no carra
de Luce. Aparrentemân, ela non gostarr do ideia. Ficarr até histêrrica. Olha
ela ali.
Andrômeda deu uma rápida olhada para nós, e
depois voltou a olhar para a sua taça.
- Mas Luce, olhe ali, parrece non se
imporrtarr. Olharr como estarr trranquilo.
De fato, Luce não tinha jeito de quem
recebera uma mijada há poucos minutos de um familiar.
- Bem, mas e você, Flávio, gosta da ideia?
- Eu, na verrdade, non me imporrtarr... non
fui eu quem fazerr pacto.
E, pelo jeito, Flávio Urso parecia não se
importar com nada além de seu copo de uísque. E ele sequer se vexou em engolir
a bebida com as pedras de gelo e tudo, diante de mim. A seguir, olhando para os
lados, me perguntou:
- Macárrio, você virr Morrgian?
- Morgiana? Pois é, eu vi ela hoje, mas ela
não estava... hum... tão bem. Por quê? Digo, por que quer saber dela?
- Sô parra saberr.
- Oh, mas qualquer coisa, pergunte ao Beto
Marley, ele estava junto com a Morgiana hoje.
- Estêve? Oh, cerrto.
Ali estava Jorge Miguel, de cabelo muito
penteado, bebericando seu conhaque, e me olhando com aqueles olhos vermelhos
bifurcados. Quem olhasse, diria que ele estava usando lentes de contato
customizadas.
- Ei, Macário. O Luce já veio falar com você?
Para combinar de como será o pacto...
- Sim, veio, mas conversar ainda não
conversamos.
- Como assim?
- Ele disse que queria tratar dos termos do
acordo. Mas fomos interrompidos. Aconteceram tantas coisas...
- Sei. A visita aos Animais de Rua, contra
sua vontade... Foi o Beto Marley quem me contou antes de aparecermos aqui. E
pelo visto, foi por causa do que aconteceu que a Morgiana não veio. Nem os
Animais de Rua...
Ali estava Beto Marley, falando nele, bebendo
sua cerveja.
- Ei, Macário, sabe que a Morgiana, a Aura e
a Fifi ficaram muito sentidas de você ter fugido da casa?
- Ficaram? Eu... meio que sabia. Meio que
estava adivinhando que...
- Ah, mas eu não culpo você. Com aquelas lá
não dá pra dar muito mole, mesmo. Você até que fez bem em ter fugido, ou você
poderia ser literalmente devorado, saca?
- Hã... é mesmo?
- Eu meio que sei disso, camarada. Mas, de
todo modo, te prepara que elas vão querer explicações pra tua fuga. A Morgiana
não é do tipo que desiste fácil...
- Obrigado por avisar... – respondi com um
ranger de dentes.
Ali estava Breevort, tristonho.
- Você viu a Geórgia hoje, Macário?
- Não vi... Com tudo o que aconteceu hoje...
Você soube que eu...
- As notícias se espalham como incêndio na
palha seca. Pelo menos, as que dizem respeito a ti, Macário. Mas, quanto a
Geórgia... (suspiro) Estou preocupado.
- Eu também. Mas a Andrômeda garantiu que ela
já foi para casa.
- Mas ainda assim estou preocupado. Tentei
ligar no telefone dela, mas ela não me atendeu... E se o italiano foi
procura-la para...?
- O Galvoni? Ele ainda está na cidade?
- Está, Macário. E é isso que me preocupa,
pois...
- Você não sabe o endereço da Geórgia, para
procura-la?
- Eu me esqueci... Se ela me disse onde
morava, eu me esqueci... E isso me preocupa... Snif.
Bem, o que eu podia fazer? Nem eu sei onde
Geórgia mora atualmente. Depois eu tento ligar para ela...
Oh, ali está Âmbar, acompanhada de MC Claus
e... de Anfisbena.
Hoje, MC Claus resolveu trazer a esposa
“oficial” para passar a madrugada no bar. Nos outros dias, ela não esteve
presente. Era Âmbar quem acompanhava o gorducho. Agora, estavam as duas, a
esposa e a amante. Mas parece que Anfisbena não se importava de dividir o
“marido” com a irmã.
No começo, Anfisbena só estava ali, ladeando
MC Claus, que tratava de negócios com alguns de seus colegas na mesa de sinuca.
Mas chamava alguma atenção, com suas joias, seu penteado e seu vestido diáfano.
Foi só depois que eu terminei de atender os
pedidos de todos, quando desocupei um pouco as mãos, que Anfisbena, que estava
afastada dos demais, sentou-se em uma brecha no balcão, e me chamou. Ao seu
lado, Âmbar e MC Claus.
- Oi, Macário.
- Ah... oi. Hã... Anfisbena. Âmbar. MC Claus.
Anfisbena me olhava sedutoramente. Âmbar fez
um olhar que expressava ciúme. MC Claus parecia indiferente.
- Você sabe que eu e a âmbar aqui somos...
- É, ela me contou. Ninfas...
- E você tem vinho para uma ninfa? – ela se
manifestou.
- Vinho? Eu... eu tenho. Vários tipos. Qual
você prefere?
- Me vê o mais velho que você tiver...
Corri para a prateleira onde se perfilavam as
garrafas. O mais velho, o mais velho... Passei os olhos pelas datas expressas
nos rótulos. Achei uma garrafa do que julgava ser o mais velho, dizia safra
1950.
- Aqui. – falei, já desarrolhando a garrafa.
- Beleza. Despeje aqui...
Ela sacou, não vi por onde, uma grande taça
de metal esverdeado, que colocou sobre o balcão. Não era normal que o cliente
trouxesse a própria taça, mas ela deve ter um motivo para trazer.
- Diga quando está bom...
- Pode despejar tudo.
Despejei o conteúdo da garrafa inteiro dentro
da taça. Incrível, deu a garrafa toda, sem transbordar. Não achava que daria,
mesmo sendo a taça bem larga.
Anfisbena deu uma leve mexida na taça e
sorveu um pequeno gole, para provar o vinho. Pela careta que fez, não estava a
seu gosto.
A seguir, ela enfiou os dedos dentro do
decote (oh, mas que seios!...), e sacou dali de dentro um saquinho com alguma
coisa que parecia ser uma mistura de ervas em pó. Ela adicionou ao vinho uma
pitada da mistura. Depois, da armação dos cabelos, ela tirou um objeto que
parecia uma caneta, fino e comprido, que ela usou como uma colher para mexer o
vinho. E, depois, ela bebeu, desta vez um gole longo. E, ao que parece, estava
a seu gosto.
A seguir, passou a taça para Âmbar, que
sorveu um gole longo. Por um momento, achei que ela fosse beber tudo. Mas não:
ela passou a taça, a seguir, para MC Claus, e ele, sim, tomou tudo, em um único
gole. Ou assim parecia. Porque ele, a seguir, passou a taça... para mim.
- Tome este último gole, Macário.
- Hã?! Mas...
- Pode tomar.
Eu acabei me lembrando de uma coisa. Na
semana passada, os Monstros me pagaram doses de bebida, mas ministraram drogas
nelas para me deixar vulnerável a magias de controle. Foi assim que transei com
mulheres-monstros em sonhos, foi assim que pensei que tinha virado vampiro, foi
assim que virei saco de pancada de Luce... foi assim que...
- Pode tomar, Macário. – falou Âmbar. – Desta
vez não tem drogas. Ninguém vai lhe sacanear desta vez.
- T... tem certeza?
- Vai, Macário. Eu conheço a Anfisbena. Ela
não seria capaz de...
Ainda duvidando, resolvi beber. Era só um
gole, mesmo, que havia sobrado. O máximo que podia acontecer, pensei eu, era a
Anfisbena resolver “chifrar” o MC Claus comigo no portal mental.
Bebi. E, surpreendentemente, o vinho estava
bem doce.
- Puxa!... – exclamei.
- Algo errado, Macário?
- Não, nada. O que é isso que você
acrescentou no vinho?
- Apenas uma mistura de ervas aromáticas. Nós
não tomamos vinho puro, puro, puro suco de uva fermentado, sabe? Eu acho
amargo. Gostamos de misturar coisas ao vinho. Como na Grécia antiga.
- Como na...
- Sabia, Macário, que os gregos costumavam
misturar substâncias ao vinho puro, para deixa-lo mais... ao gosto deles? Eles
misturavam ao suco de uva especiarias, resina e até gesso. E costumavam
servi-lo diluído com neve ou água do mar, dependendo das condições do dia...
- Não sabia.
- Nem eu sabia, até o casamento. – falou MC
Claus. – Esteve apreensivo. Achou que fosse o quê?
- Nada, não. – respondi. – É a primeira vez
que você traz a esposa ao bar. Pelo menos, a este bar. Sempre achei que a Âmbar
que fosse sua esposa.
- Bem, não é frequente, na verdade. É que eu
saio do escritório direto pra “night”. E só tenho minha secretária pra me fazer
companhia...
- Enquanto eu... fico em casa, à espera. –
falou Anfisbena. – Tendo por companhia as minhas irmãs. As minhas outras irmãs,
enquanto esta sortuda aqui... – olhou para Âmbar. – Hoje eu tinha resolvido ver
o que a Âmbar viu em você. Agora sei. Você, Macário, é um garçom muito
prestativo.
- Sou?
- Você é um funcionário modelo. Do tipo que
raramente se vê hoje em dia. Que atende aos outros, sem reclamar. Não é à toa
que você mereceu um gole da mistura que comumente não dividimos com outras
pessoas, Macário.
- É... é mesmo?! Bem... e o que acontecerá
agora? Digo, comigo?
- Não posso contar agora. – falou Anfisbena,
com uma piscada. – Você saberá em breve. Vamos, querido? Vamos, mana?
E os três se afastaram do balcão. Anfisbena
se virou para mim e deu uma piscada. Fiquei desconcertado.
Pelo jeito, ela tinha alguma forma de se
entreter enquanto estava sozinha em casa. Alguma forma bem safada. Ela não
parecia uma mera mulher de Atenas.
Em seguida, foi a vez de Luce ocupar o lugar
no balcão.
- Outro Bloody Mary para a saideira.
Assim que coloquei a nova dose sobre o
balcão, Luce começou a falar.
- Que moral, hein, Macário? Ser abençoado
pelas ninfas!
- Abençoado?!
- Digamos que você caiu nas graças das
ninfas. Não é qualquer um que tem o direito de tomar um gole do “adoçante” das
ninfas, com vinho! Você pode se sentir privilegiado, hein? Hein? Ah, cara,
queria estar no seu lugar.
Eu até cheguei a notar que Luce não parava de
olhar para Anfisbena. Quando não olhava para mim, de qualquer ponto do bar, ele
prestava muita atenção nos passos de Anfisbena.
- Hã... você sabe quais são os efeitos da
mistura? – perguntei, com apreensão.
- Eu não sei. Eu não tive tal oportunidade. Nem
sei ao certo. Nunca mais ouvi falar dos que beberam da mistura...
Engoli em seco.
- Macário. – continuou Luce. – Em breve as
mudanças em tua vida começarão. O que mudará a partir do nosso contratinho...
Queria tratar com você a respeito delas ainda hoje, mas... é melhor não.
- Por que não posso saber? – perguntei.
- Com tudo o que aconteceu, você deve estar
meio estressado. Raptos inesperados, intromissões... Eu mesmo fiquei chateado
com tudo isso. E ainda mais de você ter me visto sendo humilhado pelo MC Claus.
Você também riu de ter me visto com aquela bandeja de lixo sentado entre Âmbar
e Anfisbena, não foi?
- Eu... não pude resistir.
Na verdade, o que me fez rir foi ver Luce
desfazer aquele sorriso irritante, que agora ele ostentava como se nada tivesse
acontecido.
- Ele vai ver, o Duende Rei ainda vai ver o
que vai acontecer por causa disso, espere pra ver. Onde já se viu, só porque é
Duende Rei, ficar humilhando assim um pobre vampiro, só por causa dos nossos
negócios comuns?! (suspiro) Mas o que me deixou mais chateado é de não poder
falar o que queria com você. Até parece que não querem que eu converse com
você... Então, por causa desse pessoal todo, e de suas interferências, é melhor
que os próximos dias falem por mim. Mas não se preocupe, Macário, que não vai
ser nada ruim.
- Puxa, estou ansioso pelos próximos dias. –
falei, com um acento irônico.
- Vá para casa descansar, amigo. Saia daqui e
vá direto para casa. Nós nos encontraremos quando não tiver tanta gente ao
redor. Espero que não venha nenhuma mulher lhe incomodar, mas, por via das
dúvidas, feche bem as janelas, as entradas de esgoto...
- Es... tá bem.
E Luce voltou a borboletear pelo bar.
Depois desses, mais ninguém puxou papo
comigo. Nem mesmo Andrômeda. Falar, agora, só para fazer pedidos.
Bem, agora aqui estou eu, de volta ao meu
apartamento, depois de tão movimentadas tarde e noite. Pronto para deitar e
dormir.
Tomei antes as devidas precauções, conforme
Luce recomendou. Fechei bem a janela do banheiro. Tranquei as janelas. Fechei
os ralos das pias da cozinha e do banheiro. Até o ralo do chuveiro cobri com
uma tábua. Vai que alguém que pode encolher de tamanho resolva invadir meu
quarto.
Na cama, até olhei para os lados, para
verificar se eu estava mesmo em meu quarto, deitado na cama que eu sabia ser
minha.
É. Ninguém. O máximo que pode acontecer é a
minha mãe aparecer de repente, só ela possuía uma chave sobressalente desse
apartamento. O mínimo, é alguém invadir os meus sonhos. Mas, ao menos estava
mentalmente preparado para o que podia me esperar. Assim espero.
Decerto, já podia esperar que Anfisbena
apareça no meu sonho. Ainda custo a acreditar que aquela mistura de ervas seja
um simples adoçante. Mas o vinho parecia ter ficado, sim, digno de... ninfas.
Adocicado. Bom mesmo. Ainda sentia o gosto doce na boca...
Aah, Anfisbena... você é tão linda e
elegante... e que seios... você escondeu aquele saquinho de ervas no decote de
propósito, não foi? Você é como a irmã... como será que são as outras irmãs
dela? Será que são... hmm...
Eu comecei a delirar. Aquela mistura de ervas
não é adoçante, não. Eu fui drogado de novo. Fui sim... O que será que Luce
quis dizer com “nunca mais ouvi falar dos que beberam a mistura”?
Adormeci. E tendo o sorriso de Anfisbena
diante de meus olhos.
Oh, céus, não é possível que eu já esteja
desejando Anfisbena! O que está havendo comigo?!
Me perdoe, Âmbar...
Eu sou um mulherengo asqueroso...
- Macário? Você está dormindo, ainda?
Ouço uma voz melíflua. Feminina.
Aah, eu sabia. Anfisbena deve ter ativado o
portal mental. Ela estava me chamando! Deve ser um sonho que...
Mas, quando abri os olhos... eu não estava no
meu apartamento. O que eu já esperava, mas...
Tampouco parecia o apartamento de Âmbar, que
eu já tinha visto em sonhos. O local era pura bagunça. Roupas jogadas por todo
canto. Caos. Um caos que me era familiar...
E a mulher diante de mim, em roupas mínimas...
não era Anfisbena.
- Consegui, que ótimo!... Você está aqui,
Macário!...
Era Eliane, e seu cabelo bicolor.
Próximo capítulo daqui a 15 dias.
Passados 31 capítulos, como está ficando esta série? Boa? Ruim? Devo melhorar? Parar, mesmo sem conclusão? Manifestem-se! Deem pelo menos um sinal de que este folhetim está mesmo sendo acompanhado por pessoas que leem!
Até mais!
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