Olá.
Hoje,
enquanto escrevo, ainda é 8 de março, Dia Internacional da Mulher. E, para
passar esse dia, vou falar de quadrinhos. Para esta data, escolhi uma tira
bastante apropriada, pois a personagem é um ícone feminista, de certo modo.
É
tempo de trazer a vocês um clássico dos quadrinhos latino-americanos. Da
Argentina, um dos poucos países da América do Sul que levam a produção local de
HQs a sério, veio uma das tiras favoritas dos universitários, educadores e dos
que professam os ideais “de esquerda”.
Hoje,
falaremos de MAFALDA. Já não era sem tempo...
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
MAFALDA
foi uma dessas tiras que duraram pouco tempo de publicação. Foram apenas dez
anos circulando, mas é celebrada até hoje, e suas compilações vendem bem. E, nesses
dez anos, e mais alguns, a personagem-título disse tudo. Permanece congelada em
seu próprio tempo, os anos 1960, mas tudo o que disse, ou quase tudo, vale até
hoje. Uma das razões pelas quais ainda é uma tira muito estudada por
especialistas de HQ, reproduzida em livros didáticos e, principalmente,
compartilhada nas redes sociais. MAFALDA aparece em praticamente todas as
listas das melhores tiras de HQ de todos os tempos. E grande representante das
HQs intelectualizadas, categoria na qual também se inscrevem os cartuns de
Jules Feiffer e os Peanuts de Charles
Schulz.
Tudo
por conta de suas características mais marcantes: em princípio, se trata de uma
tira voltada ao público infantil, pois os personagens principais são crianças,
mas seu humor não é feito para crianças, muito embora elas possam se
identificar: é também destinado aos adultos, e seu propósito seria
perturbá-los. E também porque MAFALDA é uma contestadora – ela tem muito mais a
se preocupar que com o seu mundinho limitado da classe média. Ela questiona
tudo, as grandes questões do mundo de seu tempo – e essas questões chegaram até
os nossos dias, mais ou menos da mesma forma: violência, guerras, opressão,
capitalismo selvagem, domínio da mídia... Por isso os questionamentos de
MAFALDA valem para os dias atuais. E, para cada questão, uma resposta ou outra
pergunta ainda mais inquietante. Uma tira, portanto, inquietante.
Mérito
de seu criador, Joaquín Salvador Lavado, o Quino, que dominou como poucos a
arte do cartum e do humor intelectualizado. Se bastasse apenas MAFALDA para ele
ser reconhecido como um grande gênio do humor gráfico... mas Quino tem outros
exemplares muito vivos do que foi capaz de fazer, não apenas pelo humor gráfico
argentino, como mundial. Vários de seus cartuns são amplamente reproduzidos,
compartilhados, e se tornaram clássicos. Ele já era considerado um grande
humorista antes mesmo de dar vida a MAFALDA.
O AUTOR
Joaquín
Salvador Lavado nasceu na cidade de Mendoza, Argentina, em 1932, filho de
imigrantes espanhóis. Aos dezoito anos, frequentou a Academia de Belas Artes de
Mendoza, mas não conseguiu se adaptar às exigências da educação formal em
Artes, desligando-se da escola em pouco tempo e passando a se dedicar
integralmente aos quadrinhos e ao humor gráfico. Pouco depois, tentou a sorte
em Buenos Aires, mas não deu certo; voltou à sua cidade natal, onde trabalhou
com publicidade. Em 1954, retorna a Buenos Aires, e, afinal, consegue, na
segunda tentativa, se firmar como um dos melhores ilustradores e humoristas
argentinos – começou na revista Esto es, tendo
seu trabalho, posteriormente, reproduzido em outras publicações. Em 1963, um
ano antes da primeira aparição oficial de MAFALDA, Quino lança sua primeira
compilação de cartuns, Mundo Quino. Foi
apenas o primeiro de uma série de compilações – ao longo dos anos, é publicada
uma série que inclui: A mi no me Grite!;
Gente, Comes e Bebes; Bem, Obrigado. E Você?; Artes e Partes; Penso, Logo existo; Homens de Bolso; Deixem-me
inventar; Cada Um no Seu Lugar; Sim Amor; Que Gente Má!; Potentes, Prepotentes
e Impotentes; Que Presente Inapresentável; Quanta Bondade!; Quinoterapia;
Humanos Nascemos; Não Fui eu!; e muitos mais. No Brasil, vários dos álbuns de cartuns de Quino foram lançados
pela Editora Martins Fontes.
A
gênese de MAFALDA foi mais ou menos assim: Quino, em 1964, fora contratado por
uma agência de publicidade, a Agens Publicidad, para desenvolver uma tirinha de
HQ para servir de propaganda para uma empresa de eletrodomésticos chamada
Mansfield. A tira deveria ser centrada em uma família de classe média, a
protagonista deveria ser uma menina, e a inicial de seu nome deveria remeter à
da empresa. Desse modo, nasceu Mafalda, que nasceu já com algumas das
características que se tornariam icônicas – mas, em sua fase inicial, era uma enfant terrible, uma “pestinha”, só
depois adotando a atitude contestadora, mas filósofa.
No
entanto, a tira acabou recusada pelos jornais, e o plano de marketing foi
engavetado. Porém, a revista Primera
Plana, no mesmo ano, solicitara a Quino uma colaboração em forma de tiras –
e Quino, que tomara gosto pela personagem, e continuava produzindo suas
tirinhas por hobby, apresentou Mafalda. Assim, em 29 de setembro de 1964,
Mafalda começou a ser publicada.
MAFALDA
foi publicada até março de 1965 no Primera
Plana, passando dali a pouco para o jornal diário El Mundo, permanecendo até 22 de dezembro de 1967, quando o jornal
se encerrou. No ano seguinte, março de 1968, a publicação da tira passou para o
semanário Siete Días, e, desse modo, a
produção de Quino passou de seis para quatro tiras por semana. Outros jornais
começaram a publicar a tira, não apenas na Argentina, como em outros países da
América Latina. No Brasil, uma das primeiras publicações a apresentar tiras de
MAFALDA foi a revista Patota, da
editora Artenova, em 1973.
Porém,
Quino resolveu encerrar a tira em julho de 1973, alegando que MAFALDA já havia
cumprido sua missão para o qual foi criada. Certamente, não quis se repetir,
tal como tantos outros cartunistas. Depois de MAFALDA, continuou produzindo
apenas peças de humor gráfico, cartuns de um quadro e pequenas HQs de uma
página, com ou sem palavras, compiladas nos já citados álbuns.
Mas
não foi a última vez que Quino desenhou a personagem que lhe deu fama e alguma
fortuna. Em algumas oportunidades, MAFALDA reapareceu, como na pequena série de
cartuns que o autor produziu para o UNICEF, em que ela e seus amigos “comentam”
os artigos da Declaração dos Direitos da Criança, e em algumas ilustrações e
selos comemorativos.
Hoje,
Quino, devido a problemas oculares, precisou diminuir suas participações no
mundo das HQ, e se encontra praticamente aposentado. Mas ainda teve tempo de
colher algumas premiações por seu trabalho, e para apadrinhar alguns
quadrinhistas que logo se tornariam conhecidos – uma dessas foi Maitena
Burundarena, criadora de Mulheres
Alteradas.
A
primeira compilação de tiras de MAFALDA saiu em 1966, pouco antes do Natal, e a
primeira edição se esgotou em doze dias! E foi ainda nos anos 1960 que MAFALDA
cumpriu uma trajetória de sucesso quase ininterrupto. Em 1969, a Itália foi o
primeiro país a publicar um álbum de MAFALDA no estrangeiro, Mafalda la Contestataria, com introdução
do especialista e escritor Umberto Eco. Daí, outros países da Europa passaram a
publicar álbuns de MAFALDA, repetindo o sucesso que a tira já estava fazendo na
América Latina.
No
Brasil, MAFALDA teve seus álbuns publicados por algumas editoras, como a Global.
Desde os anos 1990, sua casa no Brasil é a editora WMF Martins Fontes, que
publica tanto as pequenas coletâneas temáticas, tanto as coloridas como as em
P&B, quanto as coletâneas gigantes 10
Anos com Mafalda – 1965 – 1973 e Toda
Mafalda, em capa dura, reunindo praticamente todas as tiras publicadas no El Mundo e na Siete Días. Abaixo, capa da edição mais recente de Toda Mafalda.
As
tiras elaboradas para a tal campanha publicitária, e mais as amostras
publicadas na Primera Plana, ficaram
para a coletânea Mafalda Inédita (saída
pela primeira vez nos anos 1990), que reúne também ilustrações de entrada para
álbuns, HQs promocionais e muito mais – incluindo a série feita para o UNICEF.
Eu
mesmo já tive sorte de ter lido uma coletânea em espanhol, reunindo o Toda Mafalda e a Mafalda Inédita, tudo em um livrão de capa dura e mais de 600
páginas. E, mesmo em espanhol, não é uma tira difícil de ler e entender, basta
apenas o domínio do espanhol, língua hermana
do português.
EXPLICAÇÃO PARA TANTO SUCESSO...
Qual
seria a melhor explicação para que MAFALDA ainda seja uma tira de sucesso? Uma
explicação foi dada por Umberto Eco, em seu artigo Mafalda, ou A Recusa: “Mafalda não é somente
uma nova personagem dos quadrinhos; é provavelmente a personagem dos anos 1960.
O adjetivo ‘contestatária’ que se usou para defini-la, não foi apenas para
acompanhar a moda do anticonformismo. Mafalda é realmente uma personagem
‘enraivecida’, que recuso a mundo tal como ele é... Nela refletem-se as
tendências de uma juventude irrequieta, que aqui assumem um aspecto paradoxal
de uma dissidência infantil, de um eczema psicológico de reação aos mass-media,
de uma urticária moral suscitada pela lógica dos blocos, de uma asma
intelectual causada pelo cogumelo atômico.”
O
bailarino Antonio Gades deu uma explicação mais simples: “Mafalda é a única
mulher que me diverte, sem me pedir nada em troca.”
Agora,
vejamos o que nos diz o especialista brasileiro Waldomiro Vergueiro, em artigo
publicado no site Omelete em 2004 – e que soube expressar muito melhor do que
eu o que MAFALDA significa:
“Uma criança que fala aquilo que pensa e por isso coloca os adultos em
situação embaraçosa. Uma menina de opinião, com uma visão bastante crítica da
realidade. Uma sonhadora. Uma contestadora. Uma cínica.
Mafalda é tudo isso e um pouco mais. Em termos gerais, é
apenas uma menina que vive na Argentina dos anos 1960, com pais normais de
classe média, que vai à escola, possui alguns amigos com quem realiza as
brincadeiras normais de toda criança e viaja com a família para a praia no
período de férias. No entanto, ela é muito mais do que esta simples descrição
pode passar. Acima de tudo, representa uma das personagens mais fascinantes que
já apareceram nas histórias em quadrinhos latino-americanas, personificando a
insatisfação frente a uma realidade social e econômica que, mais do que
respostas, apenas desperta perguntas e inquietações. Ainda assim, nesse
sentido, é muito mais que uma criança que apresenta uma postura de adulto, como
tantas outras que já surgiram nos quadrinhos: ela é a porta-voz de todas
aquelas questões que os leitores de suas tiras gostariam de ter a coragem de
colocar para o mundo, mas que nem sempre conseguem fazê-lo.
(...)
Muito existe a dizer sobre o mundo de Mafalda.
Muito a ser analisado, tão complexas são suas inquietações e as relações que
desenvolve com a família, com os amigos e com o mundo em que vive. Trata-se de
uma história em quadrinhos povoada principalmente por crianças, mas não é
exatamente uma série para crianças. Embora os pequenos possam ler as tiras de
Mafalda e se identificar com as preocupações e desencontros de seu mundo
infantil, o público da menina é mesmo composto por leitores adultos, que
conseguem – ou, pelo menos, tentam... – entender sua posição em relação às
relações de poder na sociedade e à opressão dos mais fracos pelos mais fortes.
Pois em Mafalda nada é simples:
quando pensamos que sua posição está firmada sobre um determinado assunto, ela
nos surpreende com um aspecto inusitado da questão, com uma pergunta
bombástica, com uma expressão de enfado, de asco ou de pena frente a uma
situação ou personagem específicas. O desenvolvimento da tira faz aos poucos
com que ela evolua, amadureça em sua visão de mundo, perca algumas de suas
características – em geral, as mais infantis –, que são assumidas pelas demais
personagens.”
E vamos terminar com
um pensamento do escritor argentino Julio Cortazar: “Aquilo que eu penso de Mafalda não tem nenhuma importância. Realmente
importante é aquilo que Mafalda pensa de mim.”
FALANDO UM POUCO DA TIRA AGORA...
Depois
de ouvirmos os intelectuais, passemos agora aos aspectos de um fã. MAFALDA é
uma das influências que eu, Rafael Grasel, tenho no meu próprio trabalho de HQ.
Quando vou desenhar minhas tiras, sigo muito da cartilha que Quino adotava.
As
tiras de MAFALDA seguiam o tamanho normal das tiras dos anos 1960, maiores que
as atuais – o espaço de publicação de quadrinhos nos jornais era maior que o de
hoje. E, muitas vezes, as piadas foram desenvolvidas em até sete quadrinhos por
tira, espremendo os personagens em espaço muito exíguo, muitas vezes adotando
ângulos de visão insólitos, em um estilo de desenho detalhista porém
iminentemente pessoal, e com textos muito extensos apertando os personagens.
Além disso, as tiras são organizadas em arcos, formando sequências, às vezes
interligadas em uma e outra, dependentes entre si.
Bem.
O universo de Mafalda é perfeitamente bem construído, pois é um mundo familiar
ao leitor de praticamente qualquer parte do mundo. Como já dito anteriormente,
Mafalda é uma menina de uma família de classe média da Argentina dos anos 1960.
Quando a tira começa, ela tem seis anos de idade. Aparentemente, ela tem tudo
para ser uma menina feliz e despreocupada: mora na cidade, em um apartamento,
junto a pais amorosos, que praticamente não tem motivo para se desentender;
ganhou um irmãozinho com quem se dá bem em boa parte do tempo; ela brinca na
praça com os amigos (muitas vezes, de bangue-bangue), vai para a escola, faz as
tarefas, passa as férias na praia, é fã dos Beatles, espera por presentes no
Dia de Reis (na Argentina, as crianças ganham presentes em janeiro, no Dia de
Reis, ao invés de dezembro, no Natal), e gosta de ler gibis, assistir televisão
e ouvir rádio. Mas sua vida não é exatamente normal, não apenas por causa de
sua extrema sensibilidade aos problemas mundiais, às mudanças de comportamento
de sua época e às incertezas com relação ao próprio futuro, que a leva a fazer
perguntas desconcertantes aos pais. Na verdade, ela não parece estar realmente
feliz em sua realidade, que chega até ela através do rádio e da TV – como é
possível que ela esteja feliz enquanto há gente passando fome e frio e se
matando em guerras ao redor do mundo que um dia lhe pertencerá? Não por acaso,
ela é uma contestadora. Ela tenta achar explicação para os grandes conflitos
mundiais – Guerra do Vietnã, polarização entre Estados Unidos e União
Soviética, Conflitos entre árabes e israelenses – ao mesmo tempo que não
consegue se conformar com a sua própria vida, tal como seus pais. Seus pais bem
que tentam explicar o que acontece à filha, mas frequentemente acabam não se
dando bem. No fim, ela é quem acaba dando uma resposta lúcida.
Á
primeira vista, Mafalda adota uma posição político-social pacifista e
democrática em suas opiniões – porém, não é partidária do comunismo (Fidel
Castro e Mao Tsé-Tung ainda assustavam o mundo). Está sempre fazendo
questionamentos de grande magnitude diante de um globo terrestre – certa vez,
chegou a colocar o globo de cama, alegando que o mundo está muito doente, em um
dos mais icônicos arcos da personagem. Fica muito triste ao ver uma criança
pobre mendigando pelas ruas – basta cruzar com um mendigo que a brincadeira
antes tão divertida acaba. Porém, sua posição política pode mudar diante do
maior terror da menina: um prato de sopa. Na época, era muito comum que cada refeição,
almoço e jantar, começasse com um prato de sopa antes da refeição principal.
Mas Mafalda odeia sopa (talvez porque as sopas que sua mãe prepara são,
fundamentalmente, aquelas de pacote, industrializadas), abrindo espaço para
seus maiores embates com a mãe. Só de falar em sopa, ela se opõe, por exemplo,
à liberdade de imprensa...
Os
pais, é claro, são as maiores vítimas de suas inquietações. Através de pequenas
pistas nas tiras, ficamos sabendo que seus nomes são Pelicarpo e Raquel. O pai
é um funcionário de uma empresa de seguros, com pretensões modestas, preocupado
com o corpo e os efeitos da idade e amante da jardinagem (ele sai do sério
quando formigas atacam suas plantas); e a mãe, dedicada ao lar, sempre
atarefada nos afazeres domésticos.
Mafalda
não consegue se conformar com o fato de a mãe ter optado abandonar os estudos
para se casar e se dedicar à família, em uma época em que as mulheres estavam
conquistando maiores espaços na sociedade; por isso, a menina almeja não ser
como a mãe, e a vê como uma mulher medíocre. E, muitas vezes, quando vai
consolar a mãe a respeito de algum problema, Mafalda acaba dando uma resposta
que não representa bem uma palavra de consolo...
Os
embates mais divertidos são mesmo com o pai, sempre colocado contra a parede
pela filha. Um dos primeiros grandes embates entre pai e filha foi pela
aquisição de um aparelho de TV – Mafalda se sente deslocada por não ter um
televisor em casa, numa época em que a TV já era um artigo presente em todas as
casas; o pai, criado ainda na época do rádio, se recusa a comprar um aparelho,
e tanto é chateado pela filha que, afinal, acaba cedendo. E, é claro, isso
acaba abrindo espaço para Mafalda fazer questionamentos sobre o papel da mídia,
da publicidade, da imprensa, à época mais preocupada em atrair audiência do que
oferecer programação de qualidade.
Algum
tempo depois, após uma sugestão de Mafalda, o pai resolve adquirir um carro,
sonho da classe média. E isso acaba abrindo mais possibilidades para piadas.
Mas,
apesar desses embates, Mafalda ama seus pais, e não abriria mão deles. Tanto
que uma de suas maiores inquietações anuais é a dúvida do que dar de presente
de Dia dos Pais/Mães. E sempre os cumprimenta, das formas mais inesperadas, com
a chegada da primavera. Na escola, ela procura ser uma estudante aplicada, mas
acaba também colocando as professoras contra a parede com suas “perguntinhas”,
numa crítica ao sistema educacional de então, tradicional e baseada em
memorização de conteúdos e comemoração de datas cívicas.
No
início, Mafalda, como já dito, tinha uma atitude de criança terrível, de
pestinha – como no célebre arco do traje espacial movido a borrifador de soda
limonada. Mais tarde, passou a entrar mais “na linha”, a adotar uma atitude
mais filósofa. Esse papel passou para os outros personagens da tira.
O
irmão mais novo de Mafalda, Guile, nasceu em março de 1968, após a transferência
da tira para a Siete Días. Através
dele é que percebemos a passagem do tempo na tira, e também a evolução do traço
de Quino. O fofinho Guile é o pestinha da turma: suas brincadeiras são do tipo
que acaba causando prejuízos aos adultos, principalmente à mãe. Não larga a
chupeta, é ciumento com relação à mãe (disputa muito sua atenção com o pai) e é
fã de Brigitte Bardot, a musa dos anos 1960. Ah, e ao contrário da irmã, adora
sopa. Ele assume também parte da atitude contestatória de Mafalda, no momento
em que cresce e começa a falar. Com Guile, Mafalda passa a uma posição similar
a dos pais – agora é ela quem tem de responder as perguntas do sabidinho Guile,
e tem de ouvir suas respostas capciosas, tal como fazia com os pais.
Agora,
falando dos amigos de Mafalda, os que realmente roubam a cena a cada aparição,
sozinhos ou com a protagonista. Eles praticamente são um contraponto à Mafalda,
e vivem se conflitando, apesar de serem inseparáveis, e de Mafalda guardar por
eles um grande carinho.
Começando
com Filipe, o primeiro deuteragonista da tira, que apareceu em 1965. Morador do
mesmo prédio que Mafalda, e o maior interlocutor da menina, Filipe é um ingênuo
sonhador. Tem sempre planos grandiosos, que acabam frustrados pelos amigos. É
apreciador de cultura, gosta de jogar xadrez e grande fã do Cavaleiro Solitário
(Lone Ranger), a conhecida tira de faroeste das HQ. Em um período da tira,
acaba se interessando por uma menina do bairro, mas sofre em não conseguir se
declarar para ela. Apesar de não ser um grande fã da escola ou dos deveres de
casa (sua imaginação fértil permite imaginar, por exemplo, esquemas para não
ter de ir para a aula), é um estudante dedicado e o que menos trabalho dá às
professoras – que diferença de Mafalda, que também vitima as professoras com
suas “perguntinhas”, ou dos outros amigos. Filipe é o personagem com quem Quino
mais se identifica.
Manolito
também aparece em 1965. Ele é um contraponto de Mafalda e Filipe por ser um
capitalista e ter uma visão mais materialista da vida. Filho de Don Manolo, um
imigrante espanhol dono de um armazém, Manolito herdou do pai a vocação para o
comércio. Manolito ajuda o pai no armazém, é um trabalhador abnegado, incapaz
de tirar férias, e apaixonado por dinheiro – seu sonho é abrir uma cadeia de
supermercados quando crescer. Sua visão materialista do mundo beira a
brutalidade, a ponto de Manolito parecer bronco e um tanto burro, sempre
tirando notas baixas na escola; e também possui um pensamento conservador e
anti-utópico – por exemplo, Manolito abomina os Beatles, que seus amigos
adoram. É um admirador dos norte-americanos, por sua riqueza, e vive sempre
inventando jogadas de marketing para induzir seus amigos a comprarem coisas no
armazém de seu pai – apesar de os produtos vendidos, muitas vezes, apresentarem
qualidade duvidosa. Dentre essas jogadas, está a de grafitar propagandas do
Armazém Don Manolo nas paredes. A estupidez de Manolito acaba fazendo-o se
tornar um alvo constante das zoeiras de Susanita.
Falando
nela... Susanita também apareceu em 1965. A melhor “amiga” de Mafalda
representa a mulher burguesa e alienada, preocupada apenas com as suas
aspirações mundanas, sem olhar para os problemas sociais – ao contrário de
Mafalda, que representa a mulher liberada em busca da igualdade com os homens
dentro da sociedade, e preocupada com os problemas mundiais. Susanita tem um
objetivo de vida bem claro: casar e ter filhos – e passa a maior parte do tempo
falando apenas nisso, nos seus futuros filhinhos, no que vão ser quando crescer,
etc. Quando chamada a opinar sobre um assunto global, ela sempre dá uma
resposta inapropriada – e, muitas vezes, acaba se dando mal. Susanita ainda é
faladeira, fofoqueira, egoísta e vive zoando da inteligência limitada de
Manolito, da ingenuidade de Miguelito, das aspirações de Filipe e da generosidade
de Mafalda.
Miguelito
apareceu em 1966. Ele e Mafalda se conhecem na praia, e ele acaba incorporado à
turma. O menorzinho do grupo – antes do nascimento de Guile – é a representação
da inocência, sempre tentando compreender o mundo e se admirando com suas
contradições. Em verdade, Miguelito é um personagem difícil de definir, pois
hora consegue respostas lúcidas e opiniões fortes (Miguelito é neto de um
italiano ex-partidário de Mussolini, e costuma levar a sério suas opiniões),
hora se deixa levar pela própria ingenuidade. De todo modo, ele considera o
mundo como se ele próprio fosse o centro do universo.
A
última aquisição à tira, surgida em 1970, é a pequena Libertad (Liberdade).
Assim como Miguelito, Mafalda a conhece nas férias, na praia. Libertad é meio
que uma metáfora da própria liberdade: além de ser muito baixinha – menor até
que o pequeno Guile – é um permanente incômodo para os adultos, ainda mais em
uma época que assistiu à ascensão de ditaduras e regimes totalitários – a vez
da Argentina iria chegar logo. Filha de uma mãe hippie, que sustenta a casa com
traduções de livros franceses, e de um ativista político, Libertad é
impertinente, falante, e, apesar de afirmar que gosta das coisas simples, fica
dando respostas complicadas e furiosas para as questões. Praticamente, um algoz
para Mafalda.
Para
quem não conhecia a tira ainda, eis aqui as características que a tornaram
conhecida. As tiras podem ainda ser classificadas de acordo com o tipo de humor
apresentado. Os questionamentos de Mafalda, diante do globo terrestre, da
televisão, do radinho ou de um prato de sopa, rendem tiradas geniais, do tipo
que muitos de nós gostaríamos de ter feito antes. Mas também há espaço para um
humor que não envolve política ou crítica social – aquele mais ingênuo, típico
das tiras norte-americanas, envolvendo situações domésticas. Às vezes, Quino
faz brincadeiras com os elementos das HQ, com as imagens, com os balões, com as
onomatopeias... tudo para dar mais sentido ao humor. Algumas gags seguem o
estilo “triste, mas verdadeiro”, que, antes de serem engraçadas, são fortes e
refletem a dura realidade – como a clássica tira em que Mafalda cai na risada
ao ler o conceito de “democracia” no dicionário. Em grande parte dos casos, o
humor ácido de Quino não possui um alvo específico. MAFALDA se dirige à
sociedade em geral, quase nunca a uma única pessoa ou grupo, como se fosse ela
culpada por tudo. MAFALDA surgiu em uma época em que seu país experimentava uma
democracia frágil e cambaleante, e a preocupação com o futuro é uma constante,
com uma nova bomba atômica podendo ser jogada a qualquer momento. E ficamos nos
perguntando: como será que Mafalda teria atravessado os anos 1970 e 1980? Como
teria sobrevivido à ditadura militar instaurada em seu país? Como estaria vendo
hoje a era dos smartphones e da internet? Pensando bem, até que foi bom que
Quino não tenha se dobrado às exigências do mercado de HQs. Resolveu parar na
hora certa.
De
toda maneira, motivos não faltam para uma pessoa democrata ter uma coletânea de
tiras de MAFALDA em casa. Seja por causa do humor de questionamento, seja pela
construção dos personagens, seja pela forma como Quino trabalha os quadrinhos.
Foram 10 anos bem vividos. E não é uma tira difícil de encontrar nas livrarias.
Até mesmo nos livros didáticos dá para encontrar amostras notáveis. E, ao
contrário do que alguns dizem, MAFALDA não é uma tira de doutrinação às ideias
de esquerda. Nem ela nem Quino devem ter feito por querer.
É
isso. Eu acho. Se tiver algum erro ou informação que deixei escapar, me avisem nos comentários para eu corrigir...
Imagens: internet. Fontes: site Omelete (www.omelete.com.br/) e Enciclopedia dos Quadrinhos, de Goida e André Kleinert, edição de 2011.
PARA ENCERRAR...
...para
este dia da Mulher, pensei em fazer uma ilustração especial. Escolhi como
porta-voz a minha Mafalda, a Letícia.
Este
anos, pensei nas mulheres operárias, que trabalham na construção civil, e
também nas possíveis garotas que mexem com Lego e jogos de montar (quié, quem
disse que Lego é exclusividade dos meninos? Por acaso não existem os kits de
Lego voltados especificamente para as meninas?!)
Mas,
bem... reconheço que a ilustração deixou a desejar, pois foi arte-finalizada a
caneta esferográfica, e nem me dei ao trabalho de colori-la. Bem, fica como uma
ilustração para imprimir e colorir. Também pode ser vista no blog da personagem
(https://leticiaquadrinhos.blogspot.com.br/).
Desculpem
o mau jeito. Ultimamente estou sob pressão, em um estado de progressiva
depressão.
De
todo modo, Feliz Dia da Mulher às mulheres leitoras deste blog. Enquanto ainda
é dia 8 de março.
Até
mais!
Um comentário:
Bah, rapaiz! Saudades da Letícia!!!
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