Hoje,
para variar um pouco os temas dos quais ultimamente tenho tratado, quando trato
neste blog, e quando escrevo neste
blog pecador, vou falar de mangá, do qual não trato há muito tempo.
Hoje,
trago a vocês algumas considerações sobre um lançamento não muito recente. Há
tempos adquiri este mangá, mas só agora tomei vergonha na cara para escrever a
respeito dele.
Hoje,
vou falar de LOVE IN THE HELL, outro daqueles mangás feitos para questionar
tudo o que sabemos a respeito da espiritualidade e dos assuntos do além,
através de uma mordaz sátira aparentemente descompromissada – tratando, desta
vez, da concepção do inferno.
LOVE
IN THE HELL, de autoria de Reiji Suzumaru (roteiro e desenhos) foi publicado no
Japão em 2011, na revista Comic High!, da
editora Futabasha, sendo compilado depois em três volumes. Até onde pudemos
apurar, o mangá ainda não ganhou versão em anime ou filme – e nem temos
informações a respeito de outros trabalhos do autor. E, dado seu teor,
dificilmente iria ganhar versão em anime... No Brasil, os três volumes do mangá
foram publicados pela editora JBC entre fevereiro e abril de 2015, ano em que a
editora bateu seu recorde de lançamentos nas bancas (no mesmo mês, a JBC ainda
lançou Ageha e Zetsuen no Tempest; já no ano, a editora lançou 28 títulos, como All You Need is Kill, Codename Sailor V e The Seven Deadly Sins, além de novas
edições de Hellsing e Chobits; e anunciou vários outros, como
Akira e Ghost in the Shell, que seriam lançados nos anos seguintes).
LOVE
IN THE HELL (literalmente, “amor no inferno”) brinca com os conceitos de
inferno e punição das almas pecadoras, que no Japão, possui uma concepção um
pouco diferente da que usamos no ocidente. No universo dos animes e mangás, já
é bem comum observarmos que os japoneses praticamente ridicularizam as
concepções de céu e de inferno e as instituições que consideramos sagradas,
como os símbolos cristãos e os anjos, de uma forma que deixa os religiosos do
Ocidente se sentindo ofendidos. Principalmente na hora de incluir anjos nas
histórias. Que dizer então dos demônios? Bem, o universo dos mangás é o
universo artístico mais livre que existe – no Japão, dá para tratar
praticamente de qualquer coisa, até de assuntos tabus, desde que respeitada a
faixa etária do público a que se destina, e algumas poucas limitações das
revistas que publicam essas histórias – depois, é o público que decide se a
história continua como está, muda para continuar ou simplesmente para.
A
advertência inicial é que LOVE IN THE HELL não é um mangá a ser levado a sério.
Trata-se de uma comédia de humor negro, estilo gore, misturando também erotismo
e terror de mutilação - por isso, não recomendado para menores de 18 anos. Sim, trata-se de um daqueles mangás que abusam
gratuitamente do fanservice tão criticado pelos puristas dos quadrinhos: tem
cenas de mutilação, cabeças explodindo, violência caricatural, insinuações
sexuais e garotas com pouca ou nenhuma roupa. Mas, em se tratando do contexto
da história, até que o fanservice se justifica.
Em
LOVE IN THE HELL, somos levados a uma ideia totalmente particular de seu autor
de como é o inferno: é um lugar de sofrimento e de punição das almas pecadoras,
sim, mas não é tão ruim quanto pintam os religiosos. Tire quase todo o fogo e o
enxofre, e acrescente algumas cidades e algumas garotas gostosas de roupas
muito curtas, e aí se pode ter uma ideia de como é. O mundo infernal, na
verdade, é construído de modo a parecer com o que é familiar aos leitores. Com
alguma sorte, até dá para levar uma vida normal, parecida com a do mundo dos
vivos – mas tendo de pagar um preço
alto por isso.
O
personagem principal é Rintarô Senkawa, um rapaz de 27 anos que, no começo da
história, morre em um acidente doméstico. Ele acaba acordando, nu, em uma terra
árida e pedregosa, com o céu sempre nublado, estranhos insetos e poços de lava
esparsos; e é saudado por uma jovem garota, de chifrinhos na testa e usando uma
sumária roupa de couro preto – essa que aparece nas capas. A garota diz que
Rintarô está morto, e no inferno – algo que ele custa a acreditar. E se
apresenta: se chama Koyori, uma oni (demônio) de apenas 17 anos. Ela é quem vai
se encarregar, dali em diante, da punição da alma de Rintarô.
O
inferno, segundo Reiji Suzumaru, funciona assim: cada pecador que ali chega
fica aos “cuidados” de um oni, que se encarrega de lhe aplicar violentos e
dolorosos castigos físicos, à base de porretes com espinhos, lâminas e máquinas
de tortura, como uma forma de pagar seus pecados em vida. Às vezes, os
pecadores acabam feitos, literalmente, em pedaços, mas seus corpos se restauram
no dia seguinte, inteiramente curados, prontos para outra sessão. Os pecadores
e os onis vivem em cidades, parecidas com as nossas: com casas, comércios,
serviços de todo tipo. Os pecadores tem necessidades como as que tinham na
terra – comer, vestir, consumir equipamentos eletrônicos, etc. Mas, para
poderem adquirir bens para se sustentar, precisam pagar com dor e sofrimento –
e, após cada sessão de tortura, os pecadores recebem carimbos, que podem ser
trocados por dinheiro para cobrir suas necessidades! A moeda corrente no
inferno é o “dóilar”, e há, além das torturas, várias outras formas de ganha-la.
E o sofrimento não dura para sempre – assim que o pecador consegue expiar seus
pecados, ele tem direito a sair do inferno. Os pecadores também podem se
relacionar com outros em sua situação, mas não podem confiar muito – o próprio
Rintarô acaba descobrindo, da pior forma, que pode ser ludibriado por quem
menos desconfia. Ainda por cima, os pecadores são monitorados – eles são
tatuados com o símbolo de seu oni e, caso se separem dele, podem depois ser
encontrados via aplicativo de celular. E, com sorte, os pecadores viram amigos
de seus carrascos – como um sinal de confiança, os pecadores devem doar parte
de sua própria pele, que os onis usam para fazer roupas e acessórios para si.
Os onis, apesar do sadismo de seus atos, e de muitas vezes terem aparências
grotescas e/ou monstruosas, não são necessariamente maus – ou, no popular, os
diabos não são tão feios quanto se pintam. Os onis se portam como funcionários
assalariados quaisquer, como na Terra, e também tem suas necessidades e suas
particularidades psicológicas. Em alguns casos, os onis precisam de um
estímulo, ligado a um trauma, para desenvolverem seus corpos e ficarem
musculosos. Alguns chegam a ser até boas-praças e se recusarem a torturar seus
pecadores – mas há um risco: caso resolvam ter a “refeição banida”, de acordo
com a expressão do mangá, o pecador não pode reencarnar, e o oni pode se
transformar em um monstro devorador de cérebros. Mas, claro, isso tudo é na
parte mais “branda” do inferno, onde são mandados pecadores com delitos
menores; existe ainda o Abismo, um local mais terrível, abaixo do inferno onde
Rintarô é enviado, reservado aos assassinos e estupradores, onde as torturas
são piores, e as criaturas ainda mais grotescas.
Em
resumo, é isso...
Voltando
aos personagens principais. Rintarô e Koyori desenvolvem uma relação um tanto
atípica ao longo do mangá, indo da desconfiança à amizade e, finalmente, ao
romance.
Rintarô
começa a ter problemas para expiar seus pecados, em particular porque nem sabe
porque foi mandado para lá – ou simplesmente não se lembra. Ainda por cima, o
cara mal consegue conter seus impulsos masculinos – vive se engraçando com as
mulheres sensuais que aparecem diante dele (e, logo no início do mangá, tenta
abusar da própria Koyori, mas a visão de uma tortura o contém). E ainda agride
as mulheres feias. É relutante em aceitar ser torturado por Koyori, que, apesar
de ser uma demônia, é novata no seu ramo, uma garota insegura e que se esforça
em fazer as coisas direito. E ela demonstra gostar muito de Rintarô.
Mas
ele mal colabora. Faz o possível para escapar das torturas, e ganhar dinheiro
sem sofrer mutilações. Assim que sabe o mínimo sobre a vida no inferno, Rintarô
procura driblar essas regras. Ainda por cima, ele comete transgressões que
diminuem sua expiação: está sempre ajudando outras pessoas, desde atos de
caridade (mesmo com o risco de ser enganado) até salvar a vida de pecadores e/ou
onis prestes a ser agredidos. Ele salva a vida de Koyori diversas vezes – e ela
também o salva algumas vezes.
Como
dito, Rintarô mantém relações diversas com outros pecadores e onis. Outra oni
importante que aparece com frequência é Momone, a melhor amiga de Koyori, mais
sensual, mais talentosa em matéria de torturas, e mais fria, ao ponto da
insensibilidade – a todo instante, ela censura o comportamento de Rintarô, além
de dar melhores explicações sobre o funcionamento das coisas no inferno. Sob os
“cuidados” de Momone, está Yukihiko, um masoquista (portanto, mais abonado),
que se torna o melhor amigo de Rintarô – e ele ensina a ele as diversas outras
formas de ganhar dinheiro sem ser torturado, ainda que acabe colocando o coitado
em encrencas – como no episódio em que os dois invadem um banho feminino.
Dentre
essas formas de ganho sem dor de “dóilares”, uma delas é o trabalho honesto –
Rintarô consegue um emprego em uma empresa de entrega de mercadorias, o que o
deixa feliz... até descobrir que os pecadores só podem trabalhar por três
meses! Outra forma é participando de atividades ilegais, como lutas
clandestinas; ou prestando favores remunerados para outras pessoas e onis, como
a colheita de um tipo de planta canibal, que se alimenta de sêmen humano. Também
é possível um pecador substituir outro em sessões de tortura... mas com más
consequências, tanto para o pecador quanto para o oni. Mas, no final, Rintarô
acaba descobrindo, através de um árduo aprendizado, que compensa mais ser
torturado pela sua oni.
E
não são poucas as vezes que Rintarô acaba sacaneado em sua nova condição – o
que garante bons momentos de humor. Logo no começo, Rintarô ganha de Koyori,
para cobrir sua nudez, um Ipod; só depois de sua primeira tortura é que ele
ganha uma cueca, com uma estampa ridícula. Mas, depois que consegue emprego na
empresa de entregas, Rintarô passa a usar, pelo restante do mangá, um macacão.
Na tal empresa de entregas, ele conhece – e se apaixona – por Mako, e seu
rostinho bonito... até descobrir que se trata de um rapaz com feições
femininas, homossexual! A humilhação mais grosseira ocorre quando Rintarô vai
em um prostíbulo, e é enganado pela prostituta do local, tendo todo seu
dinheiro roubado – mas, depois, Rintarô tem a chance de fazer a prostituta
pagar por isso. E tem várias outras situações em que Rintarô passa por diversas
humilhações...
Outros
personagens interessantes que cruzam o caminho de Rintarô e Koyori, além de
Momone, Yukihiko e Mako, podemos citar: Kurio, o irmão de Momone, um oni magérrimo
e avesso à violência e que, ao invés de torturar seu pecador, é torturado por
ele (mas, depois de presenciar Momone prestes a ser agredida, passa por uma
bizarra transformação); Tiko, uma oni sensual (mais até que Koyori e Momone juntas)
e meio avoada, parecendo viver em um mundo próprio; e a misteriosa Misa,
pecadora que tem relação com o passado e o pecado de Rintarô.
Aliás,
o motivo de Rintarô ter sido mandado ao inferno é o grande mistério do mangá.
E, uma vez que ele tenha descoberto isso, com a ajuda de um velho oni ermitão
que mora em uma montanha, ele ganha não apenas a oportunidade de reavaliar sua
vida, mas também descobre que sua nova vida acabou sendo até melhor que a que
ele levava quando estava vivo. Tal descoberta também pode mudar seus
sentimentos por Koyori...
...algo
que em vários momentos do mangá já estava sendo observado, e praticamente
justifica seu título. Bem, quanto à parte da doação de pele, o máximo que Rintarô
consegue é um pedacinho suficiente apenas para fazer um enfeite de celular...
mas é o suficiente para agradar Koyori. Ainda há um episódio, bastante emotivo,
em que Rintarô acompanha Koyori numa compra de roupas, e lhe dá algumas dicas
de uma roupa perfeita. Nessa parte, os leitores ganham uma aulinha sobre como
agradar uma garota em uma loja de roupas...
Bem.
LOVE IN THE HELL é um mangá surpreendente. Pode surpreender quem espera um
mangá fora do comum. O fanservice acaba sendo um detalhe, se o leitor prestar
bem atenção na história, que é muito fácil de entender. Por trás de uma
aparente comédia de terror, dá para se extrair uma inusitada história de
aprendizado, através da jornada de Rintarô à procura de seus motivos para estar
no inferno – ele se transforma, literalmente, no fim da narrativa. Há momentos
polêmicos, como uma referência (negativa, é claro) ao abuso sexual de menores,
e uma criança que tem o cérebro extraído.
Mas
pode agradar quem já está acostumado ao terror em quadrinhos. Os desenhos de
Suzumaru são bem trabalhados e graciosos, com bom domínio de anatomia –
principalmente porque alguns momentos de tortura e mutilação são anatomia pura,
com músculos expostos, vísceras saltando, cabeças explodindo... Tem sexo?
Discretamente, mas tem. Tem nudez? Claro que sim. Pelo menos três vezes
flagramos Koyori nua ou seminua. E nudez masculina? Tem também, bastante
discreta. Tudo empanado em um típico humor grosseiro japonês.
A
história é construída de modo a ser simples de entender, e agradável de ler –
cada volume pode ser lido em menos de 30 minutos. Os balões de fala são
enxutos, e os textos breves. Não é complicada como tantos outros mangás
disponíveis no mercado. Mas peca (que ironia) com seu final apressado, que
parece não ter amarrado todas as pontas soltas; na indefinição no destino de
alguns personagens; e no mal aproveitamento de outros, como Kurio e Tiko, que
desaparecem depois de um ou dois episódios. Pelo jeito, LOVE IN THE HELL não
foi beneficiado pelas avaliações periódicas feitas pelos leitores da Comic High! (no Japão, os rumos de um
mangá geralmente são determinados pela avaliação dos leitores, através de
mensagens, enviadas à revista, sobre o que gostam ou não gostam na história), o
que determinou o final apressado. Não fosse isso, o mangá bem que podia ter
ganho um quarto volume – ao menos, o inferno de Suzumaru é um mundo
interessante de ser explorado.
No
fim das contas, com LOVE IN THE HELL, o leitor tem outra visão do inferno – mas
não que queira depois ir para lá. Com o perdão dos grupos religiosos, que
possivelmente começarão a cair em cima deste que escreve, o inferno não é o
pior lugar, no fim das contas. Um inferno construído a partir de ferramentas do
dia-a-dia dos leitores? É algo que não se vê todos os dias, por isso é um mundo
bastante crível, do ponto de vista dos princípios da arte de se contar boas
histórias, ou storytelling.
Também
não dá para desprezar as páginas onde Suzumaru apresenta esboços, ilustrações
extras e pequenas HQ autodepreciativas. Certamente, Suzumaru se condenou ao
inferno... e se divertiu com isso. Nós... também.
LOVE
IN THE HELL pode ser encontrado em gibiterias, sebos e na internet, em edições
separadas ou em box com os três volumes.
Para
encerrar, já faz algum tempo que não coloco aqui interpretações pessoais de
personagens, na forma de ilustrações. Então, aqui vai uma ilustração, com todo
capricho que me foi possível, dos personagens principais do mangá, Rintarô e
Koyori. Agora eu que me condenei ao inferno... mas pelo menos aprendi a imitar
o efeito do couro negro em um desenho.
Aguardem
novidades, e acompanhem minhas tentativas de retomar o ritmo de minha vida,
conturbada neste ano de eleições...
Até
mais!
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