Hoje,
vamos tratar novamente de quadrinhos brasileiros. Desta vez, de quadrinhos que
tem mais a ver com o Rio Grande do Sul e sua evolução histórica. Hoje, nos
transportaremos mais uma vez para a região de Caxias do Sul, uma das principais
representantes da imigração italiana no Estado.
E
está tudo relacionado: o autor da HQ de hoje também é descendente de italianos,
e o nome mais expressivo da produção local de HQ, humor gráfico e relacionados
– aliás, já falei dele em postagem anterior. E seu personagem, do qual também
já falei, é bem conhecido nacionalmente.
Trazemos
então, de volta, Carlos Henrique Iotti e sua cria, Radicci, mas trataremos de
um de seus mais raros trabalhos nos dias atuais: DEMO VIA.
O
ÁLBUM...
DEMO
VIA – A HISTÓRIA DA IMIGRAÇÃO ITALIANA EM QUADRINHOS OU “AÍ VEM O RADICCI” foi
publicado, pelo que consta, em 1991, pela EDUCS – Editora da Universidade de
Caxias do Sul. Álbum de 44 páginas – sem contar capa – sendo 32 com a história
em quadrinhos e 3 com uma introdução de Cleodes Piazza Julio Ribeiro, que situa
o leitor historicamente na saga de um descendente do personagem Radicci, e
tomando um caminho inusitado para contar a história da imigração italiana na
região de Caxias do Sul: pelo viés do humor.
A HQ
segue o estilo cultivado até hoje pelo cartunista: com um traço ligeiro, como
se o cartunista tivesse desenhado diretamente, sem esboço – e ainda em início
de carreira, um traço que com o passar dos anos ganha mais corpo; e se valendo
de muitas piadas verbais e visuais, contando um “outro lado” da imigração
italiana para a região do Campo dos Bugres (atual Caxias do Sul), onde os erros
são mais numerosos que os acertos, e a história não necessariamente termina com
um final feliz, mostrando o personagem principal próspero após trabalhar duro
na construção de sua colônia.
Sim,
muitas das obras que tratam da imigração italiana ao Brasil costumam seguir o
viés dramático, com poucos traços de humorismo, ao contar a história de lutas
de pessoas que saíram da Itália e reconstruíram suas vidas na América. Os
camponeses pobres de uma Itália enfraquecida economicamente, e que só na segunda
metade do século XIX conseguira a unificação política, esperavam encontrar na
América uma terra de prosperidade e oportunidades, um “paese della cucagna”;
mas tiveram que construir essa prosperidade eles mesmos, à custa de muito
trabalho, sofrimento e suor – e com consequências para o meio ambiente. Não
apenas muitos colonos alcançaram essa prosperidade, no plano pessoal, como
construíram a da região que os acolheu. A região Nordeste do Rio Grande do Sul
comporta os principais polos da imigração italiana no Estado – as cidades de
Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Gramado, Garibaldi e Flores da Cunha, entre
outras. Outro importante polo da imigração italiana no Estado é a região de
Santa Maria e arredores, na região central. Mas a região Nordeste foi a que
teve sua economia mais desenvolvida, graças à contribuição italiana.
Bem,
eu já falei anteriormente de uma obra que recria a saga da imigração italiana
no Estado, o romance Campo dos Bugres de
Fidélis Dalcin Barbosa. Agora, vejamos o “lado B” da imigração, pelo viés da
sátira.
A
história se vende como a da origem do Radicci, mas é bem provável se que trate
da de um descendente dele, já que muitos anos separam o ano de 1875, onde a
história se passa, dos dias atuais, por onde circula o atual Radicci. Além disso,
o álbum apresenta diversas contradições com o cânone estabelecido por Iotti. Se
não levarmos isso em conta, podemos apreciar o trabalho.
A
história começa na Itália, na região do Vêneto – de onde saiu a maioria dos
imigrantes que chegaram ao Rio Grande do Sul. O personagem principal é
Giuseppe, um camponês italiano, clone do atual Radicci, passional e de cabeça
quente. Ele começa a história na pior: trabalha nas terras de um latifundiário,
sujeito a impostos altos, e está cansado da vida de exploração; cada dia mais
alimentando a ideia de imigrar para a América; e, como se não bastasse a
situação de penúria – tendo apenas polenta como refeição diária, sem nenhuma
carne – ainda por cima é constantemente espinafrado pela sogra. Ah: Giuseppe
mora com a mulher, Francesca, e três filhos – duas meninas e um bebê; durante a
história, Francesca está grávida de um quarto filho.
Um
pequeno incidente acaba influenciando na decisão de Giuseppe em migrar para a
América com sua família: no momento em que o proprietário rural anuncia um
aumento nos impostos dos camponeses, Giuseppe tenta acertar uma pedrada em um
coelho no campo, e acaba fazendo com que o proprietário caia de seu cavalo.
Giuseppe é expulso das terras na hora, e, de pronto, começa a ajeitar tudo para
viajar para o novo continente. Com uma pequena oposição de Francesca, já que a
mãe não quer ir com eles; mas a família, no fim, pega seus poucos pertences,
pega também alguns transportes – trens em Bassano e Milão – em direção ao porto
de Gênova, e embarca no navio.
A
viagem se processa com alguns percalços cômicos: Giuseppe cria um incidente ao
vomitar, sem querer, em cima de um marinheiro, e a família acaba banida para a
terceira classe do navio, um lugar superlotado, pouco higiênico e sujeito a
doenças. Mais tarde, Giuseppe e um amigo, Genaro, resolvem, na calada da noite,
assaltar o estoque de vinho do navio; Bêbado, Giuseppe quase cai no mar e o
pequeno crime acaba descoberto, e ambos são punidos.
Mas,
no fim, o navio chega à América. Após uma pequena passagem pelo Rio de Janeiro,
onde Francesca escreve uma carta à mãe, a família toma outro vapor para o Rio
Grande do Sul – nesse meio tempo, Giuseppe acaba descobrindo uma “bebida
medicinal”, uma tal de “caciassa”, e, em Porto Alegre, acaba criando mais um
breve incidente ao desembarcar, quando, bêbado, cai do navio para a água, mas é
salvo.
Após
uma breve passagem por São Sebastião do Caí, a família, de carroça, vai para o
seu lote de terra, mas tem de enfrentar uma noite de medo, por conta das feras
na mata – felizmente, Giuseppe trouxe a sua “stchopa”, uma espingarda. Mas não
demoram a chegar. E Giuseppe logo se põe a trabalhar, derrubando pinheiros para
construir um galpão para se abrigar – e derrubando diversas vezes pinheiros em
cima da barraca provisória...
À
custa de muito trabalho, a família já começa a ver os primeiros sinais de
prosperidade: um galpão de moradia, e uma farta lavoura de milho. Quem está
mais contente é Giuseppe, já que estava trabalhando para ele mesmo e a família,
e não para um latifundiário. Porém, quando Giuseppe já cantava vitória, as aves
da região atacam o milharal. Em revide, Giuseppe inaugura o mais polêmico
hábito do imigrante italiano: caçar pássaros para comer, a passarinhada. E ainda
agradecendo aos céus porque essa, para todos os efeitos, era a melhor
oportunidade para consumir carne, já que na Itália, um camponês só comia carne
“quando mordia a língua”.
Até
que, por fim, chega o momento em que Francesca dá à luz o novo filho, o Radicci.
Cuja participação na história se resume a duas páginas no fim da história, com
ele ainda menino – e numa situação que explica seu gosto por vinho. A saga, no
fim, se concentra no cabeça-quente Giuseppe, a personificação do imigrante
italiano.
Bem,
a narrativa se sustenta, em grande parte, nos clichês referentes à imigração
italiana, expostos acima. Mas ganha pontos por conta do bom humor, por vezes
grosseiro, mas sem cair no sarcasmo, ao retratar o imigrante italiano como um
sujeito impaciente e passional, porém trabalhador obstinado, contente por
finalmente poder trabalhar um pouco para si mesmo, ao invés de trabalhar “para
outros ficarem ricos”. E tudo na linguagem peculiar do “sotacón”, misturando
português e italiano, que Iotti cultiva há décadas. Era intenção de Iotti ser
fiel à História, e, ao mesmo tempo, criar uma sátira, mas visando ao público
dos ensinos fundamental e médio. Ou nem tanto: seu tratamento da história da
imigração é mais parcial, não tratando de todos os aspectos históricos. Ficou
faltando alguma coisa... Se tivesse ganho mais páginas, talvez conseguisse
desenvolver todos os temas a respeito da imigração italiana. Mas, de toda
forma, hoje em dia dificilmente encontramos obras assim, em quadrinhos, que
tratem da imigração italiana de maneira quase satírica.
O
livro ainda conta com um texto de orelha – em italiano, visto que é reprodução
de uma notícia de jornal da Itália.
Nos
dias que correm, DEMO VIA só se encontra com facilidade nos sebos e bibliotecas.
PARA
ENCERRAR...
...como
falamos de História, o momento é propício para o retorno de minha HQ
folhetinesca, O Açougueiro. Aos
poucos, vou retomando a produção da HQ, assim como as resenhas.
Para
situar melhor os leitores, começo republicando as duas últimas páginas
anteriormente publicadas, que explicam parte do que aconteceu nos últimos episódios...
...e,
agora, seguimos com as páginas inéditas.
Aguardem
que a série continua. Vai depender da disposição do autor, que atualmente passa
por dias muito difíceis.
Até mais!
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