domingo, 29 de janeiro de 2017

MACÁRIO - Capítulo 1: Uma Criatura Noturna

Olá.
Hoje, vou iniciar uma nova experiência de criação de histórias através deste blog: um folhetim eletrônico ilustrado. Já anunciei anteriormente este projeto, e hoje começo a levá-lo a cabo.
Cada capítulo deverá ser acompanhado de três a quatro ilustrações. E os capítulos, inicialmente, deverão sair quinzenalmente. Enquanto isso, as postagens normais deverão sair normalmente - resenhas, desenhos, etc.
Sem mais delongas, apresento a vocês: MACÁRIO.


Amanhecia mais uma segunda-feira.
            Apesar da sonolência e do martelar da cabeça, eu sabia que era uma segunda feira, passado o fim de semana proveitoso.
            Posso lembrar que houve festa. Houve balada.
            Houve gente que, apesar de saber que o dia seguinte seria segunda-feira, continuou se divertindo na noite de domingo. Geralmente, as pessoas despreocupadas com o dia seguinte.
            Mas a garota com a qual passei essa noite de domingo para segunda-feira era uma dessas que estava preocupada com o dia seguinte.
            Apesar de termos nos divertido, primeiro em um bar, depois em meu apartamento, a garota agora estava se vestindo, sob a fraca iluminação da luz da manhã que penetrava nas venezianas da janela do quarto.
            Apesar da sonolência que me acometia, eu pude ver que a garota saiu dos meus braços e estava se vestindo, ao lado de minha cama. O relógio despertador ao lado de minha cama marcava seis e meia da manhã.
            Meio acordado, mas pronto para dormir de novo, apoiei a cabeça em um braço. E fiquei olhando a garota se vestir.
            - Te acordei, Macário? – ela perguntou.
            - Já vai embora? – perguntei.
            - Eu tenho de trabalhar, Macário.
            - Ah, fique aqui, nesta cama, mais um pouco, beleza...
            - Quem me dera, Macário... Mas eu não sou como você, querido, eu sou um ser do dia. Eu trabalho de dia... Quem dera ser como você, que pode se dar ao luxo de dormir de dia e sair à noite.
            Ela sorria. A sonolência e a penumbra não me permitiam ver se seu sorriso era sincero ou era irônico. Decerto ela não aprovava a minha ideia de vida. Como todo mundo. E isso depois que dei a essa moça uma das melhores noites de sua vida...
            - Sinto muito, Macário.
            - Está bem, você é quem sabe... – falei, apoiando a cabeça no travesseiro. – Mas teu dia renderá com as horas que tu dormiste?
            - Espero que quatro horas de sono rendam um dia pouco incômodo, Macário... Mais que uma dor de cabeça não vai render. Foi bom você ter lembrado... tenho de passar na farmácia comprar analgésicos. Você não vai esquecer que hoje tem aula, certo?
            - Não, beleza. Você vai à aula?
            - Temos de ir, não?
            Ela terminara de se vestir. E já ia saindo pela porta. Eu tinha de levantar para, ao menos, abrir a porta para ela sair. Fiz um esforço para levantar, colocar o robe que estava jogado na cadeira da escrivaninha, e a acompanhei até a porta. Afinal, o apartamento era meu, a chave era minha, e a responsabilidade de deixar a porta fechada enquanto durmo era minha.
            - Obrigada pela noite, Macário. – seu sorriso desta vez era sincero. – Você é uma ótima companhia.
            - Vamos nos ver novamente, beleza?
            - Quem sabe no próximo final de semana. Em que balada você estará?
            - Ih, nem sei... Tu é quem tens de me dizer em que balada tu estarás.
            - A gente se fala, Macário. Espero que esta semana te faça tomar juízo. Ah: a propósito, não fica bem você ficar chamando as garotas com quem sai de “beleza”. Eu, por exemplo, tenho nome, é Cressida.
            - Ah, claro... desculpe... Cressida.
            - A gente se fala...
            E saiu. Fechei a porta e voltei para a cama.
            Essa luz que entrava pelas janelas era incômoda.
            Antes de voltar a dormir, pensei na última frase dela. “Espero que esta semana te faça tomar juízo”... No fundo, ela invejava este meu modo de viver.
            Ela, bem como as tantas outras garotas que levei para a cama, nestes três anos de vida universitária, queria ficar comigo mais um pouco. Modéstia à parte, eu sei levar garotas ao êxtase. Pena que com a regulagem errada do relógio biológico. Elas sempre pegavam no sono após a terceira, quarta “investida”.
            Bem que ela invejava esta vitalidade que a escuridão da noite me trazia...
            Bem que as pessoas de meu convívio, no fundo, invejavam minha decisão de trocar o dia pela noite.
            Mas todos preferem o dia, a forte luminosidade diurna, para resolver seus assuntos.
            Não que eu também não goste do dia. Muita gente me recomendava que eu experimentasse sair mais de dia, curtir o dia.
            Mas o meu relógio biológico já está regulado de outro modo. Acabei escolhendo a noite. Acabei escolhendo colocar roupas de sair quando a maioria das pessoas escolhe colocar o pijama.
            A beleza, digo, a Cressida estava com inveja. A noite convidava para longos e acalorados beijos, mas o relógio lhes cobrava o dia seguinte.
Ela estava invejando...
            Zzzz...

            Três e meia da tarde, o relógio desperta novamente.
            Ainda está luminoso do lado de fora, mas não tanto.
            Levanto-me, tomo uma rápida chuveirada, visto-me. Preparo uma xícara de café solúvel.
            Quando o dia da maioria das pessoas já está perto do final, o meu está no início.
            Digo, três e meia da tarde era muito cedo para mim. Geralmente, pulo da cama às cinco da tarde, para ir à aula.
            Mas hoje tenho assuntos para resolver antes de ir para a aula.
            Como as casas lotéricas fecham às seis, hoje sou obrigado a ir para a rua às quatro e meia, cinco horas, para pagar a conta da luz e do condomínio. Já com a mochila, com meus livros e anotações de aula, às costas. A maioria dos estudantes prefere bolsas e valises; eu ainda prefiro mochila.
            De lá, me encaminho para a faculdade. E vou encontrando o pessoal que eu costumo encontrar nos fins de semana.
            Há muita gente que escolhe o horário noturno da faculdade de medicina por necessidade – trabalha de dia, e só tem a noite para estudar. E ocupa seus finais de semana estudando. Bem, na realidade, a grande maioria das pessoas.
            Eu sou uma das exceções.
            Como eu disse, escolhi regular meu relógio biológico para atuar à noite. E escolhi o curso noturno de medicina não por necessidade, mas por gosto.
            E aqui estou eu. A caminho da universidade, sorridente, despreocupado.
            O professor ministra as aulas com cara de cansaço, já pensando em ir para casa. Ele tenta disfarçar, mas eu sei perceber. Vários de meus colegas de curso – incluindo a beleza, digo, Cressida, que mal dirigiu o olhar para mim em todo o período – também tem em mente cair na cama assim que a lição do dia acabar.
            Eu não.
            Assisto a aula com interesse. Hoje é mais uma lição de histologia. Mais um estudo sobre tecidos humanos.
            Cada organismo vivo possui um ritmo próprio. Há seres que, devido a partes essenciais extremamente sensíveis, como os olhos, preferem agir à noite, com o mínimo de luminosidade. Preferem substituir a visão plena pela audição aguçada, que lhes confere uma extensão dos olhos. Cada organismo possui um ritmo próprio de metabolismo, necessidades fisiológicas, pensamento, ação e reação. Há os seres que, dependendo das condições oferecidas pelo ambiente, ficam mais rápidos, ou mais lentos; ganham condições corporais para se confundir com a escuridão, se camuflando nas sombras. E desenvolvem sentidos além da visão. Não é diferente com os humanos.
            Ou seria diferente? Afinal, os humanos podem se dar ao luxo de usar luzes artificiais. Luzes de lâmpadas, luzes de postes, luzes de lanternas, luzes de aparelhos eletrônicos. Não abrem mão da visão que funciona melhor na luminosidade plena.
            Fosse eu um desses seres que desenvolvem novos sentidos para compensar a visão...
            Opa! Por um momento, perdi parte da explicação do professor. Preciso ficar devaneando menos sobre assuntos que nada tem a ver com o curso.

            - Ei, Macário. – um de meus colegas de aula me interpela, na saída da aula. Dez e meia da noite.
            - Oi.
            - Que achou da aula de hoje?
            - Gostei. E você?
            - Eu também. Nada mau.
            - Parece que você não acompanha as aulas de boa vontade...
            - Não é que seja boa vontade. Eu que estou meio cansado mesmo. Trabalhei muito hoje. Esse curso noturno é dureza, mas, se eu quiser ser médico...
            - Eu não acho dureza. Para mim foi ótimo.
            - Você não está cansado?
            - Eu? Não.
            - Claro que não... – outro colega da sala chega atrás de nós, de surpresa. – É que o Macário aqui trabalha à noite, sabe?
            - Você conseguiu um trabalho noturno?! – pergunta o primeiro.
            - Pois é, consegui. – respondi. – Tem muita gente que trabalha no horário da madrugada. Eu também financio minha faculdade com um trabalho noturno.
            - E ele trabalha de madrugada porque quis... Esse cara prefere sair à noite, sabe?
            - Verdade?
            - Geralmente é à noite que está a diversão.
            - Por isso que a pele dele é tão pálida. Poucas vezes vejo ele saindo de dia.
            - O que tem minha pele pálida? Sou um vampiro aos teus olhos?!
            - Não, só acho estranho. Não atrapalha para estudar, cara?
            - A mim não. Tenho como pagar a conta de luz para estudar minhas lições à noite.
            - E quanto você se formar? Só vai pegar plantão noturno no hospital?
            - Ué, sempre necessitam de gente atendendo no plantão noturno. Para mim não tem problema.
            - Bem, se você fosse rico, Macário, fosse um playboy, não seria estranho você escolher dormir de dia e sair à noite. Mas você não é rico, é da... hum... classe média. Aí é que é estranho. A maioria prefere emprego diurno.
            - Que problema tenho em ser diferente desse modo? Tenho só um relógio biológico regulado de modo diferente. Sou um vampiro, por acaso? Lobisomem?
            - Não estamos dizendo nada, Macário. Nós só achamos estranho, só isso. Apesar da diversidade de nosso mundo, todo mundo tem de achar alguma coisa estranha no meio de uma fauna diversificada.
            - Bem, vocês tem o que acharem estranho, eu tenho o que achar estranho. Cada qual com sua opinião.
            - E o que você acha estranho, Macário?
            - Depois eu digo. Agora, tenho de ir para o trabalho.
            E aperto o passo para a direção oposta de onde os dois colegas estão indo. Eles vão dormir; eu vou continuar minha noite.

            Caminho calmamente, ainda com a mochila nas costas, por uma parte bem iluminada do centro, onde o risco de ser assaltado por seres noturnos é mínimo. Por “seres noturnos” entenda-se: os assaltantes, assassinos, estupradores.
            Aqui, os homens encarregados da manutenção do sistema elétrico da cidade fazem um bom trabalho. Não deixam os postes deixarem de iluminar meu caminho até o trabalho.
            Não sou o único ser noturno... apesar de ser apenas um ser humano normal. Há muita gente que prefere madrugar durante a semana. Que prefere sair para beber e se divertir, mesmo em uma madrugada de segunda para terça-feira, de terça para quarta-feira, de quarta para quinta-feira, e assim por diante.
            E é a esse tipo de gente que atendo em meu trabalho noturno.
            No bar, uma fachada luminosa. Uma placa simples, iluminada com lâmpadas direcionadas em sua direção. Não é um local luxuoso, como outros bares similares, apesar dos esforços de seu dono em deixar o local apresentável para os clientes mais endinheirados. O espaço é pequeno, em comparação a outros bares maiores na mesma rua, na mesma cidade.
            Entro pela porta dos fundos, cumprimento colegas de trabalho (dois garçons, além de mim, mais o dono do bar), vou para o vestiário, onde deixo minha mochila e minhas coisas. Visto a meu uniforme, ajeito a gravata borboleta, o avental. E vou para o balcão. Eu fico com o balcão, o longo balcão de mármore, atrás de mim, as garrafas de diferentes bebidas dispostas ao longo de uma prateleira. Dos uísques mais fortes aos licores mais leves, que podem ser misturados. Os dois outros garçons atendem as mesas, circulando por um espaço não muito grande, o espaço entre as mesas com cadeiras e as de sinuca são estreitos.
            Os primeiros ébrios noturnos começam a chegar ao bar, dispostos a um copo de bebida. Cada um com um motivo para estar aqui, diante de mim. Pessoas sofrendo por amor, ou trazendo seus amores para beber junto (às vezes, são simplesmente prostitutas); buscando apenas alguma forma de prazer (e tentando uma paquera com as mulheres que eventualmente entram aqui); desiludidos com o emprego, ou com a falta de emprego (espero eu não ter de passar por isso...). Ou simplesmente disputar partidas de sinuca, a dinheiro ou só para se gabar.
Bem, não me incomoda tanto, na verdade, ouvir as ladainhas dos bêbados. Meu trabalho é apenas servir quem paga por sua dose. Tem quem peça o mais caro dos uísques e dos conhaques; tem quem peça uma mistura de licores; tem quem peça apenas uma prosaica cerveja. Tem quem só peça as fichas para destrancar a gaveta das bolas das mesas de sinuca, e não pedem bebida. E tem os que pedem bebida para acompanhar a partida de bilhar. E tem os que sentam solitários à mesa do canto, sem interagir com mais nada além de seu copo, seu cigarro.
            Eu não tenho como reclamar dos bêbados que, apoiados precariamente sobre o balcão, insistem em contar tristes histórias, enchendo muitas vezes minha paciência – as histórias, em geral, costumam ser longas, e o narrador muitas vezes não consegue articular direito as palavras.
Não tenho como reclamar, afinal, para o dono do bar, esses bêbados chatos representam grande parte do faturamento.
Não tenho como reclamar, afinal, para mim, esses bêbados chatos pagam o que ganho aqui, o salário com que financio meu apartamento, minha luz elétrica, minhas refeições (meu pai apenas financia a faculdade, lá da cidade onde atualmente está morando; com a condição de que eu desse um jeito de financiar minha estada aqui – e, bem, é o que faço, e estudo direito, não traio sua confiança em mim depositada de que me formaria médico).
            Não tenho do que reclamar. Apesar da severidade e da ambição, o dono do bar costuma ser um bom patrão, sempre nos orientando, sempre dando repreensões e elogios na medida certa a quem trabalha com ele. Com os clientes, ele procura ser o mais gentil possível, mas é severo com quem sai do controle e ameaça a integridade de seu bar.
Não tenho do que reclamar. Apesar do pagamento ser de um salário mínimo, mais as gorjetas, dá para as contas acima relacionadas, e ainda sobra. Não sou tão perdulário como a princípio pensam...
Não tenho do que reclamar. No bar, costumam entrar pessoas exóticas, gente interessante, os que preferem circular pela madrugada, em performances, em protestos, em desilusões. O que conseguem, não se sabe como, eles usam para encher seus copos. Usando ou não penteados exóticos, casacos de cores escuras, anéis, piercing, coturnos, gravatas...
            Eu não bebo. Não enquanto estou usando essa gravata borboleta e esse avental – onde já se viu um garçom bebendo em serviço?! Meu trabalho é apenas servir copos, limpar o balcão, secar as gotas de bebida ou de saliva que deixam cair sobre o mármore, oferecer algum aperitivo para o cliente não ter de beber de estômago vazio. Não raro aguentar desaforos de quem bebeu além da conta. Mas atos violentos nunca aconteceram enquanto trabalho aqui, há três anos. Ninguém ainda veio, de farra, quebrar o bar, atrair a atenção da polícia. O dono sabe lidar com essas pessoas, ele sabe intervir pessoalmente. Ninguém vai quebrar o bar dele. Ele sabe quando o cliente já tem de ir embora, e o convida a sair.
            Prostituição? Não, ele não trabalha com isso. As prostitutas até entram em seu bar. Mas só se for para beber e depois ir embora. Ou se estiverem acompanhadas por clientes pagantes. Elas não podem oferecer seus serviços dentro do recinto. Esta é uma casa de respeito, diz o dono do bar.  
Eu tenho de observar e aprender: quem sabe se eu não vá precisar fazer isso por conta própria, quando o dono do bar não estiver aqui, por algum motivo.
            E a atividade prossegue assim, até as cinco da manhã, quando o bar começa a esvaziar. O dono anuncia o fechamento das portas, os ébrios tem de sair, os jogadores de sinuca tem de deixar os tacos onde estão. Eu e meus colegas garçons, agora, limpamos tudo antes de sair. Algum vômito deixado, bebida derramada. Depois do bar limpo, e das cadeiras suspensas sobre as mesas, eu tiro o avental, a gravata borboleta e, pelo mesmo caminho, mochila às costas, volto para o apartamento. Os postes de luz ainda não apagaram, mas está prestes a amanhecer.
            Será que o barulho de gente abrindo a porta da frente às cinco e meia da manhã atrai a atenção dos vizinhos? Sei que devem estar me olhando ressabiados... O garotão que sai à tarde e só volta de madrugada, faz uma rápida refeição, com o que tem na geladeira, e depois se joga na cama e dorme até as quatro da tarde, fora as condições excepcionais...
            Certamente devem pensar que sou um playboy, um ébrio. Mas, se eu pago em dia o condomínio, para que a necessidade de vigiar minha vida?

            Deixe que pensem o que quiserem. Não tenho do que reclamar. Aguardem pelo fim da semana, quando aí as coisas vão...

O próximo capítulo sairá dentro de 15 dias.
Como me saí até agora? Manifestem-se. Mais detalhes sobre a história deverão aparecer no decorrer da "programação".
Garanto que os próximos capítulos já serão mais movimentados... é só aguardarem. Continuem conosco.
Até mais!

Um comentário:

Fabrício disse...

Muito massa!
Estou curioso para saber o que mais será revelado da vida do Macário.
E o que poderá acontecer na sua rotina noturna.