Muitos artistas de HQ são reconhecidos pelo traço. Basta bater os olhos em uma ilustração e batata! Você reconhece na hora de quem é o traço.
É assim com artistas como Charles Schulz, Ziraldo, Will Eisner, Maurício de Souza, Mort Walker, Eugênio Collonese... e tantos outros.
Mas há artistas que não permitem um reconhecimento imediato. É o caso dos irmãos gêmeos Paulo e Chico Caruso. Os dois têm um estilo de desenho tão parecido que às vezes é difícil dizer quando uma ilustração é de um ou de outro. Ah, mas isso é o de menos. Afinal, sendo irmãos, é natural que um influencie o traço do outro.
Mas Paulo Caruso é o mais ativo dos irmãos. Foi o que mais publicou coisas. Como o livro do qual vou falar agora, AS MIL E UMA NOITES.
Paulo e Chico Caruso nasceram em São Paulo, em 1949. E ambos começaram sua carreira no jornal Diário Popular, no final dos anos 60. Entre 1969 e 1976, Paulo estudou arquitetura na USP, e também já levou uma vida hippie. Aliás, foi na Universidade de São Paulo que surgiu o fanzine Balão, editado por Laerte Coutinho e Luís Gê, no qual os gêmeos Caruso iriam colaborar.
Paulo ainda participaria do jornal O Pasquim, mas foi só na década de 1980 que ele voltaria à grande imprensa - com o regime militar, Paulo se limitaria a fazer ilustrações para jornais e revistas da época, já que estava impedido de fazer charges.
Em 1981, ele lançaria, em parceria com Alex Solnik, a série de cartuns Bar Brasil, na revista Careta. Mais tarde, Bar Brasil seria transferida para a revista Senhor. Bar Brasil foi a série que deu origem à sua série mais conhecida, Avenida Brasil, que ele começou a publicar em 1987 na revista IstoÉ (que incorporou a Senhor). Avenida Brasil, que assim como Bar Brasil satirizava a situação política do período, seria publicada na IstoÉ até os anos 2000, no governo Lula. Porém, nessa tira, Caruso cobriu todos os governos democráticos: Sarney, Collor, Itamar, FHC, o primeiro governo do Lula.
Paulo Caruso também acumula outros trabalhos, em revistas como Veja e Chiclete com Banana, e em jornais como o Jornal do Brasil (onde o irmão, Chico, publica charges até hoje). E álbuns, também, vários lançados ainda na década de 80: Ecos do Ipiranga (...O Grito que não Houve!...), de 1982, pela editora Paz e Terra, mais uma parceria com Alex Solnik; As Origens do Capitão Bandeira, de 1983, com roteiro de Rafic Jorge Farah, pela editora L&PM (o personagem surgiu na revista Balão); diversas coletâneas de cartuns e charges; e o mais recente álbum, São Paulo por Paulo Caruso, de 2004.
(Chico Caruso, embora não seja tão ativo, também marca presença, pois em vários períodos, suas charges foram animadas e exibidas no Jornal Nacional da Rede Globo).
Paulo Caruso, ao lado do irmão Chico, também faz shows de humor. Até mesmo já gravou dois CDs, em 1998 e 2001.
Paulo Caruso (assim como Chico) é bastante conhecido pelo traço caricatural, cheio de hachuras (linhas de movimento e de sombra) e extravasando movimento, bem como pelo letreiramento dos balões. É um traço que se reconhece na primeira olhadela.
Bem, na coletânea que vocês veem aqui, AS MIL E UMA NOITES (publicada pela coleção L&PM Pocket em 2007), Caruso desenvolve não a sua especialidade - as tiras políticas - , mas uma temática mais pessoal. Já explico.
AS MIL E UMA NOITES foi publicado inicialmente no Jornal do Brasil, no início dos anos 80. Nesta série, Caruso inicia com um relato da boemia nas noites intermináveis e com tiras que satirizavam o que Jaguar chamava de "a busca interminável do prazer". Mais tarde, Caruso acaba extrapolando a ideia original, que deriva para um tratado metalinguístico a respeito da condição humana e suas derivações psicológicas. A segunda parte da coletânea, portanto, é dirigida ao público mais, digamos assim, intelectualizado, que irá mais facilmente entender o que Caruso quer dizer com aquilo. Já explico.
Na primeira parte, o humor é mais simples, mais digerível: piadas sobre bares, músicos, garçons, leões e ricaços. A sequência inicial, Bem vindo ao Mundo Alucinado dos Amantes, Poetas, Boêmios..., trata da concepção, das primeiras impressões de uma criança ao vir ao mundo e do ciúme entre os irmãos. Aí começa de verdade a primeira parte, Nenhum Homem é uma Ilha, todos de tiras de quatro quadros.
Crise, que Crise? trata sobre a concentração de renda, com um homem refletindo enquanto dirige seu iate. Náufragos do Amor trazx um personagem tentando desfrutar da natureza em uma ilha deserta - no entanto, a mulher e o filho o chamam para a inescapável sociedade do consumo; Sozinho no Bar traz a comparação entre a solidão numa mesa de bar com uma ilha deserta - onde qualquer mulher que se aproxime é um navio de salvação para um náufrago; Viajante Noturno traz uma incursão no louco mundo dos sonhos; O Garçom Literal (exemplo abaixo) traz um garçom interpretando os pedidos dos clientes ao pé da letra (a sequência mais engraçada do livro!);
Um instante, Maestro, já flerta com os músicos - no caso, o pianista do restaurante; O Rei das Selvas é estrelado por um leão que, mesmo no sentido literal, também simboliza o imposto de renda - e a necessidade de estar em dia com ele; a seguir, após uma contribuição do amigo Décio Pignatari (que traduz o soneto A Giganta de Charles Baudelaire), Caruso inicia as sequências de um só quadro. Píncaros do Prazer traz, no simbolismo de um homem que escala uma mulher nua gigante, a busca pelo prazer; Nossa, que Cabeça, traz o próprio Paulo Caruso tentando colocar - literalmente - a cabeça no lugar, até mesmo passeando com a dita-cuja debaixo do braço!; e, para terminar a primeira parte, Metalinguagem (exemplo abaixo) brinca com a própria.
A segunda parte é a mais intelectualizada e alegórica. Abismo de Rosas foi definida pelo próprio Caruso como uma terapia ocupacional, "um orgasmo múltiplo, aquele que quando a gente pensa que acabou logo a seguir vem outro, logo depois outro, e outro e outro mais. Não sei quanto aos leitores, mas pra mim foi bom demais...". Aqui, Caruso, em sequências variáveis entre um, dois e quatro quadros, analisa as relações humanas, as relações amorosas e a psicologia humana. Chama a atenção aqui o uso de diversos planos de desenho: sequências vistas de cima, de baixo, close-ups, panorâmicas... tudo num traço muito detalhado e cuidadoso. De dar inveja a Will Eisner.
A segunda parte é a mais intelectualizada e alegórica. Abismo de Rosas foi definida pelo próprio Caruso como uma terapia ocupacional, "um orgasmo múltiplo, aquele que quando a gente pensa que acabou logo a seguir vem outro, logo depois outro, e outro e outro mais. Não sei quanto aos leitores, mas pra mim foi bom demais...". Aqui, Caruso, em sequências variáveis entre um, dois e quatro quadros, analisa as relações humanas, as relações amorosas e a psicologia humana. Chama a atenção aqui o uso de diversos planos de desenho: sequências vistas de cima, de baixo, close-ups, panorâmicas... tudo num traço muito detalhado e cuidadoso. De dar inveja a Will Eisner.
No Fundo do Fundo traz um homem, num mergulho ao fundo do mar, buscando o âmago da questão (seja ela qual for); Trapézio do Amor traz um homem casado se aventurando pelos céus da cidade; Por medo de Avião traz um homem separado que é surpreendido quando um avião pilotado por outro (vocês entenderam? Um avião pilotado por uma bela mulher, aos que não entenderam) pousa na sua sala de estar; e a sequência das sequências, Abismo de Rosas, onde acontece de tudo: homens caindo de precipícios (simbolizando o fim de um amor) e sendo salvos por um avião (simbolizando um novo amor), e depois saltando de paraquedas (simbolizando a hora de sair de uma relação difícil); homens casados que saltam de um avião-motel, que a seguir é bombardeado pelas prendas domésticas; um homem casado voltando para casa, onde lhes espera a mulher; e, para salvá-lo de uma vida que ameaça ser enfadonha, mulheres caindo do céu no seu jardim. Além das relações humanas, Caruso dá à sequência o feitio de um filme de guerra. Tudo para dizer o seguinte: nada é um eterno mar de rosas. Uma alegoria matadora.
AS MIL E UMA NOITES é humor como só alguns artistas sabem fazer. Bom gosto e ousadia. Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta. É, sério, AS MIL E UMA NOITES vale a pena. Para ver, rir, pensar e se deliciar. Uma verdadeira aula de composição para quadrinhistas!
Bem, quem vocês preferem: o Paulo ou o Chico? Eu não vejo muita diferença entre os dois. Aliás, quem garante que o Chico não tenha desenhado uma parte desta série?
Ah, sei lá.
Para encerrar, mais duas da série de ilustrações Mujeres de Grafite e Tinta. Desenhar para mim é como disse o Caruso: uma terapia ocupacional, um orgasmo múltiplo. Imagine então para desenhar estas mulheres...
Ninguém pediu, mas resolvi fazer mais.
Até mais!
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