Hoje, mais uma vez, volto a falar de quadrinhos. Não me canso disso – e não aprendo mesmo. Ultimamente só tenho falado disso. Tenho falado mais disso do que de qualquer outra coisa. Mas assim que esgotar meu estoque de HQs guardadas, procuro outro assunto.
E hoje, vai ser outro quadrinho brasileiro. Os quadrinhos feitos no Brasil estão passando, nesses dias que correm, em um bom momento. Afinal, já temos quadrinhistas brasileiros premiados no exterior, e sem se limitar a desenhar personagens estrangeiros. E não me canso de divulgar os quadrinhos brasileiros. Eu não aprendo mesmo.
O quadrinho do qual vou falar hoje foi o mais elogiado pela crítica em 2010. E seu autor surpreende a cada lançamento que faz – pelo menos, é o que a crítica diz.
Em clima de faroeste caboclo, então, trago a vocês BANDO DE DOIS, de Danilo Beyruth.
O artista e publicitário paulista Danilo Beyruth é daqueles que surpreendem o público leitor a cada lançamento. Ele é a prova viva de que, ao contrário dos prognósticos dos mais fatalistas, no Brasil sim, se pode fazer histórias em quadrinhos de altíssima qualidade. Que o digam os trabalhos mais conhecidos de Beyruth, o Necronauta, o BANDO DE DOIS e o recente Astronauta – Magnetar.
Nascido em São Paulo, em 1973, começou sua carreira na publicidade, primeiro como diretor de arte da agência DPZ, e depois atendendo várias empresas com o Estúdio Macacolândia, fundado por ele e alguns colegas de publicidade.
Começou a se tornar conhecido no mercado alternativo de quadrinhos do Brasil quando, em forma de fanzines, a partir de 2007, começou a lançar as histórias do personagem Necronauta, um herói cuja missão é ajudar as almas dos mortos a resolver problemas que estas deixaram na Terra. O Necronauta já ganhou dois álbuns compilando suas histórias: em 2009, pela editora HQM, e em 2011, pela Zarabatana, este último com histórias inéditas (Necronauta – O Livro dos Mortos). E o Necronauta ganhou mais notoriedade quando uma história do personagem, de 16 páginas, foi publicada na antologia Popgun – Volume 3, da editora norte-americana Image Comics.
BANDO DE DOIS apareceu em 2010. Elogiado e premiado. (ver adiante).
Beyruth ainda participou das antologias Jesus Hates Zombies, Fierro Brasil e do segundo álbum da série MSP 50 – o MSP +50 – o projeto onde diversos artistas brasileiros interpretam, de modo pessoal, os personagens de Maurício de Souza. Beyruth participou com uma história com a Turma do Penadinho.
Essa participação possibilitou que Beyruth recebesse convite para participar do mais recente projeto dos Estúdios Maurício de Souza, o Graphic MSP, onde artistas interpretariam, de modo pessoal, personagens do estúdio em histórias mais longas. E Astronauta – Magnetar, escrito e desenhado por Beyruth e lançado em outubro de 2012, inaugurou essa série.
Beyruth voltou recentemente a trabalhar com publicidade. E já iniciou um novo projeto em quadrinhos. Confiram mais de sua arte no seu blog: www.evilking.net.
O ÁLBUM
BANDO DE DOIS foi publicado em 2010, pela Zarabatana. O projeto desta HQ começou em 2009, e foi contemplado, nesse mesmo ano, no ProAC – Programa de Ação Cultural da Secretaria da Educação do governo de São Paulo. BANDO DE DOIS causou frisson à época de seu lançamento, e foi eleito pelos leitores do site Universo HQ o melhor álbum daquele ano. Mais: BANDO DE DOIS foi contemplado com os prêmios Ângelo Agostini (Melhor Lançamento) e três HQ Mix (Melhor Edição Especial Nacional, Melhor Roteirista Nacional e Melhor Desenhista Nacional). BANDO DE DOIS já está na sua terceira edição, e foi selecionada para integrar o acervo de bibliotecas nacionais pelo PNBE – Programa Nacional Bibliotecas da Escola.
Porém, este último título é controverso. BANDO DE DOIS não se destina aos alunos do Ensino Fundamental, mas aos do EJA – Educação de Jovens e Adultos, como explícito no selo. É que a aventura tem momentos de terror e de violência, podendo assustar leitores mais jovens.
Apesar disso, trata-se de uma aventura bem-conduzida, que recria no ambiente do nordeste brasileiro o clima dos filmes de faroeste norte-americanos e italianos. Os desenhos de Beyruth são outro ponto a favor do álbum.
O contexto da aventura narrada em BANDO DE DOIS é a época do Cangaço, o movimento de violência social que marcou a vida no Nordeste Brasileiro no início do século XX. Quase todo mundo já deve ter ouvido falar da época dos cangaceiros, os chamados “bandidos sociais”, cujos bandos viviam em função de saques, enfrentamentos com autoridades e com os grandes fazendeiros e seus capangas, os jagunços. Apesar das atitudes reprováveis – a justificativa para atrocidades como assassinatos, estupros e saques a vilas seria a exploração dos grandes proprietários de terras, os “coronéis”, aos camponeses nordestinos, bem como a situação de miséria agravada pelas constantes secas – os cangaceiros se tornaram famosos. É difícil dissociar dessa gente a imagem do homem com o clássico chapéu de aba erguida, decorado com enfeites de metal, cartucheiras em volta do tórax e da cintura, roupas de couro cru e rifles e facões em punho. Aliás, diz-se que o nome “cangaceiro” veio do modo como esses bandoleiros carregavam seus rifles, no ombro, lembrando as cangas, as varas que são colocadas no pescoço dos bois quando estes são atrelados às carroças. E é ainda mais difícil dissociar do cangaço a imagem de sua figura mais representativa, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, o mais famoso “bandido social” já registrado.
O cangaço, dizem alguns, é fruto da situação social do nordeste do início do século XX, com a exploração dos coronéis, as secas contínuas e a miséria do povo conseqüente. Sob o cangaço, os estados do Nordeste brasileiro viviam numa situação de violência. Basicamente, haviam três opções para o sertanejo nordestino da época: se submeter à política de favores dos coronéis, se juntar ao cangaço ou seguir os beatos, religiosos que arregimentavam seguidores prometendo o paraíso a quem não abandonasse sua fé (a extrema religiosidade dos nordestinos é, em parte, fruto da era dos beatos, cujos representantes mais famosos foram Antônio Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, e o padre Cícero Romão Batista, o Padim Ciço).
BANDO DE DOIS retrata o cangaço através do aspecto dos enfrentamentos entre os cangaceiros e as “volantes”, expedições de militares (chamados pelos cangaceiros de “macacos”) designadas especialmente para combater os bandidos sociais. É nesse aspecto que se desenvolvem as aventuras dos dois personagens principais, Tinhoso e Caveira de Boi, numa trama que bem poderia render um filme de faroeste a La Sérgio Leone. E já começa com a chocante capa acima, com uma cabeça decepada dentro de uma caixa. O traço de Beyruth é, ao mesmo tempo, detalhista e estilizado, sem preocupação em ser totalmente realista, com alguns deslizes, que são compensados pelo ótimo trabalho de luz e sombra na arte em preto-e-branco, e pela trama em si.
A trama se desenvolve em cinco capítulos, que começam sempre sem falas, num ritmo cinematográfico, como se, naquele momento, fosse tocar uma daquelas músicas instrumentais dos faroestes italianos, que anunciam que o que virá a seguir é ação pura. A quadrinização toda segue o ritmo cinematográfico, de poucos quadros por página, páginas inteiras e páginas duplas, com efeito de pôster. Ao leitor pode ficar a dúvida: virar logo a página e continuar lendo ou ficar mais um tempinho apreciando a arte?
Bão. A trama. Tinhoso e Caveira de Boi são os únicos sobreviventes de um bando de cangaceiros recentemente liquidado por uma volante, liderada pelo Tenente Honório, que ainda decepou as cabeças dos mortos e as está conduzindo, como prêmio, dentro de caixas, até a capital (o Estado no Nordeste onde a trama se passa, bem como a época exata, não é especificado). A trama faz referências à história real de Lampião, que também teve a sua cabeça e a de seus parceiros decepada depois do último enfrentamento de seu bando com o Exército.
A trama começa quando Tinhoso, ferido após a batalha, acaba tendo uma alucinação, na qual os companheiros mortos pedem que o cangaceiro sobrevivente “liberte-os”. O pedido é interpretado por Tinhoso: ele deve reaver as cabeças dos companheiros e dar-lhes enterro. Tinhoso vai atrás de outro sobrevivente do bando e encontra Caveira de Boi, um cangaceiro mais elegante e estudado (tanto que fala mais corretamente que o parceiro), que se contrapõe a Tinhoso, um tanto mais rústico, mas nada burro. O passado de ambos no cangaço é deixado de lado por Beyruth, que prefere situar a trama em tempo real, permitindo apenas uma ou duas cenas de flashback no álbum inteiro. Tinhoso solicita a ajuda de Caveira de Boi para reaver as cabeças, e este aceita, mas por um motivo mais escuso: visando uma cabeça em especial, a do companheiro Zé Cabreiro, que supostamente esconde, no tapa-olho, o mapa de um tesouro oculto.
Para dar cabo ao plano, primeiro eles vão atrás de um terceiro companheiro, Zeca, que já havia se retirado do cangaço antes da tragédia. Depois de convencer o velho rancheiro de uma forma inusitada – Tinhoso simplesmente solta o pássaro de estimação do velho Zeca, alegando que “quem nasce pro sertão não fica preso em gaiola” – eles traçam o plano para impedir de as cabeças chegarem na capital.
Primeiro, eles tratam de impedir que o trem que vai para a capital chegue ao local. Com o impedimento do trem, a volante de Honório precisa seguir por terra, e o último poço de água existente ali perto fica numa cidade semi-abandonada, Nova Nazaré, cujos habitantes só ficaram por insistência do padre local.
E é ali, em Nova Nazaré, uma cidade ameaçada de ser enterrada nas areias do sertão, que só são contidas com rústicos diques de proteção, que Tinhoso, Caveira de Boi e Zeca armam a emboscada contra a volante. (A cena em que os dois cangaceiros entram na cidade, sob os olhares da população escondida nas casas, é digna de um filme de faroeste.) Não é difícil para eles ganharem a confiança da população, muito crédula, seguindo apenas as ordens do padre – embora os cangaceiros enfrentem alguma resistência por parte do desconfiado dono do bar local, cuja cabeça funde-se ao pescoço, dando-lhes um aspecto bizarro em relação aos outros personagens. A população coopera com os cangaceiros muito mais pelo medo, e o mais que podem fazer naquele momento é rezar dentro da igreja local com o padre.
Enquanto isso, Tinhoso e Caveira de Boi plantam bananas de dinamite, retiradas do trem, em locais estratégicos. Desse modo, quando a volante chega a Nova Nazaré, são os dois cangaceiros contra todo o exército – Tinhoso atacando das casas, Caveira de Boi atirando do telhado da igreja. A partir daí, e muita ação e violência, típicas do nordeste do início do século XX, e ao mesmo tempo dos filmes mais recentes de faroeste, onde os tiros realmente tiram sangue dos atingidos.
Com poucos momentos de alívio, e outros poucos momentos cômicos (como o trecho em que Tinhoso obriga o dono do bar, que estava se intrometendo no diálogo entre os cangaceiros e o padre, a comer pimenta) é ação incessante, numa arte impactante – que o diga a sequência da luta entre os cangaceiros e a volante: a cena em que Caveira de Boi explode o poço, fazendo as pedras que voam da explosão estraçalhar os corpos dos soldados e dos bois da carroça com as cabeças, é de arrepiar. E a sequência em que Honório duela com Caveira de Boi no telhado da Igreja não deixa por menos. Vários aspectos do Nordeste do cangaço são retratados na trama: a violência dos cangaceiros e do exército, o misticismo popular, o próprio nordeste árido, que não é muito diferente das pradarias norte-americanos. Se BANDO DE DOIS fosse adaptada para o cinema, deixaria Deus e o Diabo na Terra do Sol do Glauber Rocha no chinelão.
Um dos maiores defeitos do álbum é não ter mostrado o destino do personagem Zeca: ele apenas ajuda a instalar as dinamites na cidade e depois desaparece, como se tivesse tirado o corpo fora antes da batalha, ficando tudo por conta de Tinhoso e Caveira de Boi. Mas convenhamos: se Zeca tivesse uma participação mais ativa na trama, o álbum teria de se chamar “Bando de Três”. Fora isso, o final é surpreendente, pois só um dos personagens consegue alcançar seus objetivos, e deixando espaço para uma futura continuação. E, no fim, a conclusão que fica é que entre o cowboy justiceiro dos faroestes norte-americanos e o cangaceiro nordestino, não existem muitas diferenças, sendo tudo uma questão de especo e tempo.
O álbum também apresenta mais um defeito: não ter incluído um caderno, no final, com esboços, cenas de bastidores e nem um histórico com o contexto do cangaço. A falta de um texto informativo sobre o cangaço pode deixar o leitor meio perdido. Em álbuns que tem fundo histórico, isso já é bastante comum.
Para quem vai ler este álbum, fica uma tarefinha: achem, no meio da trama, várias Graúnas do Henfil escondidas. É uma espécie de homenagem de Beyruth ao grande cartunista brasileiro Henrique da Souza Filho, vulgo Henfil, que ambientou alguns de seus cartuns mal-comportados no nordeste ressequido.
BANDO DE DOIS mereceu os prêmios que recebeu. Mas ainda tenho dúvidas se ele é mesmo aconselhável para deixar numa biblioteca escolar, ao alcance das crianças. Mesmo assim, é a prova mais que cabal de que o quadrinho brasileiro está cada vez melhor, e cada vez mais menos dependente do estrangeiro.
Ah: também dá pra acessar, ainda, o site contendo um “trailer” do álbum. Acessem: www.bandodedois.com.br/.
Para encerrar, dois desenhos. O primeiro vocês viram acima, um casal de cangaceiros. Claro que, quando desenhei, não consultei referências iconográficas reais dos cangaceiros, só deixei minha imaginação me guiar. E olha que eu sou formado em História.
E o segundo é um retrato, o mais fiel possível, dos heróis da trama, Caveira de Boi e Tinhoso. Devia ter escolhido melhor a caneta para fazer a arte-final.
Em breve: a resenha de Astronauta – Magnetar. Mais Danilo Beyruth aqui no Estúdio Rafelipe!
Até mais!
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