Olá.
Hoje,
vamos falar de livro infanto-juvenil, para variar um pouco os tipos de livro
que tenho resenhado aqui no blog. Mas também vamos continuar falando de
História, já que formado em História eu também sou.
O
autor do livro de hoje já faleceu. E era colega de profissão – professor,
historiador e escritor. Não, nunca cheguei a conhece-lo pessoalmente. Mas sua
obra me é conhecida.
E o
livro de hoje trata de um episódio pouco conhecido de um dos capítulos mais
conhecidos de nossa história. E, perto que estamos do Dia da Mulher, o episódio
envolve uma mulher de coragem.
Todo
esse preâmbulo é para apresentar O SOLDADO QUE NÃO ERA, de Joel Rufino dos
Santos.
O AUTOR
Bem.
Antes de falar da obra, como tenho feito muitas vezes aqui, costumo falar um
pouco a respeito do autor, pensando na parcela de meus 17 leitores que está
chegando agora, e que não é tão interessada em literatura quanto a princípio
parece. No caso presente, Joel Rufino dos Santos (1941 – 2015) teve sua
importância dentro da história da literatura infanto-juvenil brasileira, além
de ativista político, professor, autor de livros didáticos e divulgador da
cultura afro-brasileira.
Como
sua carreira e obra são extensos, melhor que eu me sirva da biografia que
peguei “emprestada” do website oficial do autor:
“Filho de pernambucanos, Joel nasceu no
ano de 1941 em Cascadura, subúrbio carioca.
Desde criança se encantava com as
histórias que a sua avó Maria lhe contava e as passagens da Bíblia que ouvia.
Junto com os gibis, que lia escondido de sua mãe, esse foi o tripé da paixão
literária do futuro fazedor de histórias. Seu pai também teve um papel nessa
formação, presenteando-o com livros que Joel guardava em um caixote.
Ainda jovem, mudou-se com a família
para o bairro da Glória e pouco depois entrou para o curso de História da
antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, onde começou a sua
carreira de professor, dando aula no cursinho pré-vestibular do grêmio da
Faculdade.
Convidado pelo historiador Nelson
Werneck Sodré para ser seu assistente no Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), lá conviveu com grandes pensadores, e foi um dos coautores
da História Nova do Brasil [1963], um
marco da historiografia brasileira.
Com o golpe de 1964, Joel, por sua militância
política, precisou sair do Brasil, asilando-se na Bolívia, depois no Chile. Com
o exílio, não só interrompeu a sua vida acadêmica, como também não participou
do nascimento do seu primeiro filho, que se chama Nelson em homenagem ao
mestre e amigo.
Voltando ao Brasil, viveu semiclandestino,
e foi preso 3 vezes. Na última, cumpriu pena no Presídio do Hipódromo
(1972-1974). As cartas, muitas, que escreveu para Nelson, foram, mais tarde,
publicadas no livro Quando eu voltei,
tive uma surpresa, que recebeu, da FNLIJ, o Prêmio Orígenes Lessa - O
melhor do ano (2000) para jovens leitores.
Com a aprovação da Lei da Anistia, foi
reintegrado ao Ministério da Educação e convidado a dar aulas na graduação da
Faculdade de Letras e posteriormente na pós-graduação da Escola de Comunicação,
UFRJ. Obteve, da Universidade, os títulos de ‘Notório Saber e Alta Qualificação
em História’ e ‘Doutor em Comunicação e Cultura’. Recebeu também, do
Ministério da Cultura, a comenda da Ordem do Rio Branco, por seu trabalho pela
cultura brasileira.
Como escritor, Joel [foi] plural.
Escreveu inúmeros livros para crianças, jovens e adultos. Ficção e não ficção.
Ensaios, artigos, participação em coletâneas. Recebeu, como autor de livros
para crianças e jovens, vários prêmios, tendo sido duas vezes finalista do
Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura
infanto-juvenil. Já como romancista recebeu, do Pen Clube do Brasil, em 2014, o
Prêmio Literário Nacional na categoria ‘Narrativas’.
Joel [foi] casado com Teresa
Garbayo dos Santos, autora do livro Conversando
com casais grávidos. Nelson e Juliana são os seus filhos. Eduardo, Raphael,
Isabel e Victoria, os netos queridos.
Joel Rufino dos Santos faleceu em 4 de
setembro de 2015, por complicações decorrentes de uma cirurgia cardíaca.
Mas Joel continuará vivo no coração e
na memória de todos que com ele conviveram, ou o conheceram através da leitura
de seus livros, e reconhecem o valor de uma vida marcada pela luta por
justiça social, pelo fim dos preconceitos e pela defesa da cultura
popular brasileira.
Sua última função pública foi no
Tribunal de Justiça, onde exerceu, de forma inovadora, a função de Diretor
Geral de Comunicação, estabelecendo pontes entre o Tribunal e a sociedade civil.
Provocou debates, encenou o ‘desenforcamento’ de Tiradentes e promoveu um baile
‘charme’ em que o povo pobre e negro foi convidado a comparecer não como réu,
mas como criador de beleza, como pensador.
Quer saber mais sobre o Joel? Ele
também foi:
- Coordenador, no ISER, do programa
‘Quanto vale uma criança negra’;
- Diretor do Museu Histórico da Cidade
do Rio de Janeiro;
- Presidente da Fundação Cultural
Palmares (MINC);
- Membro do Conselho de Cultura e
da Secretaria estadual de Cultura;
- Superintendente de Cultura da
Secretaria estadual de Cultura;
- Subsecretário estadual de Defesa e
Promoção das Populações Negras;
- Subsecretário da Secretaria estadual
de Justiça e Direitos Humanos;
- Diretor de Comunicação Social do
Tribunal de Justiça e também do Tribunal Regional do Trabalho;
- Representante do Brasil no Comitê
Científico Internacional da UNESCO para o Programa ‘Rota dos Escravos’;
- Consultor brasileiro do Programa
Escolas Associadas, da UNESCO;
- Membro da Comissão de Comunicação
Institucional do Tribunal de Justiça;
- Membro do Conselho Estadual de
Tombamento do Rio de Janeiro;
- Consultor Especial do Minc para o
Programa Centenário da Abolição;
- Membro do Comitê Internacional da
Diáspora Negra, Washington DC.”
Para
complementar as informações acima: segundo a breve biografia constante no final
de O SOLDADO QUE NÃO ERA: na infância, Joel Rufino dos Santos desejou “ser várias
coisas estrambólicas: pipoqueiro, astrônomo, vendedor de gibi, craque de
futebol, cigano”. Virou escritor de profissão por conta da “incurável
doença de ler e escrever”. Era apreciador de futebol – “Não foi bom
aluno nem bom filho por culpa dessa obsessão. Amava tanto a arte de jogar bola
que nunca teve um time só: [torcia] por todos. (Uma época, é verdade, torceu
pelo Botafogo; outra, pelo Palmeiras; pelo Atlético; [...] pelo Flamengo.
Sempre pelo melhor.)” – e de samba - “[Era] quase um defeito, esse gostar.
Não [ligava] pra rock, pra música clássica, pra bolero. Um tempo gostou muito
de canção francesa e de jazz; de Sergio Endrigo e John Lennon – mas sem
devoção. [Era] vibrador da Mangueira, da Vai-Vai, da Unidos do Poço, de Maceió,
e assim por diante. Sonhou, quando garoto, em chegar a presidente da República
e decretar a substituição das universidades por escolas de samba”. Fez
política, “e primou – parece – pela falta de qualquer dogmatismo. [Achava] que o
socialismo, como forma de organização social, é bem melhor do que isso que está
aí; mas não [tinha] ilusões a respeito dele. Gostaria de ver o povão mais
contente (pra ser exato: pela primeira vez contente) e se [animava] muito
pensando que, através da Literatura, [pudesse] ajudar nessa tarefa”.
Os
livros? Suas principais obras foram, tirando os livros didáticos que escreveu
e/ou colaborou: na área infanto-juvenil, apontamos O Caçador de Lobisomem (1976), Marinho,
o Marinheiro, e outras histórias (1977), Aventuras no País do Pinta-Aparece (1977), Uma Estranha Aventura em Talalai (1979), O Curumim que virou gigante (1980), Quatro Dias de Rebelião (1980), O
Noivo da Cutia (1980), Uma Festa no
Céu (1982), O Soldado que não era (1983),
A Botija de Ouro (1984), Dudu Calunga (1986), Rainha Quiximbi (1986), História de Trancoso (1987), Mania de Trocar (1991), Gosto de África (1998), O Presente de Ossanha (2000), Duas histórias muito engraçadas (2002), O Barbeiro e o judeu da prestação contra o
sargento da motocicleta (2007), Histórias
de Bichos (2010)... Já no setor não-infantil, destacamos: O Dia em que o povo ganhou (1979), O Que é Racismo (1980), História política do futebol brasileiro (1981),
Zumbi dos Palmares (1985), A Questão do Negro em sala de aula (1990),
Quando eu voltei, tive uma surpresa (2000),
Paulo e Virgínia (2001), A Nova Justiça (2005), Na Rota dos Tubarões (2008), Carolina Maria de Jesus – Uma escritora
improvável (2010, considerado sua obra-prima), Saber do Negro (2015)... No site, há uma relação mais completa de
todas as obras publicadas, e dos prêmios aos quais concorreu e/ou venceu, bem
como suas participações em eventos no exterior. E também dos contos que
publicou em revistas como Recreio, Nova
Escola e Ciência Hoje das Crianças. Joel
Rufino ainda teve passagens pela televisão: foi colaborador nas minisséries Abolição (1988) e República (1989), ambas transmitidas pela Rede Globo.
O LIVRO ESCOLHIDO
Bão.
O SOLDADO QUE NÃO ERA foi publicado pela primeira vez em 1983. Todas as edições
do livro foram lançadas pela Editora Moderna. Mas, no total, o livro teve três
projetos gráficos. De 1983 a 1985, o livro teve capa e ilustrações de Carlos de
Brito (primeira capa vista nesta postagem); de 1986 a 1997, a capa e as
ilustrações ficaram a cargo de Eduardo Vetillo (segunda capa, acima); e, de
2003 em diante, a capa e as ilustrações ficaram a cargo de Rogério Borges (capa
adiante).
O
romance infanto-juvenil se propõe a ser uma recriação, em forma de ficção, da
trajetória de lutas de Maria Quitéria de Jesus (1792 – 1853), heroína da Independência
brasileira – e dentro das preceitos de sua cartilha historiográfica: um romance
de fácil compreensão, em linguagem dos jovens leitores, e se preocupando em
retratar a História do ponto de vista do povo, em uma época que ainda vigorava
a história “oficial”, construída “nos gabinetes”, de exaltação às “grandes
figuras”. Maria Quitéria esteve longe de ser uma das “grandes figuras”, apesar
de tudo o que fez pelo Brasil. Mas não foi por falta de informação a seu
respeito.
A HEROÍNA
Como
todos sabem, a Independência do Brasil foi proclamada em 7 de setembro de 1822,
quando o então príncipe-regente D. Pedro, futuro imperador brasileiro D. Pedro
I, esteve se aliviando de uma “indisposição estomacal” às margens do Rio
Ipiranga, no estado de São Paulo (ele e sua comitiva estavam a caminho da
cidade de São Paulo), quando recebeu uma série de mensagens informando que as
cortes de Portugal pretendiam limitar seus poderes governamentais; e, numa
atitude inesperada, D. Pedro, conhecido tanto pela sua maneira de governar e
por sua impulsividade quanto por seus casos amorosos, declarou, aos gritos, que
o Brasil, daquele dia em diante, seria independente de Portugal. Meses antes
(em 9 de janeiro), ele já havia desafiado essas mesmas cortes, declarando que
ficava no Brasil, ao invés de voltar para Portugal.
Quem
estuda história seriamente sabe que a Independência do Brasil foi fruto de um
longo processo, iniciado em 1808, no momento em que a Família Real Portuguesa,
fugindo da invasão de Portugal das tropas de Napoleão Bonaparte, veio se
refugiar na então colônia. A abertura dos Portos às Nações Amigas (1808) e a
elevação do Brasil a sede do império português (1815) foram os eventos que
passaram a dar mais autonomia à colônia, acendendo o desejo da emancipação
total – no entanto, quando a Família Real voltou para Portugal, deixando D.
Pedro como regente, as cortes portuguesas tentaram reverter todo esse processo
de autonomia e devolver o Brasil à condição de mera colônia. O grito de D.
Pedro I nas margens do Rio Ipiranga foi o ponto culminante desse processo. Mas
ainda faltava muito para que o Brasil fosse reconhecido como nação. E há, ainda
hoje, quem acredite que o Brasil ainda não é independente: de colônia de
Portugal, passou a ser “colônia”, economicamente, da Inglaterra e das multinacionais
estrangeiras. Ou seja, nossa independência foi unicamente política. Mas
deixemos esse assunto para depois.
Colocado
assim, o processo de independência brasileira pareceu pacífico e “jogo de
cartas marcadas”, sem grande participação popular, ao contrário das
independências de outras nações da América Latina, que envolveram guerras e
“revoluções” com apoio popular – e, por isso, são comemoradas
entusiasticamente, ao contrário do Brasil, onde o 7 de setembro é visto como só
mais um feriado, e as demonstrações cívicas, ligadas ao passado “nefasto” do
nosso país, são vistas como traumatizantes (ainda por cima porque, apesar de
independente, o Brasil manteve o modo de produção escravista, só abolido em
1888, e os interesses das classes dominantes sobre os das classes dominadas).
O
que poucos lembram é que aqui, sim, houve guerra. Houve envolvimento popular na
causa da independência. E quem sabe disso melhor que o restante do Brasil são
os baianos: foi na Bahia que, por algum tempo antes e após o Grito do Ipiranga,
foi travada uma importante guerra entre brasileiros e tropas portuguesas pela emancipação
e pela consolidação da Independência. Ela ocorreu de 19 de fevereiro de 1822 a
2 de julho de 1823, data em que os portugueses foram finalmente expulsos da
Bahia. Essa série de batalhas na Bahia foi travada por um exército brasileiro
malformado, quase unicamente de voluntários das classes populares, já que o
exército brasileiro, oficialmente, ainda não existia. Para dar auxílio, D.
Pedro teve de contratar mercenários estrangeiros.
Essa
guerra na Bahia foi marcada por dois episódios exóticos, ambos ocorridos em
Pirajá, no dia 8 de novembro de 1822, palco da mais importante batalha: o
primeiro foi a famosa e lendária história de Luís Lopes, o corneteiro que tocou
o toque de avançar no lugar do de retirada, assustando as tropas portuguesas
que então se encontravam em vantagem em relação aos brasileiros; e o segundo
foi, claro, a atuação de Maria Quitéria.
Para
esclarecer aos leitores sobre a figura de Maria Quitéria, passo agora a palavra
a Laurentino Gomes, em trecho do livro 1822
(2010):
“(...) Nascida em
Feira de Santana, filha de lavradores pobres, Maria Quitéria de Jesus tinha
trinta anos quando a Bahia começou a pegar em armas contra os portugueses.
Apesar da proibição de mulheres nos batalhões de voluntários, decidiu
alistar-se às escondidas. Cortou os cabelos, amarrou os seios, vestiu-se de
homem e incorporou-se às fileiras brasileiras com o nome de ‘Soldado Medeiros’.
Duas semanas depois foi descoberta pelo pai, que tentou levá-la à força de
volta para casa. Os colegas de quartel, já impressionados com a habilidade com
que Maria Quitéria manejava armas, imploraram para que ela ficasse. O oficial
comandante concordou, mas impôs uma condição: em vez da farda masculina, ela
usaria um saiote à moda escocesa.
Maria Quitéria
participou de pelo menos três combates e em todos se destacou pela bravura.
Antes de ser destituído do comando, o general Labatut lhe conferiu o posto de
primeiro-cadete. Seu substituto, o coronel Lima e Silva prestou-lhe uma
homenagem em público descrevendo suas façanhas. ‘Apresentou feitos de grande
heroísmo, avançando, de uma vez, por dentro de um rio, com água até os peitos,
sobre uma barca que batia renhidamente nossas tropas’, assinalou. A suprema
glória, no entanto, viria no dia 20 de agosto [de 1823], quando Maria Quitéria
foi recebida no Rio de Janeiro pelo imperador Pedro I e condecorada com a Ordem
do Cruzeiro. A inglesa Maria Graham, que a conheceu na ocasião, descreveu-a
como ‘viva, de inteligência clara e percepção aguda’. E acrescentou: ‘Nada se
observa de masculino nos seus modos, antes os possui gentis e amáveis.’ De
volta à Bahia, Maria Quitéria casou-se com um antigo namorado, o agricultor
Gabriel Pereira de Brito, com quem teve uma filha. Morreu em Salvador aos 61
anos.” (GOMES, Laurentino. 1822. P.
204 – 205)
Apesar
dos feitos em prol da consolidação da independência brasileira, Maria Quitéria
morreu no anonimato – e consta que até fora perdoada pelo pai, mas abriu mão de
sua parte na herança; mas há versões que, contraditoriamente, afirmam que o pai
jamais perdoou a “travessura” de Maria Quitéria. As homenagens recebidas, além
das recebidas em 1823, foram póstumas: Maria Quitéria dá nome, por exemplo, a
duas comendas oferecidas pelas câmaras de Salvador e de Feira de Santana (BA) a
personalidades de destaque; e a heroína também ganhou um monumento na mesma
Feira de Santana. Seu retrato mais conhecido foi pintado por Domenico Failutti
na década de 1920, a partir de uma gravura constante no livro de Maria Graham, Diário de uma Viagem ao Brasil.
A HEROÍNA NO LIVRO
Bem.
Para começar, O SOLDADO QUE NÃO ERA é um livro de leitura rápida. Esta postagem
se baseia na edição de 1990 – a 22ª – com as ilustrações de Eduardo Vetillo.
Esta edição tem 48 páginas, sem contar capa. A mais recente chega a 64 páginas,
mas, no todo, a leitura é breve (leva menos de uma hora) e não exige demais do
leitor.
No
início do livro, o autor dá um aviso aos jovens leitores:
“Esta história
aconteceu de verdade. As personagens também não foram inventadas. José Luís,
Lucas, o boticário Massa, Barros Falcão, Teresa, o velho Gonçalo, o Trinta
Diabos, o Madeira Podre (que se chamava, na verdade, Inácio Luís Madeira de Melo),
padre Brayner, e, naturalmente, D. Pedro e Maria Quitéria – eram pessoas de
carne e osso.
Elas não disseram,
necessariamente, aquilo que eu as diz dizer. Não importa. Como não sabemos
exatamente o que disseram, podemos imaginar. Qualquer um tem esse direito.
Está contada a minha
história, verdade e imaginação. Se você quiser, pode tirar uma lição. Se não
quiser, pode apenas se divertir.” (p. 5)
Então,
os fatos apresentados no romance são verdadeiros, visto que Joel Rufino dos
Santos era historiador – mas existem alguns fatos contraditórios aos levantados
em pesquisa prévia na internet e em outros livros. Sua versão da trajetória de
Maria Quitéria foi dividida em três partes, e estruturada de modo a não
entregar toda a trama antes do final, deixando ao leitor fazer a descoberta a
respeito da identidade da senhora apresentada no início do livro. Essa
estrutura do personagem construído aos poucos, no entanto, pode confundir os
leitores mais jovens e desacostumados, principalmente os que desconhecem Maria
Quitéria e/ou os eventos apresentados.
Bem.
A história começa com uma senhora: uma velha que circulava pelas ruas da
Salvador do século XIX, o Brasil já independente, trajando um fardão e levando
a tiracolo uma longa espada que arrastava no chão. Ninguém sabia quem era
aquela senhora, que vivia modestamente com a filha – ela nem mesmo contava a
respeito de seu passado, e se limitava apenas a ser apelidada de “periquito”
pela molecada. Um dia, pouco depois que a senhora sai do mercado, entra no
mesmo local um homem, pedindo informações a respeito de uma certa Maria
Quitéria, que praticamente ninguém ouvira falar. O homem se apresenta como
enviado do Imperador do Brasil, e começa a contar a história da tal Maria
Quitéria.
Na
primeira parte, A noite com seus bacuraus
e pirilampos, começa com os primeiros “movimentos” dos brasileiros contra
os portugueses, ainda antes do 7 de setembro de 1822. O povo já estava cansado
da exploração feita por Portugal. Na cidade de Cachoeira, na Bahia, muitos
“patriotas”, ou melhor, pessoas que ousavam falar de independência, se
refugiavam da perseguição empreendida pelo então governador militar, Inácio
Luís Madeira de Melo, português e, portanto, inimigo. O movimento começou, de
fato, com um tiro, que matou um tamborileiro: esse tamborileiro, Soledade,
fazia parte de uma tropa rebelde do exército, a favor da causa brasileira; o
tiro que o matou teria vindo de um empório administrado por portugueses
inimigos. A casa do proprietário do empório foi destruída, a escuna naval
enviada para capturar patriotas foi tomada, um governo foi organizado na Bahia e
o exército começou a ser organizado para enfrentar os portugueses. Um dos
emissários desse novo governo chegou a uma fazenda na Serra da Agulha, onde
vivia um certo Gonçalo, viúvo, e suas duas filhas. Esse emissário veio pedir
ajuda com homens ou dinheiro para a causa da independência, porém, Gonçalo
alega que não tem como ajudar. Mas a vinda do emissário e seu assunto despertam
o interesse de uma das filhas desse senhor. D. Maria. À noite, Maria acaba
empreendendo uma fuga, às escondidas. Um pouco depois, em Cachoeira, se
apresentava um certo Medeiros, como voluntário. Acaba sendo incorporado a uma
tropa composta de gente maltrapilha e que combatia descalça, porém Medeiros
sonhava, mesmo, em vestir um fardão. Insiste com seus superiores para mudar de
regimento, ao constatar que haviam diferenças gritantes entre os diferentes
regimentos do “exército” em formação – e consegue. E ainda faz um amigo, o
furriel José Luís.
A
segunda parte, O Gosto e o cheiro do
sangue e da pólvora, inicia em Nazaré das Farinhas (BA). Começa quando
Medeiros e Zé Luís encontram, lá, um negro preso a um tronco, besuntado de mel,
condenado para ser devorado pelas formigas. Indignados, os soldados procuram a
dona do escravo e negociam para que ele seja incorporado ao exército – mas
teriam de pagar um alto valor em dinheiro, dentro de três meses, pelo escravo.
Desse modo, o negro Lucas se torna o segundo parceiro de Medeiros. E, juntos, o
trio já se destaca pela valentia: juntos, na batalha de Itaparica, conseguem
capturar o temido comandante português conhecido como Trinta Diabos. E Medeiros
ainda ganha uma promoção – e aulas de leitura com um boticário, Massa, um dos
patriotas instruídos. Mas, um pouco depois, a verdade acaba vindo à tona,
quando Gonçalo aparece em busca da filha fugitiva: Medeiros, na realidade, é
Maria Quitéria. O homem tenta levá-la para casa à força, no entanto, o
comandante insiste para que a moça fique – praticamente, todos no exército já
sabiam que Medeiros era mulher, e exceção ali (as outras mulheres incorporadas
ao exército trabalhavam na cozinha e na limpeza). Gonçalo permite a permanência
de Maria, porém deserda a filha – e a deixa sem notícias da irmã, Teresa. E o
prazo do “empréstimo” de Lucas está chegando ao fim, o que é uma preocupação,
pois o escravo se afeiçoou a Medeiros/Maria. Pouco depois, ocorre a batalha de
Pirajá, com o episódio do corneteiro que acaba dando o toque errado. A batalha
tem êxito para os brasileiros, porém Luís Lopes, o corneteiro, acaba punido.
Depois, em Itapoã, ocorre nova batalha. Medeiros/Maria se destaca novamente,
mas acaba perdendo o amigo e possível paixão, Zé Luís. Depois disso é que Maria
recebe o saiote, que passa a usar por cima das calças.
Vem
a terceira parte, Os outros homens que
lutaram e morreram. Com as batalhas finais da guerra da independência,
vitoriosas graças à atuação de Maria Quitéria. Vem o dia 2 de julho de 1823,
com a expulsão definitiva dos portugueses, consolidando, momentaneamente, a
independência do Brasil (ainda seria preciso o reconhecimento internacional e o
pagamento de uma indenização para Portugal, por parte de D. Pedro, para a plena
consolidação da Independência, mas essa já é outra história). Maria recebe a
condecoração do Imperador – e, como pedidos, pede apenas que D. Pedro escreva
duas cartas: uma a Gonçalo, pedindo o perdão da filha, e outra, de alforria,
para Lucas. Depois, Maria vai visitar a irmã, Teresa, para saber notícias – o
pai ainda se recusa a ver a filha rebelde. Aqui termina a narrativa do
misterioso emissário do Imperador – cuja identidade é a grande surpresa aos
leitores. Quanto a Maria Quitéria, a ela está reservado um final melancólico,
lhe bastando apenas a herança que deixou ao Brasil.
O
SOLDADO QUE NÃO ERA constitui um bom entretenimento, tanto para quem espera
apenas uma saga de aventuras brasileira, quanto para quem quer aprender um
pouco de história. Muito embora o tom adotado para abordar a história não se
enquadre ao da geração do “Guia Politicamente Incorreto”, do “revisionismo
anti-socialista reacionário”, da anti-cultura do “coitadismo”. Lembrem-se: Joel Rufino dos
Santos era socialista, foi vitimado pelo Regime Militar e já fez proveito de
tal condição; portanto, como historiador, passível de ser combatido pelos atuais
historiadores, que preferem concordar com Leandro Narloch (autor do Guia Politicamente Incorreto da História do
Brasil) e seus “seguidores”, e acabar caindo no ostracismo onde já caíram
outros historiadores “socialistas”, como Décio Freitas, Júlio José Chiavenato e
Mário Schimidt. Então, O SOLDADO QUE NÃO ERA tem de ser apreciado como um livro
infanto-juvenil.
De
todo modo, O SOLDADO QUE NÃO ERA é um importante pedaço da era de ouro da
literatura infanto-juvenil brasileira, quando havia uma enorme preocupação com
o oferecimento de literatura adequada aos jovens estudantes brasileiros e com o
abastecimento das bibliotecas escolares. Embora a realidade se mostrasse outra,
pelo menos essa preocupação havia, ainda mais que ainda não existia internet
para concorrer com o bom e velho livro de papel. Mas, é claro, existia a
televisão, o que já preocupava. Ainda assim, muitos brasileiros cresceram e se
formaram descobrindo autores como Joel Rufino dos Santos, Marcos Rey, Pedro
Bandeira, Orígenes Lessa, Lúcia Machado de Almeida, Ana Maria Machado, Ruth
Rocha... antes de partirem para os autores “maiores”, como Machado de Assis,
José de Alencar, Mário de Andrade, Euclides da Cunha... vocês devem ter me
entendido.
Se
vocês leram até aqui, cada palavra deste textão, parabéns. Agora, é a vez do
pessoal procurar, na biblioteca ou na livraria mais próximos de suas casas, O
SOLDADO QUE NÃO ERA. Nada de desculpa que o mofo do papel faz mal para sua
respiração. Os livros esperam que alguém lhes tire esse mofo. Que alguém os
abra para serem arejados.
PARA ENCERRAR...
Desconfio
que muita gente nem lê os textos que escrevo até o fim, pulam direto para a
ilustração que costumo deixar ao final. OK, mas, de todo modo, como tratamos de
História, deixo aqui algumas páginas de minha HQ folhetinesca, O Açougueiro. Feita em cima de um fato
semi-histórico da Porto Alegre do século XIX. Até agora, as redes sociais tem
dado uma boa resposta a esse esforço que faço. Mas até quando?
Aguardem
novidades. Principalmente as que costumo deixar no dia 8 de março, o Dia da
Mulher. Aqui no Estúdio Rafelipe também pensamos nas mulheres. Quanto será a
parcela de mulheres entre os meus 17 leitores?
Até
mais!
Um comentário:
Eu li esse livro no 1º grau. Excelente leitura! Recomendo!!!
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