domingo, 12 de março de 2017

MACÁRIO - Capítulo 4 - Caindo duas vezes, na mesma noite

Olá.
Hoje, enquanto escrevo, é domingo. E, como já se foram duas semanas, neste domingo tem novo capítulo de MACÁRIO, o folhetim! Agora, estamos chegando ao clímax da história do rapaz da vida noturna.
ATENÇÃO: não recomendado a menores de 18 anos. O presente capítulo, desta vez, contém cenas de violência.



Um pressentimento ruim passou por minha espinha no momento em que, acompanhado pela garota com a qual passei o fim de semana, vi, na outra ponta da rua onde estávamos, três vultos se aproximando de um mendigo que estava deitado, ali, na esquina.
Meu pressentimento ruim se confirmou quando aqueles três vultos começaram a chutar e espancar o mendigo. Fiquei praticamente colado ao chão.
O mendigo, no entanto, parecia não estar dando sinais de sofrimento; ele estava enrolado em uma grossa camada de cobertores velhos e sujos, porem quase intactos, e eles deveriam estar absorvendo a força do impacto dos chutes e dos socos desferidos. Seria pior se eles estivessem com pedaços de madeira ou ferro nas mãos, mas...
Os três vultos eram de jovens, usavam roupas claras, de verão. Adolescentes arruaceiros, possivelmente daqueles playboys de classe média alta, que se divertem agredindo pessoas de rua. Podia ouvi-los rindo. Rindo com selvageria.
Algo me fez paralisar no chão, ficar sem me mover, a observar as cenas de selvageria, mesmo com Valtéria tentando me chamar a atenção, me puxar para sair dali. Uma voz dentro de mim dizia que eu devia ir lá, auxiliar o mendigo, impedir os pitboys de matarem o pobre azarado de estar no caminho deles.
E eu tinha de fazer isso rápido: depois que o mendigo, devido ao espancamento, ficou deitado, imóvel, um dos pitboys sacou uma garrafa – pelo formato, era uma garrafa de álcool líquido – e despejou sobre a vítima, encharcando os cobertores. Outro já sacava uma caixa de fósforos.
O que estava me prendendo ao chão? Estaria eu querendo mesmo ver se eles iriam colocar fogo em mais um índio? Ei, como eu sabia que o mendigo era um índio, saído de sua aldeia ou reserva, provavelmente para negociar com homens brancos a respeito de questões de sua terra, e que teve de dormir na rua porque não conseguira acolhida nesta cidade hostil? O mendigo seria mesmo um índio?
Não é possível: o mendigo ia se tornar mais um Cacique Galdino! Um índio que, há algum tempo atrás, causou comoção nacional quando morreu após ter seu corpo queimado por cinco jovens que, levados a julgamento, foram até presos, mas depois foram soltos. Que ano foi mesmo? Eles saíram mesmo impunes do episódio? Não, não dá para pensar nisso agora.
- Que horror, Macário... vamos sair daqui... Macário? Macário?! – Valtéria, igualmente paralisada, tentava chamar minha atenção.
- Valtéria... – consegui falar. – Chame a polícia. Depressa.
- Eu?! Mas e você?!
- Apenas chame a polícia. Não venha atrás de mim.
- Macário, o que você...?
Os minutos seguintes se processaram sem pensar. Minha cabeça ficou vazia de pensamentos, exceto um: tenho de enfrentar esses arruaceiros. Não vamos ter outro Cacique Galdino! Meus pés, não sei como, descolaram, afinal, do chão. E corri até a cena.
- PAREM! – gritei.
O rapaz da caixa de fósforos se voltou.
- Qual é?!
- Deixem esse mendigo em paz, seus...!!!
O que aconteceu a seguir, em minha memória, ficou cheio de lapsos. Mal deu para fixar, ou mesmo ouvir, o que os pitboys disseram, se é que disseram alguma coisa. Os dois primeiros segundos se apagaram; quando voltei a si, já estava engalfinhado, na rua, com os três pitboys. Infelizmente, eu era um, eles eram três. Mas aqueles três tinham uma forma física semelhante à minha, eram magros, não eram musculosos, não eram frequentadores de academia. Pude reparar que um deles tinha olhar de quem usava drogas. Esse foi o primeiro a cair para trás com um dos socos que desferi. Bem no olho já vermelho.
Foi um combate selvagem. Procurei bater, mas apanhei. Apanhei muito. Levei socos no rosto e no estômago. Mas alguma coisa dentro de mim me impedia de ficar caído no chão. Eu tinha de reagir! Cada vez que caía, só ficava um segundo no chão, depois levantava. Mantinha o foco na garrafa de álcool: se eu ficasse caído, capaz de eles despejarem o que sobrou na garrafa em mim, e atearem fogo em meu corpo! Não ia me render.
O mundo sumiu de minha volta, de repente. Teria recebido uma pancada? Ainda estava lutando? Ainda estava vivo? Estava dentro de um sonho ruim? Já estava morto? Está chovendo? Conseguiram atear fogo em meu corpo? Não lembro.
De alguma forma, consegui recuperar a consciência. Quando o mundo voltou, eu estava caído no chão, de costas, o corpo doía, minha roupa de sair estava suja de poeira e gotas de sangue. Senti gosto de sangue. Toquei minha cabeça: não, não saía sangue, nem da testa, nem do supercílio. Toquei meu nariz: saía sangue. Só tinha a boca para respirar – pelo nariz não havia condições. Acho que foi quebrado. Um de meus olhos levou um golpe, eu mal conseguia abri-lo, no que era acompanhado do outro olho, apesar de este não ter sofrido nada. Sentia o inchaço do olho golpeado. Quantos dentes será que perdi? Um rápido exame com a língua: não, nenhum dente quebrado. Mas não tinha certeza, minha língua estava amortecida. Havia sangue escorrendo de minha boca também. Algum osso quebrado? Tentei me mover. O corpo doía, mas, aparentemente, nada fora do lugar. Senti uma pontada na costela. Quebrou? Aaiii...
Procurei focalizar o cenário. Os três pitboys não estavam mais lá. Havia marcas da agressão nas paredes do muro, na calçada em redor. Tinha a sensação de que meu corpo fora molhado. Teria o pitboy da garrafa despejado o álcool em cima de mim? Não. O cheiro desagradável indicava outra coisa: haviam urinado sobre mim. Em algum momento, quando perdi a consciência, eles haviam feito xixi sobre meu corpo! Era só o que faltava! Que humilhação... Mas devem ter desistido de colocar fogo em mim. Decerto, depois da quantidade de socos e chutes que distribuí. Lembro, vagamente, que consegui romper o supercílio de um deles. Que consegui acertar uma voadora no queixo de um deles, e ele batera a cabeça na parede... Do drogado em quem consegui acertar o soco no olho...
Onde estava? Estaria morto? Não... Parece o mesmo cenário. A mesma rua onde lutei para defender um mendigo de...
Quando ergo os olhos, ali está o mendigo, ajoelhado, me amparando.
- Jovem... você está bem?
Desenrolado dos cobertores, nenhum sinal de que teve o corpo molhado – álcool evapora depressa. Pela fisionomia, era mesmo um índio. Um índio velho. Os cabelos grisalhos, que saíam do chapéu de aba larga, com um penacho espetado, chegavam até os ombros. O rosto era marcado pelo tempo, havia apenas um hematoma no lado de seu rosto, os pitboys concentraram seus golpes no corpo. Decerto, pelas marcas do tempo que ele já trazia consigo, ele já lutou muito por seu povo. Suas roupas eram simples, despojadas, com um casaco leve por cima. Só estavam sujas, então não devia fazer muito tempo que estava sendo obrigado a dormir na rua. Devia estar apenas de passagem pela cidade, já iria voltar para sua gente, mas só encontrara a rua para descansar, ninguém foi capaz de oferecer acolhida a um índio. Sociedade cruel. Mas não havia hálito de bebida saindo de sua boca – ele não bebera. Decerto sequer bebia, já devia saber dos males que o álcool provocava em pessoas de seu povo.
- Ungh... – consegui responder.
- Sente algum osso quebrado?
- N... não sei nem se ainda estou vivo... nós dois morremos?
- Não. Estamos vivos, jovem.
- Vivos?! Não acredito. Ah, ah... – a tentativa de rir fez minha costela doer. – Eles te mataram também...
- Não. Estamos vivos, sim. Graças a ti, e a teu sacrifício.
- Sacrifício?
- Não consigo pensar em outra palavra para definir o seu ato, jovem.
O índio parecia sorrir. Era só o que faltava. Eu estava todo estropiado e o índio, que sofrera menos que eu, ainda fazia graça de meu sofrimento. Sacrifício, eu?!
- Ambos estaríamos mortos por aqueles desalmados se não fosse por você. Você se sacrificou, veio ajudar um simples índio desabrigado. Esta cidade é hostil, cheia de gente que maltrata inocentes por diversão. Você foi diferente...
- Eu estou vivo?!
- Pode levantar?
- Não sei...
O índio velho parecia não ter sofrido nada. Ele me ajudou a me levantar. As pernas doíam, mas nada quebrado. Consegui me firmar em pé. Consegui olhar para minhas mãos. Havia sangue nelas, mas nenhum corte ou arranhão, então não era meu. Ou era o do meu nariz, quando passei a mão para limpar? Ainda havia sangue em meu nariz, sentia-o caindo sobre meus lábios. O velho índio parecia estar fazendo uma espécie de magia para ajudar a me recompor, ouvia-o sussurrando palavras indistinguíveis em voz baixa. Eu estava cambaleante, mas acho que seria capaz de sair de lá andando.
- Você parece bem, jovem. Pode andar. Pode procurar a polícia. Pode procurar o hospital. Você lembra a fisionomia dos arruaceiros?
- Agora não sei... Mas e você? Está bem?
- Meu corpo dói devido aos golpes que sofri, mas não sinto nada grave. Ainda bem que estava enrolado naqueles cobertores. É tudo de que disponho enquanto estou aqui, mas já estou a caminho da minha reserva... Você sofreu mais impacto que eu por causa das roupas finas, jovem. Está até com um “bigode” de sangue saindo do nariz... E... oh não. Mijaram sobre você!
- Como se eu não pudesse perceber... ah, ah... – tentei rir de novo, mas senti a pontada nas costelas outra vez. – A Valtéria não chamou a polícia?! Tenho poucas e boas para explicar...
- Quem é Valtéria?
Olho em volta. Na rua, não há mais ninguém passando. Sequer um carro ocupado – havia alguns estacionados, mas ninguém dentro. Estava tudo deserto. Só um ou outro bicho – um gato, um pássaro noturno – nos observando, sob a luz de um poste elétrico. A maioria das pessoas está aproveitando o final do domingo em suas casas, vendo televisão. Por que eu não fiz o mesmo? Haviam janelas próximas, como nenhuma se abriu para ver um rapaz sendo agredido? Pior: nem Valtéria estava nos arredores. Fugiu? Foi procurar um policial? Os pitboys foram atrás dela?
Me senti negativo, bateu a depressão. Apanhei, urinaram sobre meu corpo... e aqueles bandidos, na pior das hipóteses, poderiam agora estar estuprando a loira formosa com quem passei o final de semana. Não é possível. Nós tivemos um sábado e um domingo de muito sexo e prazer; ela comeu três hambúrgueres em minha casa. E agora, está sendo vítima de uma tragédia... como sou patético... Estou pagando com esse tipo de sofrimento o preço pelo prazer sentido? Por que estou pensando isso? Está certo, era só mais uma garota, dentre tantas com as quais passei fins de semana, mas... ela não merecia ser maltratada por bandidos... bandidos que eu atrevi a enfrentar, não sei por quê... Senti uma lágrima se formando no olho não machucado.
- Jovem... que tem?
- Eles... eles foram atrás da Valtéria... Eles estão fazendo mal a ela... posso sentir... eu... eu... eu não posso defende-la, eu...
- Olhe para mim, jovem.
O velho índio me fez olhar em seus olhos. Fiquei assustado. Ele estava vendo através de meus olhos, inclusive pelo que estava machucado?! De alguma forma, consegui abrir bem o olho inchado, e o outro acompanhou. Eu não conseguia nem piscar. Nem ele piscava.
- Jovem. Posso ver através de seu coração. Você está preocupado. Há alguém, decerto uma garota, com quem você está preocupado.
- S...
- Você, jovem, é despreocupado por natureza, posso ver. Posso ver que você, normalmente, se deixa levar por vícios. Bebida, luxúria, despreocupação. Escolheu viver do lado da escuridão, da noite. Mas sabe se controlar. Não abusa. Vejo que você, apesar da luxúria, é responsável. É capaz de se sentir mal por alguém. Busca diversão, mas também busca dentro de si alguma consciência. No fundo do poço de vícios existe um bom coração.
            Hein?! Como ele conseguia saber a respeito de minha vida?! Ele estava mesmo lendo meu coração, minha mente?!
            - Você demonstrou esse bom coração ao enfrentar três desalmados para salvar um desabrigado. Para salvar alguém que você não sabia quem era, mas que estava sendo espancado. Você é bom samaritano. Não é perfeito, mas é bom samaritano.
            Eu ainda me perguntava por que corri para ajudar o índio. Não o conhecia, não sabia quem era, verdade. Nem sabia que era um índio. Apanhei feito um boneco de Judas de Sábado de Aleluia para impedir que um índio fosse queimado. E, pateticamente, deixei uma garota na esquina, sabe-se lá se estava bem ou se os pitboys a pegaram e...
            - Preste atenção, jovem. – continuou o índio, cujo rosto ficara severo de repente. – Preste atenção. Há gente maligna de olho em você.
            Hein? O índio estava fazendo profecia? Pensando bem, reparando melhor, o índio tinha jeito de ser um feiticeiro de sua tribo. Pajé, como dizem. Será que o que ele estava fazendo era uma profecia? Eu corria perigo? Calma, Macário, deixe o índio falar até o fim. Entre na dele...
            - Por tua opção em andar na escuridão da noite ao invés da segurança do dia, há gente maligna de olho em você. Nesta cidade se escondem forças obscuras. A cidade é ideal para essas forças se esconderem, jovem. Fique atento, jovem: há gente maligna de olho em você. Gente que possui o mal dentro. E quer te atrair para o lado da escuridão eterna. Da destruição. Da morte. Dos vícios os quais você não conseguirá sair vivo.
            Como? Eu... vou morrer?! Estou condenado a morrer se continuar frequentando festas... se continuar trocando o dia pela noite?! Comecei a ficar assustado.
            - Essas pessoas cheias de forças malignas tentarão te atrair para a perdição da qual você até agora se manteve seguro, jovem. Fique atento: você saberá identificar essas forças. Você vai saber se as pessoas com quem de agora em diante manteres relações são boas ou más, se elas vão querer ou não sugar de você aquilo que o mantém vivo. Mas não vai ser suficiente. Você deverá estar protegido. Você precisa de uma barreira de proteção.
            - Bem, eu...
            - Eu posso ver, jovem, que você precisa se imunizar das ameaças das forças malignas. Não se preocupe, sou feiticeiro, vou criar uma proteção para ti. É o mínimo que posso fazer por você ter salvado minha vida.
            - Feiticeiro? Você é... pajé?
            - Sim. Se isso lhe interessar, sou. Você é cristão?
            - Sou. Quero dizer, não exatamente. Fui batizado como cristão, mas... hum... não sou praticante. Digo, sou do tipo que vai à igreja só de vez em quando, e...
            - Sei. Pude ver isso quando olhei em teus olhos. Seu lado temente a Deus está escondido, mas se manifesta quando lhes é conveniente. Eu também fui batizado cristão, frequento igreja, mas estou dividido entre a religião do homem branco e a religião de meu povo. Sou feiticeiro, curandeiro, pajé. Longe dos olhos do homem branco. Mas acredito que o Deus do homem branco e o meu são os mesmos, então não estou fazendo nada errado.
            Cada um acredita no que quiser, nada tenho contra. Por meu turno, eu já estava tendendo a não acreditar em Deus, se ele existia – por algum tempo, em minha vida, acreditava em Deus, depois comecei a relaxar um pouco no que alguns chamam de fé. Talvez porque alguns de meus amigos se tornaram partidários do comunismo, e esses passaram a adotar o ateísmo, o pensamento de que “religião é o ópio do povo”, etc. Geralmente, só ia a igrejas se alguém me convidasse para assistir a uma missa, um culto – duas garotas com quem saí me propuseram isso, mas não foi o suficiente para me converter. Em vez disso, creio que eu que as converti... para a luxúria.
Bem, o índio estava certo, eu só evoco a Deus quando me é conveniente, como, por exemplo, em situações de extremo perigo. Lembro que houve um momento em que evoquei a Deus no momento em que apanhava. Será que Deus, seja qual aparência ele tenha, estaria esperando que eu me arrependesse da vida que eu levava até este momento e... me convertesse? Depois de ter minha vida salva por milagre? O que ele colocava diante de mim era um teste para ver se eu me convertia? Não... por mais “testes” que ele pusesse diante de mim, eu não tinha essa inclinação sincera. E não seria agora, diante de um índio velho, se é que Deus estivesse assumindo, nesse momento, a face de um índio velho. Deus que espere...
            Enquanto pensava, o pajé abria minha camisa, descobrindo meu peito. O que ele ia...? Mas a camisa só foi desabotoada até a metade. Ele depois ensopou o polegar enrugado no sangue que escorria de meu nariz, e, recitando em voz baixa palavras na língua de seu povo, ele fez rápidas marcas na região de meu coração. Formou uma espécie de flor com meu sangue.
            Depois, ele tirou, de dentro de sua roupa, um minúsculo ornamento. Reconhecia o artefato: era um apanhador de sonhos. Uma rede de linha colorida costurada em um pequeno aro, enfeitado com uma pena de pássaro e uma pedrinha brilhante bem no meio da teia. O artefato estava preso a uma corda, amarrada como um colar. Conhecia aquele símbolo: saí com uma garota que usava apanhadores de sonho como brincos, feitos por artesãos hippies. Ela inclusive me explicou sua finalidade – servia para prender o mal e impedir pesadelos, algo assim. Mas não sei se o apanhador de sonhos fazia parte da cultura da tribo do pajé, ou se era de outra cultura indígena, mas ele resolveu adotar, na base de que todos os índios da América se entendem, e precisam se entender depois que o homem branco passou pela vida deles.
O pajé passou o dedo sujo de sangue na pedrinha, e, depois, pendurou o apanhador de sonhos no meu pescoço. Posicionou-o no centro da flor desenhada em meu peito e recitou mais palavras em língua desconhecida. Senti, de repente, uma onda de calor saindo de meu coração e se irradiando em meu corpo. Que sensação esquisita, mas não durou mais que cinco segundos.
            - Pronto. – falou, afinal, o pajé. – Leve sempre este artefato com você, e as forças malignas não lhe tocarão. O sangue você pode lavar, mas o artefato, leve sempre com você.
            De alguma forma, comecei a me sentir muito bem, mais calmo. A presença do pajé me fez sentir tão bem. Esqueci até as dores em me corpo. Queria dizer tanta coisa, mas, tudo o que consegui dizer foi:
            - Eu... hum... obrigado, senhor...
            - Mateus.
            Mateus?! Mateus é nome de pajé?!
            - No mundo dos brancos recebi o nome de Mateus. E o seu nome, jovem?
            - Macário.
            - Macário. Leve sempre este apanhador com você. É sua proteção contra as forças das trevas que querem lhe engolir. Acredite: em breve, o mal haverá de cruzar seu caminho. O mal, na forma de criaturas da noite. Fique atento. Um jovem de boa alma como você não pode sucumbir facilmente às forças das trevas. Precisando de alguma coisa, nós nos encontraremos novamente.
            Fiquei calado. E fiquei novamente preso ao chão, por forças invisíveis, enquanto o velho Mateus recolhia os cobertores, os enrolava, os punha embaixo do braço, me disse, novamente, um “obrigado”, e saiu andando. Só pude vê-lo sendo engolido pela noite, levando os cobertores. O único movimento que consegui fazer foi o de abotoar a camisa, sem sequer olhar para os botões. De resto, só fiquei olhando o pajé se afastar.
            Fazia parte da magia dele que eu tivesse ficado paralisado, só vendo-o se afastar para um destino que eu ignorava? Já estaria ele a caminho de sua aldeia? Nem perguntar o que ele fazia aqui, na cidade, tive chance... Teria sido acaso esse nosso encontro?
De que forças malignas ele estava falando? Seriam garotas rancorosas? Oh, não: estaria a Viridiana planejando vingança contra o que fiz com sua companheira de quarto Valtéria? Seria a Valtéria querendo se vingar de mim porque a deixei sozinha?! Os pitboys voltariam para se vingar de mim? Será que...
            - Macário!!! – ouvi alguém gritar atrás de mim, finalmente me descolando do chão.
            Era Valtéria! E vinha correndo na minha direção.
            - Macário! Você está bem!!!
            Ela me abraçou. Ela estava bem!
            - Oh, Macário! Você está vivo!!!
            - Valtéria! Você está bem!
            Ela estava assustada, mais do que eu. Mas estava bem. Ufa: meus piores temores não se concretizaram.
            - Macário, eu... eu estive tão preocupada que... que... que fedor! – ela me soltou de repente. – Macário, você está fedendo mijo?!
            - Eu... eles, aqueles bandidos... eles devem ter mijado em mim.
            - Macário, você precisa falar para a polícia o que houve!
            - E você? Não foi chamar a polícia, como eu falei?
            - Eu tentei, mas não encontrei. Eu saí no momento em que eu vi você apanhando daqueles três... me escondi e eles não me acharam, eu vi eles chegando, e... Macário, eu...
            Esquecendo o asco, ela me abraçou de novo. E me dá um beijo na boca, sentindo o gosto do sangue em meus lábios.
            - Macário, por que você foi enfrentar aqueles bandidos?!
            - Eu... eu não sei, Valtéria. Não sei o que me deu.
            - E agora você está todo machucado... Você precisa tratar essas feridas...
            - Sim, mas eu estou bem, Valtéria. Estou vivo, não se preocupe.
            E ela me beija de novo. Depois, fica lambendo os beiços.
            - Valtéria, você está chupando meu sangue?!
            - Oh, desculpe, Macário... É que... sabe que seu sangue tem gosto bom?
            - Isso... chupe o sangue de alguém em quem mijaram em cima, também...
            Nós rimos. Mas eu senti a pontada na costela. As dores estavam voltando.
            - Oh, Macário. Melhor irmos para casa. Aqui é muito perigoso ficar. Está muito perigoso ficar aqui...
            - Talvez seja melhor. Ou talvez procurarmos a polícia...
            - De que adianta, Macário? Os bandidos foram embora. Não sei para onde. E só não liguei para a polícia com meu telefone porque aí já seria tarde demais, eles já teriam sumido quando ela chegasse... Só espero que não voltem. Espero que a polícia os flagre em outra arruaça...
            Ela me abraça de novo. Mas não me beija. Ela se afasta: sentira algo em meu peito.
            - Macário, o que é isso?
            - Isso o quê?
            - Em seu peito.
            Ela desabotoa minha camisa. E puxa dali o apanhador de sonhos.
            - O que é isso?
            - Um apanhador de sonhos.
            - Sei, mas você não usava isso quando saímos de casa.
            - Ganhei agora, do pajé.
            - Que pajé?
            - O homem em quem os bandidos iam colocar fogo... era um índio. E era um pajé, um feiticeiro. Ele fez uma espécie de magia em mim para...
            - Magia... Sei não, Macário. É assim que o mendigo te agradece por ter salvado a vida dele? Te dando isso? – Ela disse, com uma expressão de desaprovação.
            - Bem, de que outra forma ele poderia agradecer? Ele estava dormindo na rua. Dinheiro ele não devia ter... E algo me diz que não posso jogar isto fora.
            - Deixe para lá. Vamos para casa, Macário. Você precisa de um novo banho. E de carinho para sarar teus machucados, meu valente... Eu sei fazer melhor do que um índio mixuruca que só soube te dar um colar...
            E me agarra, e me beija de novo, sorvendo mais do sangue de minha boca, apesar de o “bigode” que saía de meu nariz já estar praticamente coagulado. Só queria ter um espelho para ver como eu estava...
            - Não me diga que você acredita em magia de índio, Macário...
            - Bem, eu não sei agora...
            E me puxa para irmos para casa. Decerto, a coitada estava, sim, apaixonada por mim. Ainda mais quando presenciou a mim, enfrentando bandidos que espancavam um velho índio. Quando impedi o novo Galdino. Estava orgulhoso de mim mesmo. Talvez eu assumisse mesmo a relação com a Valtéria, depois que eu a coloquei em risco para...
            Porém, a desgraça ainda não havia terminado.
            Levamos um grande susto quando passávamos por uma casa com um muro alto.
            De repente, um vulto todo escuro saltou agilmente esse muro. Seus movimentos eram mais rápidos do que eu conseguia distinguir com meus olhos inchados. E o poste mais próximo não iluminava direito. Seria um morcego gigante? Um vampiro? Um Batman? Tudo o que pude distinguir era que ele ostentava uma gigantesca capa preta. Ou era um sobretudo escuro esvoaçante?
            Não sei... Tudo o que sei é que a criatura saltou do muro para cima de mim. Como eu estava mais ensanguentado, ele deve ter me escolhido para...
            Em um ato reflexo, consegui me defender do primeiro ataque, agarrando os braços da criatura, mas ela me derrubou no chão. Praticamente desapareci sob o tecido preto. Só consegui distinguir o olhar faminto da criatura, e dois dentes pontiagudos, prontos para me morder. E que seu cabelo era claro.
            Tudo o que consegui gritar foi um “Fuja, Valtéria!! Fuja!!!”, mas não pude ver o que aconteceu com ela, se escapou ou não.

            Senti duas agulhadas no meu pescoço. Depois perdi os sentidos.

A princípio, o próximo capítulo sairá daqui a quinze dias... se eu não resolver mudar e começar a fazer os capítulos semanais. Aguardem. A novela continua.
Até mais!

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