Hoje, enquanto escrevo, é domingo. E, como já se foram duas semanas, neste domingo tem novo capítulo de MACÁRIO, o folhetim! Agora, estamos chegando ao clímax da história do rapaz da vida noturna.
ATENÇÃO: não recomendado a menores de 18 anos. O presente capítulo, desta vez, contém cenas de violência.
Um pressentimento ruim passou por minha
espinha no momento em que, acompanhado pela garota com a qual passei o fim de
semana, vi, na outra ponta da rua onde estávamos, três vultos se aproximando de
um mendigo que estava deitado, ali, na esquina.
Meu pressentimento ruim se confirmou quando
aqueles três vultos começaram a chutar e espancar o mendigo. Fiquei
praticamente colado ao chão.
O mendigo, no entanto, parecia não estar
dando sinais de sofrimento; ele estava enrolado em uma grossa camada de
cobertores velhos e sujos, porem quase intactos, e eles deveriam estar
absorvendo a força do impacto dos chutes e dos socos desferidos. Seria pior se
eles estivessem com pedaços de madeira ou ferro nas mãos, mas...
Os três vultos eram de jovens, usavam roupas
claras, de verão. Adolescentes arruaceiros, possivelmente daqueles playboys de
classe média alta, que se divertem agredindo pessoas de rua. Podia ouvi-los
rindo. Rindo com selvageria.
Algo me fez paralisar no chão, ficar sem me
mover, a observar as cenas de selvageria, mesmo com Valtéria tentando me chamar
a atenção, me puxar para sair dali. Uma voz dentro de mim dizia que eu devia ir
lá, auxiliar o mendigo, impedir os pitboys de matarem o pobre azarado de estar
no caminho deles.
E eu tinha de fazer isso rápido: depois que o
mendigo, devido ao espancamento, ficou deitado, imóvel, um dos pitboys sacou
uma garrafa – pelo formato, era uma garrafa de álcool líquido – e despejou
sobre a vítima, encharcando os cobertores. Outro já sacava uma caixa de
fósforos.
O que estava me prendendo ao chão? Estaria eu
querendo mesmo ver se eles iriam colocar fogo em mais um índio? Ei, como eu
sabia que o mendigo era um índio, saído de sua aldeia ou reserva, provavelmente
para negociar com homens brancos a respeito de questões de sua terra, e que
teve de dormir na rua porque não conseguira acolhida nesta cidade hostil? O
mendigo seria mesmo um índio?
Não é possível: o mendigo ia se tornar mais
um Cacique Galdino! Um índio que, há algum tempo atrás, causou comoção nacional
quando morreu após ter seu corpo queimado por cinco jovens que, levados a
julgamento, foram até presos, mas depois foram soltos. Que ano foi mesmo? Eles
saíram mesmo impunes do episódio? Não, não dá para pensar nisso agora.
- Que horror, Macário... vamos sair daqui...
Macário? Macário?! – Valtéria, igualmente paralisada, tentava chamar minha atenção.
- Valtéria... – consegui falar. – Chame a
polícia. Depressa.
- Eu?! Mas e você?!
- Apenas chame a polícia. Não venha atrás de
mim.
- Macário, o que você...?
Os minutos seguintes se processaram sem
pensar. Minha cabeça ficou vazia de pensamentos, exceto um: tenho de enfrentar
esses arruaceiros. Não vamos ter outro Cacique Galdino! Meus pés, não sei como,
descolaram, afinal, do chão. E corri até a cena.
- PAREM! – gritei.
O rapaz da caixa de fósforos se voltou.
- Qual é?!
- Deixem esse mendigo em paz, seus...!!!
O que aconteceu a seguir, em minha memória,
ficou cheio de lapsos. Mal deu para fixar, ou mesmo ouvir, o que os pitboys
disseram, se é que disseram alguma coisa. Os dois primeiros segundos se
apagaram; quando voltei a si, já estava engalfinhado, na rua, com os três
pitboys. Infelizmente, eu era um, eles eram três. Mas aqueles três tinham uma
forma física semelhante à minha, eram magros, não eram musculosos, não eram
frequentadores de academia. Pude reparar que um deles tinha olhar de quem usava
drogas. Esse foi o primeiro a cair para trás com um dos socos que desferi. Bem
no olho já vermelho.
Foi um combate selvagem. Procurei bater, mas
apanhei. Apanhei muito. Levei socos no rosto e no estômago. Mas alguma coisa
dentro de mim me impedia de ficar caído no chão. Eu tinha de reagir! Cada vez
que caía, só ficava um segundo no chão, depois levantava. Mantinha o foco na
garrafa de álcool: se eu ficasse caído, capaz de eles despejarem o que sobrou
na garrafa em mim, e atearem fogo em meu corpo! Não ia me render.
O mundo sumiu de minha volta, de repente.
Teria recebido uma pancada? Ainda estava lutando? Ainda estava vivo? Estava
dentro de um sonho ruim? Já estava morto? Está chovendo? Conseguiram atear fogo
em meu corpo? Não lembro.
De alguma forma, consegui recuperar a
consciência. Quando o mundo voltou, eu estava caído no chão, de costas, o corpo
doía, minha roupa de sair estava suja de poeira e gotas de sangue. Senti gosto
de sangue. Toquei minha cabeça: não, não saía sangue, nem da testa, nem do
supercílio. Toquei meu nariz: saía sangue. Só tinha a boca para respirar – pelo
nariz não havia condições. Acho que foi quebrado. Um de meus olhos levou um
golpe, eu mal conseguia abri-lo, no que era acompanhado do outro olho, apesar
de este não ter sofrido nada. Sentia o inchaço do olho golpeado. Quantos dentes
será que perdi? Um rápido exame com a língua: não, nenhum dente quebrado. Mas
não tinha certeza, minha língua estava amortecida. Havia sangue escorrendo de
minha boca também. Algum osso quebrado? Tentei me mover. O corpo doía, mas,
aparentemente, nada fora do lugar. Senti uma pontada na costela. Quebrou?
Aaiii...
Procurei focalizar o cenário. Os três pitboys
não estavam mais lá. Havia marcas da agressão nas paredes do muro, na calçada
em redor. Tinha a sensação de que meu corpo fora molhado. Teria o pitboy da
garrafa despejado o álcool em cima de mim? Não. O cheiro desagradável indicava
outra coisa: haviam urinado sobre mim. Em algum momento, quando perdi a
consciência, eles haviam feito xixi sobre meu corpo! Era só o que faltava! Que
humilhação... Mas devem ter desistido de colocar fogo em mim. Decerto, depois
da quantidade de socos e chutes que distribuí. Lembro, vagamente, que consegui
romper o supercílio de um deles. Que consegui acertar uma voadora no queixo de
um deles, e ele batera a cabeça na parede... Do drogado em quem consegui
acertar o soco no olho...
Onde estava? Estaria morto? Não... Parece o
mesmo cenário. A mesma rua onde lutei para defender um mendigo de...
Quando ergo os olhos, ali está o mendigo,
ajoelhado, me amparando.
- Jovem... você está bem?
Desenrolado dos cobertores, nenhum sinal de
que teve o corpo molhado – álcool evapora depressa. Pela fisionomia, era mesmo
um índio. Um índio velho. Os cabelos grisalhos, que saíam do chapéu de aba
larga, com um penacho espetado, chegavam até os ombros. O rosto era marcado
pelo tempo, havia apenas um hematoma no lado de seu rosto, os pitboys
concentraram seus golpes no corpo. Decerto, pelas marcas do tempo que ele já
trazia consigo, ele já lutou muito por seu povo. Suas roupas eram simples,
despojadas, com um casaco leve por cima. Só estavam sujas, então não devia
fazer muito tempo que estava sendo obrigado a dormir na rua. Devia estar apenas
de passagem pela cidade, já iria voltar para sua gente, mas só encontrara a rua
para descansar, ninguém foi capaz de oferecer acolhida a um índio. Sociedade
cruel. Mas não havia hálito de bebida saindo de sua boca – ele não bebera.
Decerto sequer bebia, já devia saber dos males que o álcool provocava em
pessoas de seu povo.
- Ungh... – consegui responder.
- Sente algum osso quebrado?
- N... não sei nem se ainda estou vivo... nós
dois morremos?
- Não. Estamos vivos, jovem.
- Vivos?! Não acredito. Ah, ah... – a
tentativa de rir fez minha costela doer. – Eles te mataram também...
- Não. Estamos vivos, sim. Graças a ti, e a
teu sacrifício.
- Sacrifício?
- Não consigo pensar em outra palavra para
definir o seu ato, jovem.
O índio parecia sorrir. Era só o que faltava.
Eu estava todo estropiado e o índio, que sofrera menos que eu, ainda fazia
graça de meu sofrimento. Sacrifício, eu?!
- Ambos estaríamos mortos por aqueles
desalmados se não fosse por você. Você se sacrificou, veio ajudar um simples
índio desabrigado. Esta cidade é hostil, cheia de gente que maltrata inocentes
por diversão. Você foi diferente...
- Eu estou vivo?!
- Pode levantar?
- Não sei...
O índio velho parecia não ter sofrido nada.
Ele me ajudou a me levantar. As pernas doíam, mas nada quebrado. Consegui me
firmar em pé. Consegui olhar para minhas mãos. Havia sangue nelas, mas nenhum
corte ou arranhão, então não era meu. Ou era o do meu nariz, quando passei a
mão para limpar? Ainda havia sangue em meu nariz, sentia-o caindo sobre meus
lábios. O velho índio parecia estar fazendo uma espécie de magia para ajudar a
me recompor, ouvia-o sussurrando palavras indistinguíveis em voz baixa. Eu estava
cambaleante, mas acho que seria capaz de sair de lá andando.
- Você parece bem, jovem. Pode andar. Pode
procurar a polícia. Pode procurar o hospital. Você lembra a fisionomia dos
arruaceiros?
- Agora não sei... Mas e você? Está bem?
- Meu corpo dói devido aos golpes que sofri,
mas não sinto nada grave. Ainda bem que estava enrolado naqueles cobertores. É
tudo de que disponho enquanto estou aqui, mas já estou a caminho da minha
reserva... Você sofreu mais impacto que eu por causa das roupas finas, jovem. Está
até com um “bigode” de sangue saindo do nariz... E... oh não. Mijaram sobre
você!
- Como se eu não pudesse perceber... ah,
ah... – tentei rir de novo, mas senti a pontada nas costelas outra vez. – A
Valtéria não chamou a polícia?! Tenho poucas e boas para explicar...
- Quem é Valtéria?
Olho em volta. Na rua, não há mais ninguém
passando. Sequer um carro ocupado – havia alguns estacionados, mas ninguém
dentro. Estava tudo deserto. Só um ou outro bicho – um gato, um pássaro noturno
– nos observando, sob a luz de um poste elétrico. A maioria das pessoas está
aproveitando o final do domingo em suas casas, vendo televisão. Por que eu não
fiz o mesmo? Haviam janelas próximas, como nenhuma se abriu para ver um rapaz
sendo agredido? Pior: nem Valtéria estava nos arredores. Fugiu? Foi procurar um
policial? Os pitboys foram atrás dela?
Me senti negativo, bateu a depressão.
Apanhei, urinaram sobre meu corpo... e aqueles bandidos, na pior das hipóteses,
poderiam agora estar estuprando a loira formosa com quem passei o final de
semana. Não é possível. Nós tivemos um sábado e um domingo de muito sexo e
prazer; ela comeu três hambúrgueres em minha casa. E agora, está sendo vítima
de uma tragédia... como sou patético... Estou pagando com esse tipo de
sofrimento o preço pelo prazer sentido? Por que estou pensando isso? Está
certo, era só mais uma garota, dentre tantas com as quais passei fins de semana,
mas... ela não merecia ser maltratada por bandidos... bandidos que eu atrevi a
enfrentar, não sei por quê... Senti uma lágrima se formando no olho não
machucado.
- Jovem... que tem?
- Eles... eles foram atrás da Valtéria...
Eles estão fazendo mal a ela... posso sentir... eu... eu... eu não posso
defende-la, eu...
- Olhe para mim, jovem.
O velho índio me fez olhar em seus olhos.
Fiquei assustado. Ele estava vendo através de meus olhos, inclusive pelo que
estava machucado?! De alguma forma, consegui abrir bem o olho inchado, e o
outro acompanhou. Eu não conseguia nem piscar. Nem ele piscava.
- Jovem. Posso ver através de seu coração.
Você está preocupado. Há alguém, decerto uma garota, com quem você está
preocupado.
- S...
- Você, jovem, é despreocupado por natureza,
posso ver. Posso ver que você, normalmente, se deixa levar por vícios. Bebida,
luxúria, despreocupação. Escolheu viver do lado da escuridão, da noite. Mas
sabe se controlar. Não abusa. Vejo que você, apesar da luxúria, é responsável.
É capaz de se sentir mal por alguém. Busca diversão, mas também busca dentro de
si alguma consciência. No fundo do poço de vícios existe um bom coração.
Hein?! Como ele conseguia saber a
respeito de minha vida?! Ele estava mesmo lendo meu coração, minha mente?!
- Você demonstrou esse bom coração
ao enfrentar três desalmados para salvar um desabrigado. Para salvar alguém que
você não sabia quem era, mas que estava sendo espancado. Você é bom samaritano.
Não é perfeito, mas é bom samaritano.
Eu ainda me perguntava por que corri
para ajudar o índio. Não o conhecia, não sabia quem era, verdade. Nem sabia que
era um índio. Apanhei feito um boneco de Judas de Sábado de Aleluia para
impedir que um índio fosse queimado. E, pateticamente, deixei uma garota na
esquina, sabe-se lá se estava bem ou se os pitboys a pegaram e...
- Preste atenção, jovem. – continuou
o índio, cujo rosto ficara severo de repente. – Preste atenção. Há gente
maligna de olho em você.
Hein? O índio estava fazendo
profecia? Pensando bem, reparando melhor, o índio tinha jeito de ser um
feiticeiro de sua tribo. Pajé, como dizem. Será que o que ele estava fazendo
era uma profecia? Eu corria perigo? Calma, Macário, deixe o índio falar até o
fim. Entre na dele...
- Por tua opção em andar na
escuridão da noite ao invés da segurança do dia, há gente maligna de olho em
você. Nesta cidade se escondem forças obscuras. A cidade é ideal para essas
forças se esconderem, jovem. Fique atento, jovem: há gente maligna de olho em
você. Gente que possui o mal dentro. E quer te atrair para o lado da escuridão
eterna. Da destruição. Da morte. Dos vícios os quais você não conseguirá sair
vivo.
Como? Eu... vou morrer?! Estou
condenado a morrer se continuar frequentando festas... se continuar trocando o
dia pela noite?! Comecei a ficar assustado.
- Essas pessoas cheias de forças
malignas tentarão te atrair para a perdição da qual você até agora se manteve
seguro, jovem. Fique atento: você saberá identificar essas forças. Você vai saber
se as pessoas com quem de agora em diante manteres relações são boas ou más, se
elas vão querer ou não sugar de você aquilo que o mantém vivo. Mas não vai ser
suficiente. Você deverá estar protegido. Você precisa de uma barreira de
proteção.
- Bem, eu...
- Eu posso ver, jovem, que você
precisa se imunizar das ameaças das forças malignas. Não se preocupe, sou
feiticeiro, vou criar uma proteção para ti. É o mínimo que posso fazer por você
ter salvado minha vida.
- Feiticeiro? Você é... pajé?
- Sim. Se isso lhe interessar, sou.
Você é cristão?
- Sou. Quero dizer, não exatamente.
Fui batizado como cristão, mas... hum... não sou praticante. Digo, sou do tipo
que vai à igreja só de vez em quando, e...
- Sei. Pude ver isso quando olhei em
teus olhos. Seu lado temente a Deus está escondido, mas se manifesta quando
lhes é conveniente. Eu também fui batizado cristão, frequento igreja, mas estou
dividido entre a religião do homem branco e a religião de meu povo. Sou
feiticeiro, curandeiro, pajé. Longe dos olhos do homem branco. Mas acredito que
o Deus do homem branco e o meu são os mesmos, então não estou fazendo nada
errado.
Cada um acredita no que quiser, nada
tenho contra. Por meu turno, eu já estava tendendo a não acreditar em Deus, se
ele existia – por algum tempo, em minha vida, acreditava em Deus, depois
comecei a relaxar um pouco no que alguns chamam de fé. Talvez porque alguns de
meus amigos se tornaram partidários do comunismo, e esses passaram a adotar o
ateísmo, o pensamento de que “religião é o ópio do povo”, etc. Geralmente, só
ia a igrejas se alguém me convidasse para assistir a uma missa, um culto – duas
garotas com quem saí me propuseram isso, mas não foi o suficiente para me
converter. Em vez disso, creio que eu que as converti... para a luxúria.
Bem, o índio estava certo, eu só evoco a Deus
quando me é conveniente, como, por exemplo, em situações de extremo perigo. Lembro
que houve um momento em que evoquei a Deus no momento em que apanhava. Será que
Deus, seja qual aparência ele tenha, estaria esperando que eu me arrependesse
da vida que eu levava até este momento e... me convertesse? Depois de ter minha
vida salva por milagre? O que ele colocava diante de mim era um teste para ver
se eu me convertia? Não... por mais “testes” que ele pusesse diante de mim, eu
não tinha essa inclinação sincera. E não seria agora, diante de um índio velho,
se é que Deus estivesse assumindo, nesse momento, a face de um índio velho. Deus
que espere...
Enquanto pensava, o pajé abria minha
camisa, descobrindo meu peito. O que ele ia...? Mas a camisa só foi desabotoada
até a metade. Ele depois ensopou o polegar enrugado no sangue que escorria de
meu nariz, e, recitando em voz baixa palavras na língua de seu povo, ele fez
rápidas marcas na região de meu coração. Formou uma espécie de flor com meu
sangue.
Depois, ele tirou, de dentro de sua
roupa, um minúsculo ornamento. Reconhecia o artefato: era um apanhador de
sonhos. Uma rede de linha colorida costurada em um pequeno aro, enfeitado com
uma pena de pássaro e uma pedrinha brilhante bem no meio da teia. O artefato
estava preso a uma corda, amarrada como um colar. Conhecia aquele símbolo: saí
com uma garota que usava apanhadores de sonho como brincos, feitos por artesãos
hippies. Ela inclusive me explicou sua finalidade – servia para prender o mal e
impedir pesadelos, algo assim. Mas não sei se o apanhador de sonhos fazia parte
da cultura da tribo do pajé, ou se era de outra cultura indígena, mas ele
resolveu adotar, na base de que todos os índios da América se entendem, e
precisam se entender depois que o homem branco passou pela vida deles.
O pajé passou o dedo sujo de sangue na
pedrinha, e, depois, pendurou o apanhador de sonhos no meu pescoço.
Posicionou-o no centro da flor desenhada em meu peito e recitou mais palavras
em língua desconhecida. Senti, de repente, uma onda de calor saindo de meu
coração e se irradiando em meu corpo. Que sensação esquisita, mas não durou
mais que cinco segundos.
- Pronto. – falou, afinal, o pajé. –
Leve sempre este artefato com você, e as forças malignas não lhe tocarão. O
sangue você pode lavar, mas o artefato, leve sempre com você.
De alguma forma, comecei a me sentir
muito bem, mais calmo. A presença do pajé me fez sentir tão bem. Esqueci até as
dores em me corpo. Queria dizer tanta coisa, mas, tudo o que consegui dizer
foi:
- Eu... hum... obrigado, senhor...
- Mateus.
Mateus?! Mateus é nome de pajé?!
- No mundo dos brancos recebi o nome
de Mateus. E o seu nome, jovem?
- Macário.
- Macário. Leve sempre este
apanhador com você. É sua proteção contra as forças das trevas que querem lhe
engolir. Acredite: em breve, o mal haverá de cruzar seu caminho. O mal, na
forma de criaturas da noite. Fique atento. Um jovem de boa alma como você não
pode sucumbir facilmente às forças das trevas. Precisando de alguma coisa, nós
nos encontraremos novamente.
Fiquei calado. E fiquei novamente
preso ao chão, por forças invisíveis, enquanto o velho Mateus recolhia os
cobertores, os enrolava, os punha embaixo do braço, me disse, novamente, um
“obrigado”, e saiu andando. Só pude vê-lo sendo engolido pela noite, levando os
cobertores. O único movimento que consegui fazer foi o de abotoar a camisa, sem
sequer olhar para os botões. De resto, só fiquei olhando o pajé se afastar.
Fazia parte da magia dele que eu
tivesse ficado paralisado, só vendo-o se afastar para um destino que eu
ignorava? Já estaria ele a caminho de sua aldeia? Nem perguntar o que ele fazia
aqui, na cidade, tive chance... Teria sido acaso esse nosso encontro?
De que forças malignas ele estava falando?
Seriam garotas rancorosas? Oh, não: estaria a Viridiana planejando vingança
contra o que fiz com sua companheira de quarto Valtéria? Seria a Valtéria
querendo se vingar de mim porque a deixei sozinha?! Os pitboys voltariam para
se vingar de mim? Será que...
- Macário!!! – ouvi alguém gritar
atrás de mim, finalmente me descolando do chão.
Era Valtéria! E vinha correndo na
minha direção.
- Macário! Você está bem!!!
Ela me abraçou. Ela estava bem!
- Oh, Macário! Você está vivo!!!
- Valtéria! Você está bem!
Ela estava assustada, mais do que
eu. Mas estava bem. Ufa: meus piores temores não se concretizaram.
- Macário, eu... eu estive tão
preocupada que... que... que fedor! – ela me soltou de repente. – Macário, você
está fedendo mijo?!
- Eu... eles, aqueles bandidos...
eles devem ter mijado em mim.
- Macário, você precisa falar para a
polícia o que houve!
- E você? Não foi chamar a polícia,
como eu falei?
- Eu tentei, mas não encontrei. Eu
saí no momento em que eu vi você apanhando daqueles três... me escondi e eles
não me acharam, eu vi eles chegando, e... Macário, eu...
Esquecendo o asco, ela me abraçou de
novo. E me dá um beijo na boca, sentindo o gosto do sangue em meus lábios.
- Macário, por que você foi
enfrentar aqueles bandidos?!
- Eu... eu não sei, Valtéria. Não
sei o que me deu.
- E agora você está todo
machucado... Você precisa tratar essas feridas...
- Sim, mas eu estou bem, Valtéria.
Estou vivo, não se preocupe.
E ela me beija de novo. Depois, fica
lambendo os beiços.
- Valtéria, você está chupando meu
sangue?!
- Oh, desculpe, Macário... É que...
sabe que seu sangue tem gosto bom?
- Isso... chupe o sangue de alguém
em quem mijaram em cima, também...
Nós rimos. Mas eu senti a pontada na
costela. As dores estavam voltando.
- Oh, Macário. Melhor irmos para
casa. Aqui é muito perigoso ficar. Está muito perigoso ficar aqui...
- Talvez seja melhor. Ou talvez
procurarmos a polícia...
- De que adianta, Macário? Os
bandidos foram embora. Não sei para onde. E só não liguei para a polícia com
meu telefone porque aí já seria tarde demais, eles já teriam sumido quando ela
chegasse... Só espero que não voltem. Espero que a polícia os flagre em outra
arruaça...
Ela me abraça de novo. Mas não me
beija. Ela se afasta: sentira algo em meu peito.
- Macário, o que é isso?
- Isso o quê?
- Em seu peito.
Ela desabotoa minha camisa. E puxa
dali o apanhador de sonhos.
- O que é isso?
- Um apanhador de sonhos.
- Sei, mas você não usava isso
quando saímos de casa.
- Ganhei agora, do pajé.
- Que pajé?
- O homem em quem os bandidos iam
colocar fogo... era um índio. E era um pajé, um feiticeiro. Ele fez uma espécie
de magia em mim para...
- Magia... Sei não, Macário. É assim
que o mendigo te agradece por ter salvado a vida dele? Te dando isso? – Ela
disse, com uma expressão de desaprovação.
- Bem, de que outra forma ele
poderia agradecer? Ele estava dormindo na rua. Dinheiro ele não devia ter... E
algo me diz que não posso jogar isto fora.
- Deixe para lá. Vamos para casa,
Macário. Você precisa de um novo banho. E de carinho para sarar teus
machucados, meu valente... Eu sei fazer melhor do que um índio mixuruca que só
soube te dar um colar...
E me agarra, e me beija de novo,
sorvendo mais do sangue de minha boca, apesar de o “bigode” que saía de meu
nariz já estar praticamente coagulado. Só queria ter um espelho para ver como
eu estava...
- Não me diga que você acredita em
magia de índio, Macário...
- Bem, eu não sei agora...
E me puxa para irmos para casa.
Decerto, a coitada estava, sim, apaixonada por mim. Ainda mais quando
presenciou a mim, enfrentando bandidos que espancavam um velho índio. Quando
impedi o novo Galdino. Estava orgulhoso de mim mesmo. Talvez eu assumisse mesmo
a relação com a Valtéria, depois que eu a coloquei em risco para...
Porém, a desgraça ainda não havia
terminado.
Levamos um grande susto quando
passávamos por uma casa com um muro alto.
De repente, um vulto todo escuro saltou
agilmente esse muro. Seus movimentos eram mais rápidos do que eu conseguia
distinguir com meus olhos inchados. E o poste mais próximo não iluminava
direito. Seria um morcego gigante? Um vampiro? Um Batman? Tudo o que pude
distinguir era que ele ostentava uma gigantesca capa preta. Ou era um sobretudo
escuro esvoaçante?
Não sei... Tudo o que sei é que a
criatura saltou do muro para cima de mim. Como eu estava mais ensanguentado,
ele deve ter me escolhido para...
Em um ato reflexo, consegui me
defender do primeiro ataque, agarrando os braços da criatura, mas ela me
derrubou no chão. Praticamente desapareci sob o tecido preto. Só consegui
distinguir o olhar faminto da criatura, e dois dentes pontiagudos, prontos para
me morder. E que seu cabelo era claro.
Tudo o que consegui gritar foi um
“Fuja, Valtéria!! Fuja!!!”, mas não pude ver o que aconteceu com ela, se
escapou ou não.
Senti duas agulhadas no meu pescoço.
Depois perdi os sentidos.
A princípio, o próximo capítulo sairá daqui a quinze dias... se eu não resolver mudar e começar a fazer os capítulos semanais. Aguardem. A novela continua.
Até mais!
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