Hoje é domingo, e fez duas semanas; hoje, então, tem episódio inédito de MACÁRIO, o folhetim ilustrado do Estúdio Rafelipe!
Ainda estou estudando se, a partir do próximo capítulo, eles passarão a ser semanais ou continuarão quinzenais. Aguardem.
Vamos então ao capítulo deste domingo:
Há quanto tempo fiquei inconsciente? Estou morto? Estou vivo? Onde estou?
Não me lembro de mais nada quando a
criatura saltou para cima de mim e me mordeu o pescoço. Isso realmente havia
acontecido? Aliás, tudo o que ocorrera naquela noite de domingo realmente havia
acontecido? A briga com os pitboys... o encontro com o pajé chamado Mateus... a
noitada e a tarde com a Valtéria... onde eu estou?!
Acordei assustado. Suando frio. Sentia
o pescoço imobilizado. Olhei em volta. Tudo iluminado, fora de foco, mas... Pelo
tato, conseguia saber que as roupas que eu estava usando não são as minhas.
Essas cobertas que me cobrem não são as minhas. Essa cama também não é a minha.
Esse quarto onde estou não é o meu. É um... onde estou?!
- Oh! Acordou, afinal, Macário! –
ouvi uma voz. – Foi mais rápido do que pensamos!
Esfreguei meus olhos. Minha visão
estava um pouco embaçada, sofria com o golpe de claridade, mas aos poucos fui
distinguindo onde estava. É um... É um quarto de hospital. Havia outros leitos
no mesmo quarto, mas não distingui nem sombra de outros pacientes, eu era o
único ali. Eu e uma enfermeira éramos os únicos ocupantes do quarto naquele
momento. Aquele vulto branco com cabeça escura em pé ao lado de minha cama só
podia ser uma enfermeira. E eu estava vestido uma camisola de paciente do
hospital.
- Onde estou? – foi o que pude
perguntar. – O que aconteceu?
Apesar de sentir um aperto no
pescoço, como se algo estivesse enrolado nele, conseguia falar audivelmente.
- Calma, rapaz. – a enfermeira
tentou me acalmar. – Você sofreu muito, Macário. Se acalme.
Como a enfermeira sabia meu nome?
Minha visão ainda estava um pouco desfocada, talvez por causa do tempo que
passei dormindo, da remela acumulada nos meus olhos, e voltava ao normal aos
poucos. Conseguia distinguir os elementos do quarto do hospital, e o uniforme
da enfermeira, mas não o seu rosto. A voz, contudo, me era familiar. Esfreguei
os olhos. A visão afinal melhorou.
- Mas quem... – consegui focalizar o
rosto da enfermeira. E a reconheci: - Maura?!
- Macário. Oh, você lembra de mim...
– ela corou, sorrindo, comovida.
Eu já havia saído com ela. Foi há um
ano atrás. Maura. Estava no final do curso de enfermagem, morena, alta, corpo
bem definido pela ginástica. O uniforme de enfermeira caía bem nela. Pensar
que, na noite em que transamos, ela mesma resolveu usar uma daquelas fantasias
de enfermeira de sex shop, para me demonstrar seus sonhos e aspirações. Mas,
agora, ela não estava sexy. Ela usava uniforme de enfermeira mais... vulgar,
mais fechado, cobrindo muito seu corpo, nada feito para provocar desejos. Mas
ainda lhe caía bem.
- Que circunstância atípica para nos
encontrarmos de novo, hein, Macário? – Maura falou, sorrindo para mim, mudando
seu olhar do comovido para o debochado.
- Maura. – tentei sorrir. – Aqui...
é o hospital da universidade?
- Sim, Macário. Como soube?
- Lembro que você disse que estava
fazendo estágio no hospital da universidade... Mas pensei que você tivesse ido
embora para outra cidade...
- Pois é... Mas já fui efetivada, e
aqui mesmo, então ainda estou nesta cidade. Legal, né? E que bom para você que
eu pude te reconhecer quando você deu entrada aqui.
- E quando dei entrada?
- Ontem.
- Ontem? Espere, que dia é hoje?
- Segunda feira. E são seis da
tarde. Ontem era domingo, e...
- S-seis da tarde! – comecei a me
agitar. – E... estou atrasado para a aula! Para meu trabalho! E...
- Calma, Macário! Espere o médico
vir aqui e dizer se você sairá daqui ainda hoje ou não!
Procurei me acalmar. Olhei meu
braço. Havia uma agulha de soro intravenoso. E algumas hematomas quase
completamente sumidas.
- Que houve comigo? Como vim parar
aqui?
- Como vou saber o que houve
contigo? Pelo pouco que sei, você foi encontrado na rua, caído, machucado.
Inconsciente. Perdeu muito sangue. Tivemos de fazer uma transfusão. Ainda bem
que tinha sangue do seu tipo no depósito. E que você não precisou ser entubado,
ser posto no oxigênio, sua respiração estava OK.
- Como? Eu perdi...
- Havia um ferimento feio em seu
pescoço.
Toquei meu pescoço. Ele estava
enrolado em ataduras. Um pouco apertado, mas meus movimentos não estavam
impedidos.
- O que foi que atacou você daquele
jeito, Macário? Um vampiro? Ah, ah... – Maura ria, debochada.
- Acho que foi... pelo que me
lembre, foi um... – eu estava confuso. – Ou talvez eu estivesse tento um
delírio. Não sei se isso aqui, tudo o que vejo agora, é um delírio.
- Te garanto que não. Além do
pescoço, você tinha ferimentos em várias partes do corpo. O nariz felizmente
não foi quebrado, mas estava bem feio. Um olho roxo e inchado, hematomas pelo
corpo... e cheiro de xixi. Argh! Pelo jeito, você perdeu uma briga e foi
humilhado...
Toquei minha cabeça. Havia curativos
em meu nariz. Queria agora um espelho para ver como estava meu rosto.
- Diz aí. Se meteu em uma briga,
Macário?! – insistiu Maura.
- Sim... agora que tenho certeza de
que não foi um delírio, eu... sim, me meti em uma briga, ontem à noite, e...
- Quer colocar o seu colar, Macário?
- Que colar?... – apalpei o peito, e
lembrei: - Ah! Onde... onde está o colar do índio?!
- Calma, Macário. Está aqui.
Do criado mudo ao lado do meu leito,
Maura puxou o meu apanhador de sonhos. Ela mesma colocou em meu pescoço.
- Puxa, Macário, deu para acreditar
em superstições indígenas agora?
- Eu... ganhei de um pajé. Eu salvei
a vida dele. Foi ontem.
- Pajé? Um feiticeiro indígena? O
que um pajé estaria fazendo aqui, na cidade grande?
- Eu que pergunto, sabe? Nem ele
disse.
- Foi ele que fez aquela flor, com
sangue, no seu peito?
- Flor com... – lembrei das marcas
que o pajé havia feito em meu peito, com meu sangue, para criar uma “barreira
de proteção” (sabe-se lá para quê, o que foi que ele disse mesmo?) em mim. – Ah,
fez. Você viu?
- Como não deixar de ver, se tivemos
de tirar sua roupa? Você anda se envolvendo em coisas muito esquisitas,
Macário... Com quem você saiu da última vez?
- Hum... é uma longa história.
Maura não perdia o bom humor. Não
tinha como sentir raiva dela: em um ambiente cheio de gente doente, o humor era
sua forma de encarar a situação. Será que, no fundo, ela ainda gostava de mim,
apesar do que eu fiz com ela na ocasião? Digo: mais um coração partido? Mas,
antes de relembrar o passado, eu ainda tinha perguntas para fazer.
- Quem... quem foi que me trouxe ao
hospital? Quem foi que me achou na rua e...?
- Essa que é a parte estranha. Foi
um rapaz igualmente estranho.
- Rapaz estranho?!
- Ele que veio trazer você e deu
entrada com você no hospital. Saiu logo em seguida. Não lembro direito do rosto
do rapaz, só lembro que ele estava todo vestido de preto. Usava um sobretudo
preto, nesse calor... As únicas coisas claras nele eram a pele e o cabelo. Disse
que ele achou você caído na rua, que não havia mais ninguém no momento. Passava
das dez horas da noite quando você deu entrada. Ele mesmo te trouxe, e...
Essa história estava ficando, a cada
momento, mais esquisita. Se fui atacado por um vampiro... teria sido ele mesmo
quem me trouxe para o hospital?! Um homem todo vestido de preto... Lembro que
foi uma figura toda preta quem me atacou. Lembro do sobretudo esvoaçante. E,
mais que tudo: lembro do cabelo claro. Mas aí, lembrei de outra coisa:
- Ei, havia uma garota junto comigo,
quando fui atacado... Ela...
- Ah, a loira que foi achada a seu
lado, também com um ferimento no pescoço? Ela também foi internada. Também
precisou de uma transfusão. O mesmo homem a trouxe. Trouxe os dois, deu a
entrada e se foi. Ainda bem que vocês dois estavam com os documentos, você na
carteira, ela na bolsa. Acho que a garota ainda está aqui.
Senti um arrepio. Valtéria!
- Como ela está? Onde está?! –
exclamei, agarrando os ombros de Maura.
- Calma, Macário! – respondeu,
desvencilhando-se. – Ela está em outro setor. Se você esperar o médico fazer os
exames, depois você pode ver a sua loira. Ela não se recuperou tão rápido
quanto você, sabe? Mas você, hein?! Ainda mete uma de suas garotas nas
confusões em que se mete... Era só o que faltava...
Fiquei triste. Não é possível: eu já
tinha certeza de que foi um vampiro quem me atacou. A criatura que me derrubara
e me mordera era vagamente humana, devia ser um vampiro. E, com certeza, depois
de me morder, ele pegara a Valtéria! Oh, não! Era a última coisa que faltava
acontecer: uma garota morrer por causa de minhas burradas! Tudo porque resolvi
enfrentar três pitboys que estavam espancando um índio que dormia na rua!
Fiquei triste a ponto de chorar.
- Macário?
- Valtéria!... – balbuciei, sentindo
as lágrimas escorrerem.
- Que houve, Macário? Você... tinha
dormido com ela, né?
- Tinha... – falei, aos soluços. –
Tinha!
- Nossa, Macário, que novidade, você
chorando por uma garota... – Maura falou, irônica, sorrindo.
- É que...
- Você choraria por mim, assim?
Aliás, lembra daquela noite que...
- Lembro, Maura! – respondi com
rispidez. – Lembro de você vestida como enfermeira, e... – não querendo
prolongar essa recordação, voltei ao motivo dos meus soluços. – Tá, a Valtéria
era mais uma garota com quem saí, você sabe como eu sou com as garotas, todo
final de semana, eu não mudei desde aquela nossa noite, mas... essa garota não
merecia isso! Não merecia ter sido atacada por vampiros, ou seja lá o que for!
Nenhuma garota merecia ser agredida por minha causa! Ainda mais assim! – e
continuei chorando.
Maura parou de sorrir. Seu rosto
murchou, havia se comovido com essa minha rara demonstração de lado humano. Não
era comum eu ser visto chorando por uma garota. Ainda mais porque eu era
conhecido pelos meus hábitos. Mas... será que eu havia me apaixonado por
Valtéria, da mesma forma como ela havia se apaixonado por mim? Não sei... nem
se é verdade que Valtéria se apaixonara por mim.
Só parei de chorar por causa de mais
uma pergunta que passou por minha mente: por que, depois de nos atacar, o
vampiro nos trouxe para o hospital?! Essa nem Maura seria capaz de responder...
nem ninguém. Só o próprio vampiro, mas sabe-se lá como vou conseguir
encontrá-lo...
E não pude terminar de pensar a
respeito. O médico entrou no quarto.
- Oh, vejo que acordou, afinal, jovem.
– disse ele. – Está até chorando... a moça que foi atacada com você era sua
namorada?
- Doutor... bem... como ela está? –
falei, enxugando os olhos. De alguma forma, o médico sabia de tudo. Não, se
Valtéria e eu demos entrada juntos no hospital, decerto ele sabia de tudo, a
ponto de fazer essas suposições.
- O quadro dela está estável. Está
descansando. Também recebeu uma transfusão de sangue. Digo, a enfermeira aqui
já deve ter dado os detalhes do que aconteceu, certo? Depois conversamos mais a
respeito. Você deve estar com muitas perguntas em sua cabeça machucada... Vamos
ver você primeiro, depois pode ir ver a moça. Era sua namorada?
- Não exatamente...
O médico me fez sentar na beira da
cama e procedeu os exames. Depois, tirou as ataduras em volta de meu pescoço.
Em cima do ferimento, havia um esparadrapo branco grudado. As ataduras eram
para reforçar.
- Vamos ter de deixar este curativo
uns dias. Decerto foi um animal que te atacou. Ou decerto temos um vampiro
atacando nesta cidade. – ele diagnosticou, com um sorriso que começou a me
incomodar.
- Por quê? As marcas são de dois
dentes caninos?
- Digamos que sim, rapaz. Digo,
ainda não conseguimos identificar o tipo de animal que mordeu você, se animal
for. E não podemos dizer, ainda, se as marcas são de dentes humanos... Não que
eu acredite em vampiros ou lobisomens, mas acho que os próximos meses não serão
tranquilos para você. A menos que... hum... você está sentindo alguma coisa
anormal?
- Hum... não. Anormal você diz como?
- Bem... a sua pele já é levemente
pálida, mas é de pouca exposição ao sol... não vejo dentes caninos nascendo em
você... Nem olhos vermelhos, só o roxo do olho que foi machucado... você ainda
tem respiração... Não, você não virou vampiro. Pelo menos por enquanto. Mas não
duvido que você esteja desenvolvendo alguns sintomas. Pois você consumiu uma
bolsa de sangue, mesmo inconsciente... Estive olhando e tive a impressão de que
o sangue entrou na sua veia do mesmo jeito que alguém chupa o suco de uma
caixinha com o canudinho, sluuurp, em menos de um minuto o sangue foi sugado da
bolsa e... – e ele ria! Falava comigo como se eu fosse uma criancinha recém
saída de uma operação das amígdalas! – Bem, mas você vai ter de esperar o
correr dos dias...
De mau humor, interrompi aquele
médico que parecia zombar do meu sofrimento (mais por Valtéria que por mim
mesmo – por que aquele cara estava me retardando tanto para ir vê-la?!), ao
sentir a manifestação de um determinado sinal do corpo:
- Estou faminto, doutor.
- Você não...! – o doutor se
afastou, assustado.
- Tem certeza?!
- Sim. – mas não tinha muita
convicção. Eu estava fazendo um olhar tão assustador, sugerindo que eu possa
querer morder o doutor, com essa minha demonstração de mau humor?
Maura estendeu para mim um pacotinho
de biscoitos, assustada. Abri e comecei a comer. Hum... não, nada errado.
Nenhuma sede de sangue. Pelo que sei a respeito de vampiros, pelos filmes que
assisti, pelos livros que li... não, nenhum sintoma de vampirismo. Podia comer
daqueles biscoitos salgados integrais sem que nada acontecesse. Eles não tinham
um gosto muito bom, mas a fome os deixava mais apetitosos. É verdade o que
dizem, para a fome não existe caprichos. Em cima dos biscoitos, bebi um copo de
água. Não, nada de vampirismo: o meu organismo ainda estava aceitando comida e
água.
Ao fim de algum tempo, o médico,
afinal, me dera alta. Já passava das sete da noite. A agulha de soro foi tirada
ali mesmo. Teria de ficar um tempo de atadura também na dobra do cotovelo. Mas
eu teria de faltar ao trabalho, ficar em casa repousando uns dois dias.
Maura avisara que meus pais estavam
à minha espera, na portaria. Eles haviam sido avisados. Vieram correndo, da
cidade deles, para me ver. Eles até já haviam enviado uma roupa limpa para eu
vestir. Estava me sentindo fraco, mas podia andar. Me vesti. Porém, antes de
sair do hospital, insisti em dar uma passada no quarto de Valtéria e ver se ela
estava bem. Maura e o médico me conduziram até o quarto.
Porém...
- A garota sumiu! – foi a exclamação de uma
enfermeira, vinda do quarto onde Valtéria estava.
- Como? – perguntou o médico.
- Venham ver!
E vimos, com susto.
- Ela deveria estar aqui, deitada!
De fato, o leito estava vazio. Não havia
outras pessoas no mesmo quarto, ocupando outros leitos. Os cobertores estavam
desarrumados. A agulha do soro fora arrancada. E a janela estava aberta.
- Eu deixei ela aqui, dormindo, há uns cinco
minutos atrás, e, quando voltei... ela desapareceu! – contou a enfermeira.
- Mas não é possível que ela...? – perguntou
o médico.
- ...tenha se tornado um...? – perguntou
Maura.
- Temos de ver se não houve...! – exclamou a
enfermeira.
E eu... tudo o que pude fazer foi desabar de
joelhos no chão e chorar novamente.
Ainda não foi encontrada explicação para o
desaparecimento da garota com um ferimento no pescoço do Hospital
Universitário. Não fora relatado, nas últimas 48 horas, nenhum ataque
semelhante ao que Valtéria e eu sofremos. Na verdade, nenhuma notificação da
imprensa a respeito do que aconteceu nem com ela, nem comigo – e eu ficava
atento ao noticiário da rádio local, passava um bom tempo ao lado do meu rádio.
Houve um acordo com o Hospital e a imprensa para que nada fosse divulgado a
respeito. Quer dizer, uma nota houve, mas os noticiaristas do rádio disseram
apenas: um rapaz foi encontrado machucado após uma briga de rua. Bem, foi
noticiado apenas que eu, o rapaz, fui encontrado inconsciente e todo machucado
depois de apanhar para bandidos. Nada sobre um estranho ferimento no pescoço.
Nada sobre a garota.
Segui a recomendação médica. Fiquei em casa
na terça-feira e na quarta-feira – nas noites de segunda para terça (depois que
saí do hospital), de terça para quarta e na de quarta para quinta, eu não saí.
No total, três noites sem ir para a faculdade ou trabalhar, de convalescença. Guardando
segredo sobre tudo o que aconteceu. Impedido de comentar o que aconteceu além
da surra que levei dos três pitboys. Na terça-feira de manhã, recebi a visita
de um policial, que veio pegar o depoimento a respeito do que aconteceu. Do
vampiro, não contei nada – o ferimento no pescoço também teria sido obra deles,
de alguma forma.
Meus pais ficaram no meu apartamento nesses
dois dias.
Eles demonstravam preocupação para comigo.
Mais uma preocupação para comigo.
Claro que meus pais não aprovavam esses meus
hábitos, de trocar a noite pelo dia, etc., mas eu deixava claro que estava em
dia com minhas responsabilidades, estudo, trabalho, contas a pagar. A sua
responsabilidade é o pagamento de meu curso, com o resto pode deixar que eu me
viro, pai. Eu digo a ele e minha mãe que só trabalho naquele bar, à noite, por
ter sido a única coisa que consegui encontrar para me manter, o que havia de
vaga de emprego na ocasião, então, tenho de me adaptar, dormir de dia, sair à
noite, frequentar o horário noturno da faculdade. Não seria diferente se eu
pegasse, por exemplo, uma vaga de guarda noturno... Haveria mais
responsabilidade, mas não seria diferente... Com a bebida, não se preocupem, eu
não exagerava, o emprego nem permite que eu beba durante o serviço – onde já se
viu garçom bêbado? Ainda mais quem usa gravata borboleta e avental? Drogas,
também nunca aceitei, não ficaria bem para um médico atender pacientes
“chapado”. A esse respeito, tive de responder muitas perguntas. Só as
habituais. Agora, quanto aos acontecimentos recentes... Como contar a meus pais
a respeito de um vampiro rondando a cidade? Que faltaria depois, sacis
saltitando pelas ruas?!
Mesmo tendo sido um fato que hoje pareceria
banal, nenhum motivo para alívio. Afinal, eu apanhara de bandidos uma noite
dessas... O que servia de consolo era que era a primeira vez que isso acontecia.
Eu também espero que seja a última.
Meus pais não se demoraram muito no meu
apartamento. Na quarta, à tarde, eles voltaram para a cidade deles, constatando
que eu estava muito bem, que nada de grave me aconteceu, que eu já não
precisava de tantos cuidados. O único incômodo era que eles preferiam dormir à
noite, e ficar acordados durante o dia, e tinha de sair da cama ao meio-dia
para almoçar. Tive de dormir à noite, e ficar acordado durante o dia. Mas me
deixavam tirar uma soneca durante a tarde. Aliás, acho que o que mais fiz
nesses dias de convalescença, fora a visita do policial, foi dormir, para ver
se me aliviava da sensação de depressão. Isso ia afetar o meu relógio
biológico. Ao menos, o que aconteceu foi bom como pretexto para voltar a comer
a comida de minha mãe.
Meu pai não fica muito bravo com meus
hábitos, pois não estava desperdiçando o que ele gastava com meus estudos. Ia,
sim, sair dali médico. A preocupação era mesmo com os hábitos noturnos.
Esperavam que não fosse para sempre. Esperavam que, afinal, eu arranjasse uma
garota para a vida toda, não ficasse para sempre nessa de uma garota por
semana.
O que mais doía em mim não era o pescoço, ou
o olho, ou o nariz. Era o coração. Eu estava em uma tristeza profunda. Nunca em
minha vida eu tinha me sentido tão mal. Nesses três dias, eu fiquei a maior
parte do tempo em uma profunda tristeza, melancólico, e fazia um esforço enorme
para demonstrar algum bom humor – meu pai esteve se esforçando para arrancar
risadas de mim, com suas piadas grosseiras, ainda que fosse um sorriso amarelo.
Mas meus pais respeitaram essa tristeza – eles até ficaram felizes em ver que eu
estava preocupado com alguém. A tristeza não era por mim e pela surra e
humilhação que levei, mas por Valtéria. Ela não saía da minha cabeça.
Essa tristeza se acentuou quando me vi
sozinho, com meus pensamentos, no apartamento, olhando para o vazio diante da
janela. Valtéria...
Fora a visita de meus pais e a do policial,
não recebi visitas de mais ninguém. Nem telefonemas. Só um telefonema, na
terça-feira, lá do bar, para que eu justificasse a falta ao serviço, explicasse
que tinha sofrido um acidente, tive de ir para o hospital, etc. Noite de quinta
para sexta, era para eu estar lá. OK, sem problema.
Mas acho que, neste final de semana, não vai
ter balada, não vai ter garota em casa. Não depois do que aconteceu com a
Valtéria. Fiquei deprimido. Agora ela, certamente, havia se transformado em uma
vampira, por minha causa. Fugiu do hospital e estava por aí, agora, atacando
pessoas. Não duvido que ela tenha se transformado em uma “monstrinha”, visto
que, enquanto ela esteve em minha casa, ela se comportara feito uma maluca. Com
poderes de vampiro, então...
De todos os encontros que tive, esse foi o
mais trágico. Se isso cair na boca do povo, nenhuma garota vai confiar mais em
mim. Adeus, garotas. Adeus, vida que eu amava.
Esse tempo em casa também me fez, por alguns
minutos, repensar minha vida. O que eu vivi até agora. As garotas com quem saí,
a bebida que bebi, a preferência pela noite, os corações que acabei machucando.
Realmente, Deus, neste final de semana, colocou um verdadeiro teste diante de
mim. Agora, com certeza, está esperando que eu mude de vida, me torne alguém
diferente do que tenho sido até agora, talvez abandone a esbórnia, a luxúria,
quiçá passe, dali em diante, a dormir de noite e viver durante o dia. Um
espancamento, um vampiro, uma garota envolvida. Um turbilhão de emoções
negativas. Tudo contribuindo para que eu passe a ser um “santo”, um “crente”,
uma pessoa dessas que eu considerava “careta”. Estou pensando a respeito,
Senhor... Dependendo do que acontecer nesta quinta-feira, eu lhe dou uma
resposta, se aceito sua proposta de conversão ou se espero um segundo evento
trágico.
Mas algo me intrigava na história. Por que
Valtéria se transformou em vampira e eu não? Ou será que eu ia me transformar
aos poucos? Nada indicava algum sinal de vampirismo se manifestando.
Consultando alguns livros sobre vampiros que eu tinha em casa, para simples
entretenimento, fui fazendo um autoexame. Pelo que era descrito nesses livros,
há sinais que permitem distinguir se uma pessoa está se transformando, ou não,
em vampiro.
Não. Minha pele não estava pálida além do
normal. Não, ainda conseguia suportar o sol, mesmo o poente. Não, nenhuma
manifestação de sede de sangue: conseguia comer e beber normalmente. Não,
nenhum dente canino crescendo anormalmente em minha boca. Três dias em que
nenhum sinal de vampirismo se manifestou em mim. Decerto, vampiros conseguiam,
sim, sugar sangue de uma pessoa e deixa-la viva, sem transformá-la em vampiro.
Eu olhei para o apanhador de sonhos que
ganhei do pajé, e que não saiu mais de meu pescoço. O que estava me impedindo
de jogar isso fora, já que isso não serviu para proteger-me, e nem uma pessoa
com quem estava realmente preocupado?! Mas aí ponderei: talvez tenha sido isso
que impediu a manifestação de um sintoma de vampirismo. A proteção do velho
Mateus. Era por isso que eu não jogava isso fora. Estava, sim, me protegendo,
embora não parecesse. Acabei lembrando o que o velho Mateus disse: havia gente
maligna me visando. Gente querendo me atrair para a escuridão eterna. Seria o
vampiro uma dessas pessoas malignas? Ele tentou me transformar em vampiro, em
um ser do lado maligno das trevas, não foi?
Olhando-me no espelho do banheiro – o roxo do
olho já sumira – resolvi tirar a atadura do pescoço, para ver o ferimento que
eu não pude ver ainda. Descolei o esparadrapo. E vi: meio cicatrizados, com a
casquinha vermelha em cima, haviam dois sinais de mordida. Mas eram muito
discretos: pareciam mais marcas de injeção do que mordidas de algum animal. O
vampiro teria usado seringas ao invés dos dentes para sugar meu sangue? Mesmo
assim, era algo a se considerar. E recoloquei a atadura de volta no lugar.
Mas eu estava com mais perguntas do que
respostas dentro de minha cabeça. E ninguém para responde-las.
Chegou a noite de quarta-feira. Tudo o que me
restava era pegar o atestado do médico, me arrumar para sair e voltar para a
aula, e depois para o trabalho. Com algum receio: oh céus, e se o vampiro
voltar? E se, no momento em que eu sair na rua, eu souber de algum ataque de
vampiros?! O que meus amigos e as garotas vão dizer de mim? Conseguirei
companhia para a próxima balada? Irei mesmo para alguma balada neste fim de
semana? De todo modo, o apanhador de sonhos ficaria no meu pescoço.
A caminho da faculdade, encontrei colegas. Os
que estiveram comigo no final de semana. Os colegas que me achavam esquisito.
Espero que não me achem esquisito hoje.
- Oi, Macário.
- Oi. – respondi com uma voz murcha.
- Que aconteceu com você? Há dois dias que
você não aparece na faculdade, rapaz! – disse um deles, simpaticamente.
- Da última vez nós vimos você na festa lá na
boate, conversando com uma loira... Sumiu com a garota? Resolveu prolongar o
final de semana? Foi viver um romance? Uau, demonstrando maturidade, hein,
Macário? Achou alguém para a vida toda?! – disse o outro, sorrindo,
acotovelando de leve meu braço.
- Que romance o quê. É uma longa história.
Com um começo feliz e um final trágico. – respondi, com indignação.
- Você parece péssimo, Macário. Não me diga
que...
- Ei, você está com aparência de que saiu de
uma briga! Está com essas ataduras no nariz, no pescoço, e... Foi você o rapaz
que apanhou dos bandidos que... o que o jornal falou que...!
- Sim, fui eu. – respondi, com alguma
rispidez. – O rapaz sobre o qual mijaram em cima. – Meio que já sabia o que
eles estavam pensando...
Eles deram uma risada, mas não a prolongaram,
ao ver meu olhar de indignação. Só sádicos acham graça de quem levou,
literalmente, uma “mijada”, pensava eu.
- Puxa! E você ainda escapou vivo?!
- Puxa! Foi tão traumatizante assim,
Macário?!
- Vocês não fazem ideia. Acho que nunca
passaram por isso... nunca mijaram em cima de vocês?
- Bem, ainda não, mas... Mudando de assunto,
e a garota, Macário?! A loira lá que você levou pra tua casa... Você a levou
pra tua casa, né?
- Pelo jeito, a noitada foi boa, hein,
Macário? Afinal, ela era gostosa, né? A agressão dos bandidos veio depois, né?
Foi por causa da garota? Tentaram dar em cima da tua gostosa e você teve de
reagir, hein? Hein? Conta aí...
- Claro que a noitada do Macário foi legal.
Com o Macário sortudo, não é? Não tem tempo ruim para as mulheres, em companhia
com o Macário. Com a gostosa lá não foi diferente. Você a levou pro céu, hein? Ela
parecia bem feliz quando vimos ela, ontem e anteontem...
Paralisei.
- Como?! – arregalei o olho. Ontem e
anteontem?!
- Oh! Nesses dois dias em que você não veio à
aula, a loira, aquela, veio te procurar. Veio duas vezes ao curso perguntar por
você. Mas ia embora toda vez que dizíamos que não te vimos, ou vasculhava o
prédio do curso à tua procura e não te encontrava...
Não é possível! Valtéria! O negativismo
começava a abandonar meu coração. Ela estava bem! Mesmo assim, perguntei:
- Veio?! Ela veio me procurar?! A... a...
Valtéria está... Ela está bem?!
Até os dois colegas se surpreenderam com
minha reação inesperada.
- É Valtéria o nome da gostosa? Pelo jeito,
ela ficou caidinha por você, seu sortudo... De qual curso ela é?
- Da Engenharia Florestal, e... – respondi,
rápido.
- Uau! E aí, vai arranjar outra garota no
final de semana, né? E ela vai ficar solteira de novo, né? Acho que vou
conversar com ela na próxima balada...
- Não, eu que vou. Macário, fale mais
sobre...
Saí da descontração da conversa, e
demonstrando perda de paciência:
- Não, primeiro me diz! Ela está bem?! –
pergunto com impaciência.
- Bem? Por quê? Tinha acontecido alguma coisa
com...
- Insisto! Ela está BEM?! – falei, alteando a
voz.
- Está. – foi a resposta de uma voz feminina atrás
de mim. Olhei para trás, e recebi um tabefe.
O tabefe não me derrubou, só jogou minha
cabeça para o lado e me fez dar um rodopio. Uma volta completa, me fazendo
parar bem em frente à responsável.
- Mas o quê...?
- Seu canalha filho da mãe, o que você fez
com minha amiga?!
Olhei para a responsável pelo tabefe.
- Viridiana?!
- Ah, lembrou do meu nome, né?! Lembrou que
eu ainda existo, né?!
Os mesmos cabelos castanhos. Os mesmos
óculos. A barriga para fora da camisa curta, exibindo um piercing do qual não
me lembrava – deve ter colocado depois da noite que saímos. Mas uma cara
enfezada que não a deixava nada bonita.
- Fale logo, seu... seu... seu...! – ela
agarra minha gola.
- Viridiana!! – exclamei. – Tenha pena de
mim!...
- Que pena o que, seu canalha! E daí que você
apanhou de criminosos, seu... criminoso! Você mereceu que mijassem em cima de
você, sabia?! Agora fale logo! O que você fez com minha amiga?!
- Espere aí, mulher! – interviu um dos
colegas. – Você mesma disse que ela estava bem... a loira aquela, né?
- O nome da “loira aquela” é Valtéria. Minha
grande amiga Valtéria. E eu sabia que na companhia desse canalha ela não
ficaria bem!!!
- Um momento! – pedi. – Não estou entendendo
nada! Por favor, fiquei em casa de convalescença por dois dias! Não sei de nada
do que aconteceu... E saiba que estive, sim, preocupado com a Valtéria! Muito
preocupado!
- Esteve, né? Que bom, né, senhor Macário...
- Claro que estive! Onde ela está?! Onde a
Valtéria está? Por favor, Vi, me diga!
- Está no hospital!
- H... hospital!! Ela... ela...
- Ela está no hospital da universidade! Foi
internada.
- Internada? Por quê?!
- Sofreu ferimentos! Foi atacada!
- Ata... cada?!
- Não mude de assunto, Macário! Diga logo...
o que você fez com minha amiga?! Naquela noite depois da balada?! De que forma
você afetou a mente dela?!
Eu não estava entendendo nada de nada. Por
que a Valtéria voltou para o hospital? Por que a Viridiana estava me agredindo
daquele jeito? O que foi que eu fiz?!
No impulso, tudo o que fiz, sem nem mesmo
pensar, foi arredar Viridiana para o lado e sair correndo em direção ao
hospital.
Em breve, um novo episódio ilustrado. Falta definir o que disse acima: se vai ser semana que vem ou continuará a cada duas semanas. O que vocês acham? Se puderem se manifestar, melhor.
Vocês ao menos estão lendo esta história, né?!
Até mais!
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