Hoje, domingo. 15 dias se passaram, então, é dia de capítulo inédito de meu folhetim ilustrado para adultos, MACÁRIO. Com a garantia de que, agora sim, as revelações do enredo vão começar.
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de violência, agressão física, humilhação e vampirismo.
Eu descia a rua, depois de sair do prédio em
obras em que me abriguei por algumas horas, e onde enfrentei os cães demoníacos
mais uma vez; caminhando a esmo pela cidade já escurecida de luz solar, e
iluminada pelas luzes artificiais, que não afetavam a minha nova condição.
Agora, sinto que minha vida mudou para
sempre.
Tornei-me um vampiro, em um processo que
levou algum tempo para se concretizar.
Os sintomas do vampirismo não vieram de uma
vez, após aquela mordida, semanas atrás. Demoraram para se manifestar, e,
quando se manifestaram, aí, sim, vieram em um jorro, gradual, como a abertura
de uma torneira, do fraco ao forte.
Sou vampiro! Sou uma criatura noturna! Sou
sanguessuga!
Despertei força, agilidade, sentidos aguçados,
sede de sangue.
Imagine então o que vou fazer com as mulheres
de agora em diante! Vou voltar a “caçar”, não esperarei mais as mulheres me
procurarem. Era assim quando eu era um mero humano, e, agora, como vampiro,
decerto não haverá quem possa resistir aos meus novos poderes. Talvez o próximo
poder que eu venha a despertar seja leitura de mentes, ou hipnotismo, ou...
Mas, no momento, este vampiro, seu criado,
estava aparentando ser um mendigo. Um mendigo com uma mochila nas costas. Depois
de uma luta feroz com cães demoníacos (sete cães, três mortos e quatro feridos,
batendo em retirada), eu estava com a roupa rasgada, suja, e com manchas de
sangue. E os ferimentos que sofri ainda doíam. O sangue em minha boca era fácil
de limpar. O de minhas mãos também, bastou lavá-las em um tonel abandonado, com
água empoçada, pouco me importando com as larvas de mosquito que proliferavam
ali. A mochila era o item mais limpo neste corpo.
Dessa maneira, não vou atrair mulher alguma.
Bem, e agora, qual será o próximo passo?
Estava pensando em voltar para meu
apartamento, limpar os ferimentos, tomar um novo banho e colocar uma roupa
melhor, mas uma outra necessidade passou à frente dessas...
Sangue...
Já tomei sangue de rato e de cachorro. Mas
era apenas paliativo, apenas para conseguir me manter em pé e procurar alguma
vítima, algum pescoço para morder (precisa ser mesmo o pescoço? Acho que sim,
pois por ali correm as maiores artérias e veias, garantindo fluxo sanguíneo
mais intenso – sei disso, como estudante de medicina, com frequentes aulas de
anatomia no currículo).
Como será o gosto de sangue humano? Talvez o
sangue humano seja melhor, talvez o sangue humano seja mais nutritivo – por
isso vampiros gostam tanto de atacar humanos. E, dos vários tipos de sangue
humano, talvez o mais nutritivo seja o das mulheres virgens... Ou o das
mulheres em geral, sei lá... Depois me preocupo com isso...
Minha maior preocupação era que, nesse
momento, eu me encontrava sozinho a descobrir minhas novas habilidades. Segundo
li em diversos livros sobre vampiros, um vampiro recém criado necessita da
orientação de um vampiro mais experiente, não apenas para aprender os segredos
da vida de vampiro, e suas novas habilidades, além da capacidade dos meros
humanos; mas também porque vampiros largados ao léu acabam se tornando
selvagens, ameaças ambulantes, e seus ataques acabam chamando bastante a
atenção – e, pelo que sei, vampiros prezam o anonimato de sua espécie.
Engraçado que eu nem me sinto selvagem, eu
estava me sentindo, em verdade, no pleno domínio de minhas faculdades mentais.
A menos que minha mente já comece a morrer aos poucos, já que agora sou um
morto-vivo... a minha consciência de Macário vivo já esteja morrendo dentro de
meus neurônios... e meus pensamentos de gente viva já comecem a ser
substituídos por pensamentos de vampiro... bem, mas o importante agora é que me
vejo obrigado a sugar mais um pouco de sangue para... para...
De repente, meu ouvido começa a zumbir de uma
forma estranha. Começou a zumbir e a doer. O que há com o meu ouvido?!
Tentando me concentrar, e segurando a orelha
dolorida, noto que o zumbido, na realidade, era um som de alta frequência. Como
vampiro, eu agora tinha sentidos aguçados, incluindo uma audição mais apurada.
Então, eu estava conseguindo captar, entre os sons da cidade à noite, um som de
alta frequência, pelo que parece, um apito usado em treinamento de cães.
O som, desta vez, vinha da rua! Antes, eu
estava ouvindo esse som através do meu celular – um estranho número ligava para
mim e o interlocutor fazia esse som agudo... e esse som me afetava, eu começava
a ter estranhas reações. A cada vez que o som era ouvido, um novo sintoma de
vampirismo se manifestava.
E, não deu outra: o som, que agora vinha da
rua, sem filtros além do barulho habitual das ruas... começou a me afetar. Não
apenas meu ouvido, mas minha cabeça começou a doer. Outra vez, aquela pontada dolorosa
na testa! E meus tímpanos pareciam que iriam estourar. Minhas pernas bambearam,
caí de joelhos no chão. Tapei meus ouvidos, desesperado.
Pare com esse barulho, seja quem for...
PARE!!!
Não consegui conter o grito, mas...
O som parou.
Meu corpo tremia. As dores passavam aos
poucos. Conferi meus ouvidos: ainda estavam inteiros, e funcionando. Nenhum
sangramento.
O que está havendo comigo?! Por que estou
sendo afetado por esse som de alta frequência?! Por que ninguém mais estava
sendo afetado?! Por que só eu?!
Sei disso porque, perto de mim, onde eu
estava – um beco, mas sem ter ideia de como vim parar ali, nem estava prestando
atenção para onde ia depois que saí do prédio em obras onde enfrentei os cães –
estavam dois cães de rua, deitados juntos, abrigados dentro de uma caixa de
papelão ali jogada. Talvez um casal, ou só dois companheiros trocando calor um
com o outro na noite fria; e nenhum deles levantou quando o apito começou a
soar. Eles abriram os olhos e levantaram a cabeça só quando gritei. E, depois,
deitaram novamente. Decerto já estevam acostumados à presença de moradores de
rua, e, naquele instante, eu era só mais um, então não se importavam com meu
sofrimento. Ainda bem que não havia mais formas de vida por ali – sequer
humanas.
Bem, parece que, para saber o que estava
acontecendo, eu tinha de encontrar a fonte do som – e acho que sei, mais ou
menos, de que direção vem o som! Quem sabe não seja o vampiro, que estava me
chamando, de alguma maneira?!
Ei, como eu sabia que era o vampiro que
estava soando o... UUUNGH!!!
O som de novo! Esse maldito som me prostrou
no chão de novo! Mal havia levantado do chão, caí de joelhos novamente. Esse
barulho era tão torturante!!!
Pare, por favor... Pare...
Olhei para os cães: desta vez se levantaram,
ergueram a cabeça e as orelhas.
Enquanto sentia a dor nos ouvidos e os olhos
lacrimejando, eu vi os cães apontando seus focinhos para a direção do som. Ah,
era bem na direção que eu estava supondo!
O apito cessou depois de dez segundos. E as
dores também – demoraram um pouquinho mais para passar. Meus olhos
lacrimejavam. E aquela fraqueza voltou.
Aah... preciso de sangue... mais sangue...
Os cães olhavam para mim, agora. Eu olhei
para os cães.
Ah, sangue, sangue, sangue...
Meu corpo estremeceu.
Tive de colocar todo meu autocontrole em
ação.
O que eu estava prestes a fazer?!
Não! Eles não! Esses pobres cães de rua não!
NÃO! Você já bebeu sangue de cachorro antes, Macário... Eles não tem culpa de nada...
E você nem sabe por onde eles andaram... Podem estar contaminados...
E, num esforço sobre-humano, consegui,
correndo, sair de perto daqueles cães, que estavam me olhando com olhar de
dúvida – “será que esse cara é louco?”
Saí do beco, e recomecei a andar a esmo pelas
ruas, tendo vertigens, não conseguindo coordenar meus pensamentos.
Oohhh... estou me arrependendo de não ter
chupado o sangue daqueles cães... estou tão fraco... preciso de sangue...
qualquer tipo... qualquer... sangue... Acho que vou voltar lá, e... Não,
Macário, não... Resista... Melhor morrer de inanição a machucar aqueles cães...
Mas estou tão fraco... Aah, eu estou sendo tão teimoso em me prender ao mundo
dos vivos, em continuar andando pela Terra... e, por causa disso, preciso de...
de... deeeee...
- Epa, cara! Que é isso?!
- Ih, olhem só... o cara está passando mal...
- Estará bêbado?
Ouvi vozes. Vozes humanas... e masculinas.
Ergo a cabeça, me vejo em outro beco – como
esta cidade é cheia de becos, espaços entre prédios, onde há lixo acumulado,
abrigos ideais para assaltantes e marginais em geral, não acham? – e haviam
três rapazes diante de mim, a uma curta distância.
Um deles tinha cabelo preto e espetado para
cima; o segundo também tinha cabelo preto, armado com gel e penteado para trás,
arredondando sua cabeça; e o terceiro tinha o cabelo claro, evidentemente
oxigenado – e era o único que usava camiseta sem mangas e bermuda, os outros
usavam camisetas de manga e calças compridas.
E meu olho arregala.
Mesmo sob a iluminação fraca do beco, vinda
da rua, eu reconheci: eram eles! Os três pitboys que agrediram o pajé Mateus e
depois me deram uma surra! Foi por causa deles que toda a minha desgraça
começou!
- Oh, cara... tu ‘tá legal? – perguntou o do
cabelo espetado, com uma expressão preocupada.
- São... vocês... – murmurei.
- Ih, olha só pro sujeito... pelo jeito saiu
de uma briga... ‘tá todo esfarrapado, o sujeito... – o do cabelo penteado já
sorria com sarcasmo.
- É, ele não tá bem mesmo... parece que
bebeu... bebeu e tentou brigar com o Maguila... – o do cabelo oxigenado já
começava a rir. E o desgraçado tinha o mesmo olhar vermelho de gente drogada
daquele dia!
- Xi, caras, acho que tô conhecendo esse cara
de algum lugar... Não lembro de onde, mas... – voltou o do cabelo penteado.
- São... vocês... – repeti, com minha visão
perdendo foco, me esforçando para dar uma risada.
Que bom: três vítimas... para minha vingança.
Sugo o sangue desses três desgraçados e ainda me vingo da desgraça em que eles
me jogaram... Por culpa deles a minha vida virou uma confusão... um inferno...
Claro que foi por culpa deles...
- Somos nós o quê, hein? – pergunta de novo o
do cabelo espetado.
- Tu ‘tá legal, cara? – pergunta o do cabelo
penteado. – Quer que a gente te leve ao hospital? Tu ‘tá precisando tratar
dessas feridas...
- Sãããooooo vocêêêêêêêzzzzzzzzzzz... –
sibilei, com a cara bem amarrada, tentando causar algum pavor neles, sem
sucesso. Pelo jeito, minhas caretas só assustavam as mulheres. – Vocêêêêêzzzzzz
que me levaram a isto... A izzzzzztooooooooooooooooo...
Minha voz saía muito mole e arrastada, em
minha tentativa de imitar um vampiro que eu vi em um filme, certa vez – até
como ator sou patético. Eu não conseguia mexer meus braços e pernas, estava
colado ao chão, e parece que nem meu corpo me obedecia mais. Minha fala estava
muito lenta, meus movimentos idem. Por que eu não atacava logo aqueles
marginais?!
- Eita... acho que, em vez de hospital, devíamos
levá-lo nos Alcoólicos Anônimos... – volta o do cabelo espetado.
- Não, amigos. – interveio o do cabelo
oxigenado. – Talvez esse cara precise mesmo é de uma sacudida. Precisa fazer o
cérebro pegar no tranco... vem cá, querido, permita-me...
E o rapaz se aproximou, sem medo, agarrou
minha cabeça e começou a sacudi-la violentamente. Depois, me jogou para trás.
Caí sentado no chão. Eles começaram a rir. Voltei a olhar para eles com o meu
olhar mais terrível, mas eles não pareceram impressionados.
- Ei, cara, como é que é?! – voltou a falar o
do cabelo oxigenado. –Ainda não começou a funcionar o “motor”?! Deixa eu te
ajudar de novo, vamos ver se agora vai... Deixa que eu...
De certa forma, a primeira sacudida parece
ter funcionado. Porque, a seguir, meu corpo voltou a funcionar: me levantei,
com agilidade, e agarrei o rapaz que se preparava para me pegar. Agarrei-o pela
gola da camisa e o encostei contra a parede.
- Obrigado, querido... – sorri meu pior
sorriso diante de seu nariz. – Agora posso reagir... reagiiiiiirrr...
Senti minha dicção normal funcionar
novamente.
- Ei, cara, que é isso?! – ele exclamou,
agora sim assustado.
- Foram vocês que causaram toda a desgraça
que se abateu sobre mim! – dei à minha voz uma flexão aterrorizante. – Lembra
daquela noite, querido?! Vocês tentaram matar um índio queimado, e depois...
- Índio? Que... ei... Espera um pouco aí! Eu
te reconheci agora! – exclamou o do cabelo espetado. – Tu foi (sic) o cara que
se intrometeu quando a gente ia botá’ fogo no mendigo!
- Hein?! O “playboy” aquele?! – exclama o do
cabelo penteado.
- Siiiiimmmmm... – sibilei. – Minha vida
virou uma desgraça depois daquilo... Mas agora, tenho a oportunidade de me
vingar... de me...
- Me solta, seu maluco! – gritou o rapaz que
agarrei, conseguindo se soltar com um empurrão. Eu já estava com minha boca a
centímetros de seu nariz. Ele, rapidamente, se juntou aos outros. – Tu ‘tá
drogado! ‘Tá louco!
- Olha só quem fala... – falei, olhando em
seus olhos avermelhados.
- Que que tu andou fumando, cara? – ele
voltou a falar, e, rindo, perguntou: – Sobrou um pouco pra nós?!
- Como ousam! – exclamei.
E eles começaram a gritar alternadamente.
- Pelo jeito, tu ‘tá é querendo mais uma
surra, hein?!
- Pelo jeito tu quer mais um sacode pro teu
cérebro, hein?
- Eu... quero... é... o... sangue... de...
vocêêêêêzzzzzzzzzzzz... – sibilei, arreganhando os dentes. Podem ver meus
dentes de vampiro, seus desgraçados, matadores de índios?! Vingança...
sangue...
Parece que não. Não estavam assustados.
- Ih, o sujeito ‘tá com o parafuso frouxo
mesmo!
- Pode ser perigoso... Aliás, ‘tá bancando o
perigoso...
- Vamos ajudar ele a tomá’ (sic) juízo,
galera! Vamos mostrar que drogas só fazem mal!
- Que legal, ‘tava mesmo querendo alguém pra
bater! Eu ando tão frustrado e querendo bater em alguém...
- Quero ver vocês tentarem... – sibilei,
sorrindo.
Era a deixa. Tanto eu quanto eles buscávamos
um pretexto para iniciar um ataque físico, que poderia resultar em morte.
Eu estava confiante em meus reflexos novos.
Eles vão ter uma surpresa, enfrentando alguém mais forte e ágil... Mesmo sendo
três contra um...
O do cabelo oxigenado já avançou, tentando
dar um soco. Consegui desviar, e devolvi um soco bem na cara, acertando bem no
olho vermelho. Ele caiu para trás. O do cabelo penteado também caiu, quando
soquei seu estômago, peguei sua cabeça, dei uma sacudida e depois um direto em
seu queixo, no instante em que ele ia tentar me acertar. Desarrumei seu cabelo
penteado.
Mas o do cabelo espetado conseguiu me acertar
um soco no rosto. Surpreendentemente, senti, e cheguei a cambalear. E a mão
dele nem doeu... Avancei, e, rapidamente, agarrei seu pescoço, e começava a
estrangulá-lo. Seus olhos já saltavam das órbitas. Mas o do cabelo oxigenado,
já se recuperando, me agarrou pelo pescoço, por trás. Sacudi o corpo, tentando
me desvencilhar. Acertei uma cotovelada em suas costelas, e pude ver que doeu. Mas
o do cabelo já despenteado, armado de um pedaço de pau ali jogado, me derrubou
com uma pancada na cabeça. Caí de joelhos, e, de repente, recebi um soco na
têmpora, e, do outro lado, outro soco, e me prostrei no chão. Eles foram mais
rápidos que eu! E os três avançaram, aos socos e pontapés, acertando onde
conseguiam acertar, e gritando “Toma! Toma!! Toma pra deixar de ser maluco!! Isss!
Iiisssss!!!”. Tentei me proteger, cobrindo minha cabeça com as mãos, e tentei reagir,
mas levei uma nova paulada, na nuca, e tudo ficou escuro.
Só sentia meu corpo levando golpes por todo
lado. Senti minha mochila ser arrancada de minhas costas. E, depois de um
tempinho, meu corpo fora molhado. Chovia? Senti um cheiro forte de... de...
Antes de afinal me entregar a um momento de
inconsciência, eu ouvi as risadas dos três. Eles riam, riam às bandeiras
despregadas.
Abro, afinal, os olhos, depois de alguns
minutos inconsciente. Quanto tempo será que fiquei inconsciente?
Tento distinguir onde estava. Ainda era o
mesmo beco onde encontrei os três rapazes... Mas eu estava no chão.
Estava alquebrado. Sentia meu corpo dolorido,
muito dolorido. Os três rapazes não estavam mais ali.
Oohhh... mas o que aconteceu?! Vai me dizer
que eu levei outra daquelas surras?! Mas como, se agora sou vampiro?! Vampiros
não deveriam ter esse tipo de problema... Eu é que deveria ter vencido esse
combate...
Tento levantar. Nenhum osso quebrado, espero.
Acho que consigo andar. Mas pior não era o corpo dolorido: era a sensação de
umidade. O cheiro forte denunciava: além de ter sido agredido, mijaram sobre
meu corpo de novo!
Toco minha cabeça: sentia os galos, nas
partes da cabeça onde recebi as duas pauladas. Felizmente, o pedaço de madeira
estava meio podre, se partiu com o impacto, então nem produziu algum ferimento
sangrento. Mas a força foi suficiente para balançar meu crânio.
Olho para a frente: a minha mochila estava
jogada no chão. Estava aberta, e todas as minhas coisas estavam espalhadas. Ah,
era o que faltava: humilhado e ainda por cima assaltado. Aproveitaram minha
inconsciência para mexer na minha mochila. Que porcaria de vampiro eu estava me
saindo.
Mesmo com o corpo dolorido, conferi minhas
coisas ali jogadas. Mas parece que estava tudo intacto: meus cadernos, meus
livros, meu estojo de lápis, meus rolos de gaze, meus clipes de papel eventualmente
perdidos ali dentro, as minhas chaves. Bem, ao menos posso voltar para casa. Os
cadernos e livros estavam revirados, mas nenhuma página foi arrancada,
rabiscada ou molhada com urina.
Minha carteira: ali, jogada, também estava.
Estava revirada, mas não levaram nada. Meus documentos, meus cartões de banco,
estavam ali. Até o dinheiro que eu levava ali estava intacto: decerto acharam
que as 30 pratas que eu levava eram mixaria.
E o meu celular novo... decerto levaram... oh,
ainda está ali, jogado no chão. Aparentemente sem avarias... falei cedo demais:
o vidro da tela estava trincado. Oh, céus... Oh, mas o telefone ainda estava
funcionando, menos mal. Dá para usar. Mas o que vou dizer para a Âmbar quando
ela vir que seu presente havia sido danificado?!
Reuni minhas coisas, coloquei na mochila.
Estava inteira, podia carregar minhas coisas ainda.
Cambaleante, sentindo pontadas no corpo nas
partes onde recebi pancadas, procurei sair daquele lugar. Estava me sentindo
fraco, e muito para baixo.
Confiei demais nos meus sentidos de
vampiro... e acabei me f(...).
Talvez tenha perdido a briga porque ainda
estava faminto – e, sem o sangue necessário, meus poderes novos não deviam
funcionar direito. Bem, minha aparência, depois dessa briga, estava muito pior.
Havia um espelho partido, ali abandonado.
Alguém quis de livrar do espelho e colocou-o ali, esperando que os lixeiros o
recolhessem também; mas alguém, de farra, resolveu quebrar o espelho antes. Era
a explicação que ocorria para haver aquela moldura, com algumas partes de
espelho ainda intactas, e o restante em
cacos pelo chão. Pois, foi através desse resto de espelho que visualizei minha
aparência deplorável. Com a roupa esfarrapada e umedecida, mas ainda cobrindo
boa parte de meu corpo; sujo de sangue e poeira da rua; com hematomas nas
partes descobertas; o cabelo todo desalinhado; e, agora, cheirando a urina.
Bem, se eu tivesse sido realmente assaltado, aí seria muito pior.
Sinto uma pontada no peito, e tiro de dentro
da camisa o meu apanhador de sonhos. Estava inteiro, ainda. Mas me fez lembrar
do dia em que salvei o Pajé Mateus. Bem, se aquele colar não estava me
protegendo convenientemente – permitiu que eu me tornasse vampiro, permitiu que
eu apanhasse, permitiu que o azar me perseguisse – pelo menos estava evitando
minha morte prematura. Será que a magia estava gasta? O apanhador ainda terá
magia suficiente para me permitir escapar vivo desta noite?! De todo modo,
coloquei o apanhador novamente sob a camisa e recomecei a andar. Me ajude,
Mateus.
Tenho de me recuperar de alguma forma. A
minha vingança não deu certo. Mas tenho de dar um jeito de arranjar sangue,
agora. Primeiro, procurei sair daquele beco. Mas não reconhecia em que parte da
cidade eu me encontrava naquele momento. Os novos poderes de vampiro não
estavam acompanhados de senso de direção.
Que estranho: não havia ninguém nas ruas.
Todos os carros existentes estavam parados e estacionados. Nos edifícios
próximos, luzes, mas as janelas estavam todas fechadas, venezianas, cortinas e
basculantes apenas filtravam a luz dos apartamentos. Mas havia música alta:
ali, próximo, havia uma boate em pleno funcionamento, com as portas fechadas.
Os cartazes anunciavam que ali havia “entretenimento adulto”, para ficar no
eufemismo.
Quem sabe ali tenha sangue mais fácil de
obter, digo, alguém que eu consiga morder sem ser agredido... Além disso, eu ainda
tinha dinheiro, quem sabe...
Mas, olho para uma esquina: havia uma
vivalma. Pela silhueta sob a luz do poste, era uma prostituta, aguardando no
ponto.
Tinha cabelo ondulado, e um casaquinho cobria
seu corpo, mas a minissaia com meia-calça escura e os sapatos de salto não
enganavam sua condição. A tiracolo, uma bolsinha.
Nesse momento, me recordo do menino Maicon,
naquele dia, no hospital. Ele resolvera roubar a bolsa de uma menina que
julgava ser prostituta – e pagou pela ousadia com uma de suas orelhas. Me
lembrei do modo como ele contou sua história: ele não queria roubar a bolsa,
mas foi convencido a roubar porque a menina era, aos seus olhos, uma prostituta,
então, em tese, não daria em nada, não haveria problema.
Era exatamente nisso que eu estava pensando:
vou morder essa aí mesmo, independente se ela tiver alguma doença venérea no
sangue. Afinal, é uma prostituta, com bolsinha e tudo, e não vai fazer falta no
mundo... E a única testemunha do crime, ali presente, nem vai poder relatar
nada: um retrato de homem, de um velho cartaz de campanha política fixada em
uma das paredes próximas, ah, ah...
Arrisquei o ataque, mesmo com o corpo
dolorido.
Sangue... sangue...
Sorrateiro. Ataque antes que ela perceba,
Macário... Aaahhhhh...
Mas, quando cheguei bem perto, ela olhou para
minha direção. E levou um grande susto. Gritou.
- Aaai! Tarado! Mendigo assaltante!!
Socorro!!!
E me deu um golpe no rosto, com a bolsa. Apesar
da bolsa ser pequena, o impacto foi enorme, como se houvesse um tijolo dentro.
Não caí no chão, mas rodopiei. E logo vi que
fracassei.
- Socorro!!! Assalto!!! Pervertido!!!
Socorro!!! – ela continuava gritando. Fez um grande escândalo, e já começou a
atrair gente.
Fugi dali na hora. Não sentia as dores no
corpo. Só pensava em me mandar. Vai que ali perto haveria um policial?!
Corri a esmo, sem direção. Sem ver para onde
ia, sem prestar atenção em quem passava na rua. Depois, veio o cansaço. E
resolvi me abrigar em um beco. Outro beco mal iluminado.
E, ali, recomecei a chorar, apoiado na
parede, escondido pelas sombras. Havia um poste aceso bem na entrada do beco,
mas também uma área de sombra em que eu podia me abrigar.
Chorava de raiva e desespero.
Que porcaria de vampiro eu sou! Que p(...) de
uma fraude estou me saindo! Quando foi sangue de animais, eu fui bem sucedido;
agora, quando resolvo sugar sangue humano, o que recebo?! Apanhei duas vezes!
Eu não sirvo para ser sanguessuga, mesmo.
Nunca foi minha vocação ser vampiro. Sou tão azarado. Adeus, vida que eu amava.
Agora aqui estou eu, fraco, já sentindo novamente as dores das surras que
levei, esfarrapado, ferido, mijado. O mundo me odeia... Snif...
- Macário?!
- É você, Macário?!
Ouço vozes. E agora são femininas – e
familiares.
Olho na direção da luz da rua – e me deparo
com Maura e Créssida, juntas! Ambas vestiam casacos e saias curtas.
- Ma... Maura! Créssida!
- Macário! O que aconteceu com você?! –
pergunta Créssida, com olhar espantado.
- Sua aparência está um lixo! – emendou
Maura. – Olha só para você! Parece um mendigo!
- M-Maura... Créssida...
- Foi pura intuição, mas achamos você aqui,
Macário! Nossa! – exclamou Maura. – Você disse que queria ver o médico, mas
você fugiu do hospital! Mas eu tive de esperar meu horário de trabalho terminar
para ver se você não estava em casa...
- É – ajudou Créssida – eu passei no
hospital, depois que troquei minha roupa, para ver se você tinha ido mesmo lá;
mas aí dou de cara com a Maura, e ela disse que você virou um monstro, fez
aquela cara feia de novo, e fugiu do hospital, da universidade... aí eu fui
para sua casa, ver se você tinha corrido para lá... e até no bar eu passei,
sabe? E você também não estava lá!
Eu ouvia elas falando, calado. E tentando me
conter para não avançar nelas.
Não, Macário... Resista... ela é sua amiga,
Macário... O sangue da Maura, não... nem o da Créssida, ela já foi mordida...
Oh, não... não... eu podia sentir o cheiro do sangue delas... irresistível
cheiro de sangue... ah, sangue... oh, não... não...
- Mas, Macário! – falou Maura. – Fugiu do hospital
e se meteu onde?! Brigou com cachorros?! Pois olha só para você, pelo jeito os
cães tentaram te devorar e... iec! E ainda por cima está cheirando a xixi!!!
- Macário, pode nos explicar o que está
havendo com você?!
- Eu... eu...
– balbuciei.
- Macário?
- Eu... EU PRECISO DE SANGUE!!! – gritei,
avançando em Maura.
Agarrei-a pelo pescoço. Ela me devolveu um
olhar de puro medo. Eu já ia mordê-la, mas Créssida interviu, e me agarrou por
trás. Puxou minha cabeça, me fez soltar Maura, me virou em sua direção e me
acertou um tabefe demolidor. Caí no chão.
O tabefe me fez voltar à plena consciência.
- Ah! Obrigada, amiga! – agradeceu Maura,
respirando. Depois, se voltando para mim, ainda em choque: – Macário!!! O que
deu em você?!
- Oh, não... M-Ma-Maura, me perdoe, eu não
sei o que me deu, eu... – tentei me justificar, já chorando.
- Espere aí, acho que já entendi tudo agora,
Sr. Macário! – falou Créssida, brava. – Agora saquei: VOCÊ é o maníaco
mordedor!!!
- Hein?!
- Então você é um dos maníacos que andam mordendo
pessoas!!! Deve haver mais de um, mas você é um deles!!!
- Créssida... não, não é nada disso... – me
expliquei, nervoso. – Eu não mordi ninguém... ainda... eu me tornei um vampiro!
Foi isso que aconteceu!!! Me tornei um vampiro! O seu maníaco mordedor é um
vampiro legítimo!!!
- De novo com essa história, Macário! –
gritou Créssida. – Você é o maníaco mordedor, isso sim!! O psicopata que anda
sugando sangue por aí!!!
- Oh, meu Deus! Logo o Macário!!! – gritou
Maura. – Eu devia ter desconfiado que ele estava gradualmente ficando louco...
Mas não a esse ponto! Ao ponto de ele querer chupar meu sangue!! E eu fui para
a cama com ele, oh!...
- Temos de avisar a polícia!!! – conclui
Créssida.
- Não! Maura, Créssida, por favor, me
escutem... – implorei, mas elas não queriam me ouvir.
- Eu sinto muito, Sr. Macário mordedor, mas
você não pode mais ficar à solta! – foi a vez de Créssida voltar um olhar
terrível para mim.
- Meninas, não, por favor! – tentei implorar
novamente. – Polícia não!
Era só o que me faltava: ser preso! E
denunciado pelas mulheres que um dia foram minhas amantes! Minha vida foi
jogada na lata do lixo!!!
- Polícia! POLÍCIA!!! – gritava Créssida, na
direção da rua, ladeada por Maura. – Eu achei afinal quem foi o...
A exclamação de Créssida acabou interrompida
quando Maura teve uma paralisia súbita, e caiu, desacordada, estatelando-se no
chão.
- Macário!! O que você fez?! – exclama Créssida
depois do susto.
- Eu não fiz nada! Eu...
Aí, foi a vez de Créssida sofrer a mesma
paralisia e cair no chão, desacordada.
Porém, antes de ela cair, tive a sensação de
ter ouvido um barulhinho de disparo de projétil a ar – mais silencioso que o
disparo com arma de fogo. Como se houvessem usado uma arma de ar comprimido.
- Maura! Créssida!!
Acudi as duas ali caídas. Estavam gritando
comigo em um instante, e, no outro, estavam caídas... desacordadas... será
que...
Fui examinar os batimentos cardíacos de
Maura, e vejo, cravado em seu cabelo, um dardo. Haviam dardos também nas suas
costas, as pontas entranhadas em seu casaco de jeans.
Eram dardos de tranquilizante, do tipo usado
para dopar animais selvagens.
Olhei para Créssida: haviam dardos cravados
em seu corpo, também.
Ambas respiravam. Estavam vivas, pelo menos!
Alguém as atingiu com tranquilizante. Mas
como? Por quê?! Quem?!
- Te salvei, amigo.
A voz desta vez era masculina, mas também era
familiar. Ergo a cabeça na sua direção.
- Oi, Macário. Que surpresa te ver aqui... e
em estado tão lastimável.
Era Luce!
Ele não tinha ido viajar, conforme havia
falado na sexta-feira passada!
Ele segurava um canudo nas mãos – certamente,
era uma zarabatana. Então foi ele quem disparou os dardos. E...
- Essas suas amigas aí são tão escandalosas,
não acha? Tive de lhes dar um tranquilizante antes que as coisas ficassem
feias... Mas, Macário, por que não sugou o sangue dos cães? Por que tem de
sofrer desse jeito?!
Arregalei o olho.
Ele estava trajando uma vistosa capa preta
por cima do terno. E seu cabelo... seu cabelo estava claro, e despenteado na
parte de cima.
Era ele! Era o mesmo estilo do cabelo do
vampiro que aparecia em meus sonhos! E a capa era preta, e, do jeito como o
envolvia, formava a mesma massa de sombras dos meus sonhos! E...
Era ele! Luce!!!
- Luce! É você!!
- Eu o quê, Macário? – ele me olhou,
espantado.
- VOCÊ! – exclamei, indignado. – Foi você
quem mordeu a Valtéria e a mim naquele dia! VOCÊ é o vampiro que invade meus
pesadelos! É VOCÊ!!!
Luce desfez a cara de espanto. E falou:
- É... acho que não dá mais para esconder.
Fui eu, sim. Aliás, Sou eu, sim.
E sorriu, mostrando os dentes pontiagudos. E
começou a rir, de maneira demoníaca, enquanto a sua capa o envolvia, e o
transformava novamente naquela assustadora massa de sombras.
Próximo capítulo daqui a 15 dias.
Volto a perguntar aos leitores: como está a novela até aqui? Continuo? Paro? Deixo de colocar ilustrações? Não deixem de se manifestar! É tudo que solicito a vocês!
Até mais!
Um comentário:
Que loucura!!! Manda brasa, Rafa!
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