Olá.
Hoje,
vamos tratar novamente de livro.
Algumas
postagens atrás, tratei a respeito do multimídia escritor gaúcho Tabajara Ruas
– que, além de romancista, também já teve relevantes trabalhos com cinema,
quadrinhos e publicidade.
Recentemente,
em final de outubro mais precisamente, ele estreou nos cinemas seu mais recente
filme, A Cabeça de Gumercindo Saraiva.
Mas,
hoje, eu vou tratar é do livro de mesmo nome, que Tabajara Ruas escreveu ao
lado do jornalista Elmar Bones.
OS DOIS GUMERCINDOS
A
CABEÇA DE GUMERCINDO SARAIVA, o livro, foi lançado em 1997, pela editora
Record. Não é bem um romance; trata-se de um ensaio historiográfico. Ainda
assim, foi o livro mais vendido da Feira do Livro de Porto Alegre daquele ano.
Mas,
ao contrário do que se pode pensar, o recente filme de Tabajara Ruas não se
baseia exatamente nesse livro, mas em outro do mesmo autor. É que,
posteriormente, Tabajara Ruas retoma o personagem título em um romance, Gumercindo – é nesse em que o filme se
baseia, segundo as notícias referentes que circulam na internet.
De
todo modo, tanto A CABEÇA DE GUMERCINDO SARAIVA quanto Gumercindo tomam por base um dos personagens-chave de um dos
episódios mais controversos e sangrentos da história do Rio Grande do Sul: a
Revolução Federalista de 1893.
A
CABEÇA DE GUMERCINDO SARAIVA, em suas 226 páginas, é um exercício de
micro-história – modalidade de reconstrução historiográfica em que, partindo de
um pequeno detalhe, se reconstrói todo o panorama de uma época. Neste caso, a
partir da vida do caudilho uruguaio Gumercindo Saraiva (1852 – 1894), também se
recupera boa parte da história do Rio Grande do Sul e do Uruguai entre os
séculos XVIII e início do século XX.
Tabajara
Ruas e Elmar Bones reconstituíram a trajetória de Gumercindo Saraiva a partir
de pesquisas historiográficas e entrevistas com descendentes dos personagens
envolvidos – para tal, eles tiveram de percorrer várias cidades do Rio Grande
do Sul, como Santa Vitória do Palmar (onde o corpo de Gumercindo supostamente
está enterrado), Hermenegildo, Bagé, Palmeira das Missões, Porto Alegre e
cidades do Uruguai. A narrativa é não-linear, entrecortada com trechos das
entrevistas com descendentes dos personagens envolvidos, tanto os de Gumercindo
Saraiva quanto os de outro personagem lendário do evento, Adão Latorre.
SOBRE ELMAR BONES
Antes
de prosseguirmos, é justo que falemos um pouco a respeito do parceiro de
Tabajara Ruas nessa empreitada, Elmar Bones da Costa, jornalista e também
entusiasta na História do Rio Grande do Sul.
Antes
de se dedicar aos temas históricos, Elmar Bones, nascido em Santana do
Livramento, RS (ou, segundo a Wikipedia, em Cacequi, RS), em 1944, já trabalhou
em veículos de comunicação como Veja (ele
fez parte da primeira equipe da revista, fundada em 1968), IstoÉ, Gazeta Mercantil, Estado de São Paulo e Folha da Manhã. A partir de 1997, ele
foi o editor-chefe dos álbuns História
Ilustrada de Porto Alegre e História
Ilustrada do Rio Grande do Sul, inicialmente publicados em fascículos
encartados no jornal Zero Hora de Porto Alegre – em 1997 e 1998,
respectivamente. Bones também é diretor da JÁ Editores, responsável pela publicação
do jornal JÁ Bom Fim/Moinhos e pela Revista JÁ. Bones também tem livros
publicados, vários deles sobre temas históricos, como A Paz dos Farrapos (1995), Netto
– O General que Não Aceitou a Paz (1996), Luiz Rossetti – O Editor Sem Rosto (1996), A Espada de Floriano (2000), Os
Pioneiros da Ecologia (2001) e O
Cardeal e o Guarda-chuva (2003).
SOBRE A REVOLUÇÃO FEDERALISTA E SOBRE O
QUE FEZ GUMERCINDO SARAIVA
O
evento, considerado uma das guerras mais sangrentas travadas em solo
brasileiro, é considerado por alguns um tabu historiográfico. Afinal, por conta
de uma violenta disputa política durante o período de consolidação da República
Brasileira proclamada em 1889, estima-se que tenham morrido mais de dez mil
pessoas, boa parte delas degolada – e, muitas vezes, torturada de forma cruel.
O
evento começou em 1893, durante o período de consolidação da República
Brasileira, proclamada em 1889. Começou como uma disputa entre caudilhos pelo
poder no Rio Grande do Sul – o que diferenciava os dois lados eram as ideias de
como a política do agora Estado (com a Proclamação da República, as Províncias
passaram a se chamar Estados) deveria ser conduzida.
O
presidente brasileiro na época era Floriano Peixoto (que governou de 1891 a
1894), conhecido por seu autoritarismo, e um verdadeiro enigma para quem se
arriscar a traçar sua personalidade; e o governante do Rio Grande do Sul era Júlio
de Castilhos, advogado e jornalista, que na juventude fora gago, porém um
orador influente (parece estranho, mas é verdade). Júlio de Castilhos havia
ganho fama de republicano e abolicionista nos tempos em que escrevia e editava,
junto com Venâncio Aires, o jornal A
Federação. O maior rival desse jornal era o periódico A Reforma, de Gaspar Silveira Martins, de ideologia liberal. Júlio
de Castilhos também era uma das principais lideranças do Partido Republicano
Gaúcho, fundado em 1882.
Após
a proclamação da República, Silveira Martins, então Presidente do Rio Grande do
Sul (cargo equivalente ao de Governador nos dias atuais) e amigo íntimo do
imperador Pedro II, havia sido exilado para a Europa. Depois disso, o Estado
teve quatro governadores em um curto espaço de tempo – seis meses, mais
precisamente – em um período de intensa convulsão política, até que Júlio de
Castilhos, então deputado da Assembleia Nacional Constituinte, se impôs, e, uma
vez no poder, implantou um governo de cunho autoritário, baseado na doutrina
positivista – doutrina filosófica de origem francesa que foi a favorita de
muitos seguidores do republicanismo no final do século XIX (os dizeres da
bandeira brasileira, “Ordem e Progresso”, foram inspirados nessa filosofia).
Segundo os preceitos castilhistas, a República, para se consolidar, teria de
passar por uma fase ditatorial, com centralização do poder nas mãos de um
ditador republicano – o que ele praticamente o foi em seu Estado, e com poderes
assegurados pela Constituição Política do Rio Grande do Sul, promulgada em 14
de julho de 1891, que Castilhos redigira praticamente sozinho. Júlio de
Castilhos governaria até 1903, com o seu falecimento devido a um câncer na
garganta, mas os ideais castilhistas permaneceriam durante os 25 anos do
governo de seu sucessor e seguidor direto, Antônio Augusto Borges de Medeiros.
Bem:
durante o governo de Júlio de Castilhos, cristalizaram-se duas correntes
políticas opostas: de um lado, os republicanos, ou pica-paus, apoiadores de
Floriano Peixoto e Júlio de Castilhos, e, portanto, defensores do centralismo;
de outro, os opositores destes, federalistas, chamados de maragatos, liderados
por Silveira Martins, que retornara do exílio em 1892, e João Nunes da Silva
Tavares, o Joca Tavares. Foi aos maragatos que Gumercindo Saraiva havia se
aliado, tornando-se chefe militar das tropas maragatas.
Pica-paus
e maragatos também se diferiam na forma de se vestir – os pica-paus usavam
lenços brancos no pescoço, e os maragatos, lenços vermelhos com bombachas.
Houve um boato de que o real objetivo dos maragatos era a restauração da
Monarquia do Brasil, o que não era verdade – o objetivo dos federalistas era,
primordialmente, apenas a deposição de Júlio de Castilhos e, depois, de
Floriano Peixoto. Mas é claro que Júlio de Castilhos combateu os maragatos com
todas as suas forças. E, de todo modo, o período da Revolução Federalista (1893
– 1895) foi o período em que as discussões políticas chegaram aos extremos no
Rio Grande do Sul (imagina se naquela época já existisse internet, Facebook,
Twitter e WhatsApp...).
Enquanto
isso, no mesmo ano de 1893, ocorria no Rio de Janeiro a Revolta da Armada,
liderada pelo almirante Custódio de Melo. A motivação, é claro, era oposição a
Floriano Peixoto; e, durante essa revolta, a cidade do Rio de Janeiro chegou a
ser bombardeada. Porém, essa revolta foi rapidamente sufocada. Os revoltosos da
Armada logo se aliariam aos federalistas do Rio Grande do Sul, e, logo,
Floriano Peixoto tinha mais um problema para lidar.
Gumercindo
Saraiva liderava as tropas maragatas em ataques por terra, em uma marcha de
2500 quilômetros entre Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, visando
chegar ao Rio de Janeiro. No caminho, as tropas de Saraiva travaram cinco
importantes batalhas e setenta combates menores contra as tropas federais e os
pica-paus de Júlio de Castilhos. A mais importante dessas batalhas foi o Cerco
da Lapa, no Paraná, onde Gumercindo enfrentou a heroica resistência dessa
cidade e das tropas do coronel Antônio Ernesto Gomes Carneiro. As tropas federais
pereceram nessa batalha, mas Floriano Peixoto conseguiu ganhar tempo para
reorganizar suas forças e impedir o avanço das tropas de Saraiva, que, depois
de conquistar Curitiba, foi derrotado quando tentava avançar por São Paulo,
cujos líderes eram aliados de Floriano, e obrigado a voltar para o Rio Grande
do Sul, onde morreu em 10 de agosto de 1894 na localidade de Carovi, por um
tiro de um franco-atirador.
A
morte de Gumercindo Saraiva foi muito comemorada pelos castilhistas. Gumercindo
fora enterrado em cova rasa, mas seu túmulo foi profanado três vezes – na
terceira, sua cabeça teria sido decepada e levada para Júlio de Castilhos no
Palácio do Governo em Porto Alegre.
A
morte de Saraiva foi decisiva para o fim do movimento, encerrado com um
armistício assinado em 23 de agosto de 1895. Silveira Martins novamente se
exilou. Morreu em Montevidéu, em 1901. No entanto, o conflito entre pica-paus e
maragatos não cessou no campo político, e continuou dividindo o povo
rio-grandense, resultando na Revolução de 1923.
E,
com razão, a morte de Gumercindo Saraiva havia sido comemorada pelos seus
inimigos. O líder militar dos maragatos teria sido responsável por boa parte
das 10 mil a 12 mil mortes registradas durante o conflito, sendo 2 mil por
degola. Consta que, sob o comando de Saraiva, vários prisioneiros de guerra
eram levados a estâncias e tiveram seus pescoços cortados a faca coletivamente,
muitos depois de serem barbaramente torturados. Tanto os federalistas quanto os
castilhistas praticavam a degola dos adversários, mas Gumercindo Saraiva foi o
que levou a fama maior de carrasco. Os piores relatos de mortes coletivas de
prisioneiros foram em Rio Negro, Bagé (28/11/1893), com a execução de cerca de
300 prisioneiros – muitos deles pelas mãos do negro Adão Latorre – e em Boi
Preto, Palmeira das Missões, onde 200 prisioneiros teriam sido degolados.
A TRAJETÓRIA DE SARAIVA
Após
o prefácio de Júlio Maria Sanguinetti, o livro se divide em cinco partes, cada
uma dividida em vários capítulos, a maioria curtos – não mais que três páginas
cada, no máximo sete.
Na
primeira parte, O Império do Boi, começa
a ser traçado o perfil de Gumercindo Saraiva a partir de entrevistas com os
descendentes do caudilho. Ao mesmo tempo, também são tratados de alguns
aspectos da economia do território gaúcho, que atravessou o século XIX baseada
na pecuária e na produção de charque. Foi nessa base econômica que despontou o
pai de Gumercindo, Francisco Saraiva, que teve atuação na Guerra dos Farrapos
(1835 – 1845) e, posteriormente, mudou-se para o Uruguai para fazer fortuna
como estancieiro. Aliás, foi um dos maiores estancieiros do Uruguai, acumulando
uma invejável quantidade de hectares.
Na
segunda parte, Os Filhos de Chico
Saraiva, já trata da juventude de Gumercindo e de seus irmãos, e de sua
formação durante o conturbado período de lutas políticas ocorridos no Uruguai
durante as décadas de 1840 a 1860 – sob os governos de Manuel Oribe, Frutuoso
Rivera e Atanasio Aguirre.
Na
terceira parte, O Estancieiro, já
tratamos tanto do período em que Gumercindo começou a fazer fortuna no Rio
Grande do Sul quanto da atividade charqueadora, e do contexto do Rio Grande do
Sul durante o Império e a República, e de como se deu a convulsão política
entre os maragatos e os pica-paus, que acabaria conduzindo à Revolução
Federalista, da qual Gumercindo acabaria fazendo parte.
Quarta
parte: A Guerra. Aqui, já se trata da
atuação das tropas de Gumercindo Saraiva na Revolução Federalista, desde o
Uruguai até a marcha em direção a São Paulo – e, claro, promovendo algumas
atrocidades por onde passava. Um dos capítulos descreve as torturas que eram
realizadas nos prisioneiros até a execução por degolamento.
E,
na quinta e última parte, O Fantasma, tratamos
tanto da morte de Gumercindo, após o retorno ao Rio Grande do Sul, quanto da
atuação do terrível Adão Latorre, o Degolador do Rio Negro, o negro
especializado em degolas, e que teria sido responsável por mais de trezentas
mortes – lendas especulam que ele teria feito tudo em apenas um dia. Seus
descendentes evitam entrar em detalhes a respeito da vida de Latorre, que,
posteriormente, atuaria na Revolução de 1923.
No
fim da leitura, os autores deixaram em aberto qual seria a real imagem de
Gumercindo Saraiva a ser passada para a posteridade: um herói que lutava por liberdade
(ainda que antes para si para depois estendê-la aos outros)? Ou apenas um homem
violento? A lenda, por maior esforço que os autores fizeram, não se separou
totalmente da realidade – ainda há muito mistério no ar.
De
todo modo, A CABEÇA DE GUMERCINDO SARAIVA é um livro fácil de entender –
escrito pensando no leitor leigo em História. O tom da narrativa é realmente de
um romance épico, sem se prender demais em análises historiográficas, com
inúmeras citações de trechos de outros autores – mas evitando o tom acadêmico.
A
apresentação de uma época histórica que, de certa forma, espelha a nossa
realidade, também marcada pela polarização política, como se viu nas eleições
de 2018.
E,
atualmente, está em curso uma campanha incentivando as pessoas a comprarem
livros como presentes de Natal. O Estúdio Rafelipe dá sua contribuição – vide
esta e outras resenhas de livros publicadas aqui.
PARA ENCERRAR...
...mais
algumas páginas de minha HQ folhetinesca, O
Açougueiro, que faz horas que não publico páginas inéditas. Está se aproximando o aniversário de
publicação desta série, que se encaminha para o seu terceiro ano. Sim, este ano
produzi menos páginas, mas tenho de prosseguir, e tenho de ir até o fim, de
qualquer maneira...
Aguardem
novidades.
Até
mais!
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