Hoje, volto a falar de quadrinhos clássicos. E, desta vez, de um quadrinho das antigas, de um gênero popular nas antigas: o faroeste.
Esse personagem do qual vou falar já foi muito popular nos EUA e também no mundo. No cinema, no rádio, na TV e, claro, nos quadrinhos. Mas ele tem muitas peculiaridades: esse herói atuava nos EUA, mas era mexicano, e se popularizou os quadrinhos pelos traços de um argentino. Já explico.
Estou falando de CISCO KID.
CISCO KID é o herói de faroeste à moda antiga. Daquele tipo que cavalgava tranquilamente pelas pradarias, fazendo valer a justiça do Oeste, muito antes do revisionismo do mito do caubói a partir dos anos 70.
Ele apareceu pela primeira vez em um conto, The Caballero’s Way, escrito em 1907 por William Sydney Porter, sob o pseudônimo de O’Henry. Esse escritor (1862 – 1910) é reconhecido como um dos maiores contistas dos Estados Unidos, apesar de ter tido uma biografia muito complicada – Porter escrevia sob o pseudônimo de O’Henry por conta de seu passado, que incluiu um exílio dos EUA e uma temporada na prisão.
Bom. Esse conto foi adaptado para o cinema em 1929, sob o nome No Velho Arizona. Esse filme ainda é pioneiro: foi o primeiro faroeste sonoro da história do cinema. O herói foi interpretado por Warner Baxter. E foi a partir daí que Cisco Kid começou a se tornar popular. Cisco Kid ganhou, em 1942, um programa de rádio, onde era chamado de “Robin Hood do Oeste”. Novos filmes começaram a aparecer com o personagem nos anos 40. Em 1945, os estúdios Monogram lançaram dois filmes com Cisco Kid; em 1948, os direitos do personagem foram para a United Artists, que produziu cinco filmes. No mesmo ano, Cisco Kid ganhou uma série de TV, que durou até 1946, totalizando 156 episódios. Essa série, que tinha Duncan Renaldo fazendo o papel de Cisco Kid, já chegou a ser exibida no Brasil. Outros dois atores, entre Baxter e Renaldo, também já interpretaram Cisco Kid: Cesar Romero e Gilbert Roland.
O personagem também ficou popular em outras mídias. Em tempos recentes, alguns grupos musicais gravaram músicas chamadas Cisco Kid.
Mas, antes de falar da carreira do herói nos quadrinhos, deixe-me apresentar o personagem. Segundo o que se sabe acerca desse personagem (já que não se conhece seu passado, que nem importa muito), Cisco Kid é um galã mexicano, vestido elegantemente, e que percorre as pradarias norte-americanas defendendo a justiça e caçando bandidos – assaltantes, ladrões de gado e fazendeiros inescrupulosos. Ou seja, era o herói de faroeste à moda antiga, bom de punho, rápido no gatilho, popular entre os xerifes e capaz de derreter o coração das mocinhas. E Cisco sempre anda acompanhado de seus dois maiores parceiros, o seu incrível cavalo Diablo, invencível na corrida e capaz de saltar grandes precipícios, e seu parceiro humano, o gordinho e atrapalhado Pancho, uma espécie de Sancho Pança para um Dom Quixote viril (é possível que Pancho tenha servido de inspiração para a criação de Chico, o companheiro gordo e também mexicano do herói italiano Zagor). Apesar de atrapalhado, Pancho é um excelente parceiro de ação de Cisco Kid.
Bão. Cisco Kid fez uma grande carreira nos quadrinhos. A primeira adaptação para HQ das aventuras de Cisco Kid data de 1944, pela Comic Books, mas que só durou três números, desenhados por um certo John Giunta.
Quando estreou o filme e a série de TV em 1948, veio a segunda tentativa de se popularizar o personagem nos quadrinhos, baseado na série de TV. Foi em 1950, pela editora Dell Comics, com roteiros de Rod Reed – que procurou captar muito do espírito de O’Henry, incluindo sua ironia, seu humor e sua piedade com os bandidos e suas tentativas frustradas de se apropriar do alheio – e desenhos de Robert Jenney, mais tarde substituído pelo italiano Alberto Giolitti (que também ficou conhecido pela primeira – e mais valorizada – fase das HQ de Star Trek, a partir de 1967, pela editora Gold Key). A fase de Cisco Kid na Dell Comics durou até 1958, totalizando 48 números.
Mais tarde, foi a King Features Syndicate quem adquiriu os direitos do personagem. Foi em 1951 que começou a mais lembrada fase do personagem nas HQ, em forma de tiras diárias – muitos especialistas desconsideram as fases anteriores, sequer citam-nas. Os roteiros ficam mais uma vez a cargo de Rod Reed, porém o artista escolhido nem era americano, e nem desenhou o personagem nos EUA: o argentino José Luís Salinas.
SALINAS
O mercado argentino de quadrinhos é um dos mais valorizados do mundo, dentro e fora desse país. Não é como no Brasil. Muitos artistas vindos da Argentina são conhecidos e reconhecidos internacionalmente. José Luis Salinas é um deles. Ele foi um dos primeiros artistas argentinos a fazer carreira internacionalmente.
Nascido no bairro de Flores, em Buenos Aires, em 11 de fevereiro de 1908, Salinas, um autodidata (ele mesmo costumava afirmar: “O desenho não se aprende, apenas aperfeiçoamos aquilo que já nasce com a gente”), começou sua carreira como ilustrador e publicitário. Embora já estivesse esporadicamente nas páginas pioneiras da revista El Tony, de Ramon Columba (a primeira revista dedicada integralmente a publicar HQs na Argentina), Salinas começou a se dedicar integralmente aos quadrinhos só em 1936, quando publicou, na revista Patoruzu, a série Hernan, El Corsario. Esse trabalho deu reconhecimento a Salinas por ter marcado o início da tradição de aventuras nas historietas argentinas.
Mais tarde, Salinas começa, para a revista El Hogar, a adaptar para HQ grandes clássicos da literatura mundial, notadamente romances de Julio Verne, Emílio Salgari, Rudiyard Kipling, Henry Rider Haggard, e muitos outros. Salinas começa a chamar a atenção pela arte, semi-realista, com bom domínio de claro-escuro, jogos de sombras, dando às figuras aspecto de semi-fotografias. Técnicas que ele usaria nas tiras de Cisco Kid.
Em 1951, Salinas estava de passagem pelos EUA quando assinou contrato com a King Features Syndicate para desenhar Cisco Kid, a partir dos roteiros de Rod Reed. E com uma curiosa cláusula: Salinas iria desenhar essas tiras em seu país, e as artes seriam remetidas por correio aos EUA. Outro motivo que tem sido apontado para esse fato era que Salinas temia que seu filho Alberto fosse convocado para o exército americano se a família se mudasse para lá – os estrangeiros que conseguem visto permanente para os EUA também são obrigados a prestar o serviço militar americano.
Salinas desenhou Cisco Kid até 1968. Mas não parou por aí. Em 1973, a King Features Syndicate encomendou uma tira sobre futebol, na tentativa de popularizar esse esporte nos EUA. O objetivo não foi bem sucedido, mas as HQ ganharam outra grande tira para a história: Gunner ou Dick El Artillero (Dico, no Brasil – que nome ele foi receber por aqui). Salinas desenhou Dick entre 1973 e 1975, sob os roteiros do também argentino Alfredo Julio Grassi. Mais tarde, a arte da tira passou para Lucho Olivera e depois para C. A. Pedrazzini (mas sempre escrito por Grassi). Dico, o Artilheiro, foi publicado no Brasil pela RGE.
Os trabalhos posteriores de Salinas não foram tão relevantes, mas ele foi reconhecido – e premiado – em vida. Foi ganhador de todos os prêmios da Argentina e faturou, em 1976, o Yellow Kid, em Lucca, na Italia – o Oscar das HQ antes de 1985, quando foi instituído o prêmio Eisner.
Salinas faleceu em 1985. Seu filho Alberto Salinas também é desenhista de HQ.
Bão. Cisco Kid, por Reed e Salinas, foi publicado no Brasil na revista Eureka, na década de 70, e em álbum pela coleção Quadrinhos L&PM, em 1987. E é desse álbum que vou falar agora.
O ÁLBUM
A editora L&PM lançava, através do selo Quadrinhos L&PM, excelentes álbuns com o melhor do quadrinho brasileiro e mundial. Ainda lança, mas agora muito esporadicamente – nos anos 80, a quantidade de títulos disponíveis era muito maior, indo desde Mandrake, Dick Tracy, Valentina, Corto Maltese, Spirit, e material brasileiro, como As Cobras e As Aventuras da Família Brasil de Luís Fernando Veríssimo, Ed Mort de LFV e Miguel Paiva, O Analista de Bagé de LFV e Edgar Vasques, Rango de Vasques e o Capitão Bandeira de Rafic Farah e Paulo Caruso. Hoje, a oferta maior de quadrinhos pela L&PM são as compilações de tiras pelo selo L&PM Pocket.
Bão. O álbum da L&PM de Cisco Kid é mais uma amostra das aventuras do personagem desenhadas por Salinas. Foi lançado em 1987, dois anos após a morte de Salinas – porém, parecia que os editores não sabiam disso. Ele reúne, em 48 páginas, dois arcos de tiras de Cisco Kid, provavelmente produzidos em 1953 e 1954 - segundo dá pra ler no copyright no canto dos quadrinhos. Podem ver, inclusive, que apenas o nome de Salinas é creditado – o de Rod Reed não aparece. Talvez porque, de relevante no álbum, seja mais a bela arte do argentino. O texto introdutório, que relata um pouco sobre o personagem e sua carreira nas HQ (e que serviu de base para as informações que vocês acabaram de ler) não tem assinatura. Mas é através dele que sabemos que as tiras tem texto de Rod Reed.
As aventuras se desenvolvem em sequências de tiras de até três quadrinhos, todas em preto-e-branco, o formato usado para a publicação diária em jornais, com sequências de suspense e ação, que continuam na tira seguinte, mas com alguns erros de continuidade. Outro ponto contra o álbum são os prováveis problemas de impressão, que “apagam” as linhas de algumas sequências, reforçam muito os pretos em outras, prejudicando um pouco a bela arte de Salinas, quase toda constituída de planos panorâmicos, de corpo-inteiro, e poucas sequências de close e meio-corpo, cenários limitados, mas ótimo domínio da anatomia e dos traços fisionômicos dos personagens, bem como uma reconstituição fiel dos cenários do velho oeste do século XIX, como desertos, pradarias, montanhas e vilarejos. Os roteiros de Rod Reed são daquele faroeste clássico, de mocinhos atuando a favor da lei, bandidos inescrupulosos, vítimas inocentes, tudo na velha base do “Oeste sem lei”, até que surja alguém para colocar ordem na anarquia. E o Cisco Kid acabou ficando um herói sem passado ou mesmo futuro, apenas o presente importa para ele e Pancho. Mas tudo bem: Reed revela, antes de tudo, um herói cheio de alegria de viver, cercado de aventuras e mocinhas, deixando seu cavalo definir o rumo a seguir. Não tenho como confirmar se é verdade que Reed procurou, sim, manter o espírito de O’Henry, pois é difícil achar coletâneas de contos desse autor traduzidas para o português – incluindo uma que inclua The Caballero’s Way – para comparar com a HQ.
Bom. A primeira aventura do álbum trata dos esforços de Cisco Kid para salvar um racheiro de ladrões de gado. O rancheiro em questão, o velho Vernon Dasher, proprietário do rancho Big V- (assim mesmo: rancho Big V traço), é encontrado caído de seu cavalo por Cisco e Pancho após sofrer um atentado. Pouco depois, por interferência da bela Dotty, filha de Vernon, Cisco Kid é nomeado capataz do rancho, e já tem de medir forças com os homens fortes que trabalham lá. Porém, o triste é que os homens que trabalham no rancho fazem parte da quadrilha de ladrões, sem o rancheiro saber. E o pior: o líder dos bandidos é o melhor amigo de Vernon, um fazendeiro chamado Will Billings, inescrupuloso e dissimulado. Bee-Bee, como é conhecido, trama um plano para afastar Cisco Kid do rancho, após este dar trabalho para os homens de Vernon. Aliás, esse plano é marcado por um diálogo genial:
Billings, ao conversar com Vernon, diz suspeitar que Cisco Kid é um fora-da-lei: “Tenho certeza de que Cisco Kid é procurado por três xerifes”. Ao indagar Cisco sobre a verdade sobre isso, Vernon pergunta: “É verdade que você é procurado por três xerifes?” “Três, não...”, responde Cisco, “Há seis xerifes à minha procura”. Depois dessa resposta Cisco é praticamente demitido. Mas, depois que tudo é resolvido e há o clássico final feliz, com os bandidos presos, Vernon volta a perguntar a Cisco: “Mas por que os seis xerifes estavam à sua procura?” É a vez de Dotty responder: “Lógico, papai. Sem dúvida, eles querem condecorar Cisco Kid...”.
Bão. Nessa primeira aventura, Cisco mostra o quanto é bom no gatilho e nos punhos; o quanto o cavalo Diablo é eficiente; e Pancho tem um papel ativo na ação, auxiliando o herói em diversas situações – e sofrendo em outras. E temos a instigante presença de Dotty, que apesar de meio “mocinha” frágil e inocente, também sabe ser corajosa.
A segunda aventura é quase uma aventura solo de Cisco – Pancho quase não se faz presente. Ela começa quando Carter, diretor de uma companhia de diligências, está sentindo estar à beira da falência, quando a ferrovia chega à cidade, praticamente acabando com seu negócio. Aceitando o conselho da filha, Carol, Carter resolve convocar Cisco Kid para ajudar – sem desconfiar, entretanto, que as pretensões de Carol são outras com relação ao galã. Porém, chamar Cisco Kid, que nesse momento continua trabalhando, Pancho e ele, no rancho Big V-, não é fácil: por não saber onde ele está, Carter não consegue enviar um telegrama; então, recorre aos sinais de fumaça dos índios para convocar o aventureiro – e desta vez, ele atende.
Porém, não é tão simples quanto parece ajudar o velho Carter. Cisco, inicialmente, tenta conversar com o principal dirigente das ferrovias a contratar Carter pelo seu conhecimento da região, mesmo sabendo que Carter não se dá bem com elas, e vice-versa. A conversa com o teimoso dirigente da ferrovia não dá muito certo. Mas o pior está para acontecer: dois bandidos mascarados dinamitam e assaltam um trem de carga, se fazendo passar por Cisco e Pancho, e assim jogam a culpa do assalto no aventureiro, que chega a ser preso; mas, com a ajuda de Carol, Cisco consegue fugir, e inicia um plano não apenas para pegar os bandidos e provar sua inocência, mas também mostrar aos dirigentes da ferrovia a utilidade de Carter para a mesma.
Porém, não é tão simples quanto parece ajudar o velho Carter. Cisco, inicialmente, tenta conversar com o principal dirigente das ferrovias a contratar Carter pelo seu conhecimento da região, mesmo sabendo que Carter não se dá bem com elas, e vice-versa. A conversa com o teimoso dirigente da ferrovia não dá muito certo. Mas o pior está para acontecer: dois bandidos mascarados dinamitam e assaltam um trem de carga, se fazendo passar por Cisco e Pancho, e assim jogam a culpa do assalto no aventureiro, que chega a ser preso; mas, com a ajuda de Carol, Cisco consegue fugir, e inicia um plano não apenas para pegar os bandidos e provar sua inocência, mas também mostrar aos dirigentes da ferrovia a utilidade de Carter para a mesma.
É o faroeste clássico, mas prejudicado pela qualidade da impressão do álbum. Mas, de todo modo, é o único – e melhor – álbum disponível no Brasil não apenas com Cisco Kid, mas com a bela arte de Salinas. Talvez fosse uma boa idéia relançar Cisco Kid no Brasil, talvez a série completa desenhada por Salinas – se sabe que Salinas desenhou muito mais que essas duas aventuras. E, de preferência, com um merecido trabalho de restauração dos originais.
Mas não sei, uma vez que o faroeste saiu de moda nos quadrinhos, diante dos super-heróis e dos mangás. Mas o Cisco Kid de Salinas é História em Quadrinhos com H e com Q maiúsculos. Vale a pena conferir.
Para encerrar, eu fiz um desenho assim, meio matado, do Cisco Kid e seu parceiro Pancho, se baseando nas imagens do álbum. Não foi fácil, pois Salinas usava muitos planos distantes e poucos planos próximos, dificultando para pegar detalhes das vestimentas dos personagens e assim de fazer o devido perfil dos mesmos. Foi preciso voltar e avançar páginas para pegar todos os detalhes da composição de Cisco, Pancho, Diablo e Loco (o cavalo do gorducho). E, mesmo assim, o retrato de Cisco Kid by Rafael Grasel não faz jus ao mestre Salinas, sequer um tracinho. Buá!
É isto aí.
Vaya com Dios, Muchacho!
Hasta breve!
(assim, em espanhol: Até mais!)
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