Hoje, volto a falar de quadrinhos.
Já faz algum tempo, adquiri uma nova leva de quadrinhos antigos – e brasileiros. Percorri muitas lojas de Porto Alegre para juntar as quatro edições da série da qual vou falar agora.
Esta publicação pode ser considerada um marco dos quadrinhos nacionais, pois seu sucesso possibilitou que outras viessem na esteira – e renovassem as esperanças dos artistas brasileiros nos quadrinhos produzidos aqui, mas de forma tímida frente ao sucesso dos quadrinhos estrangeiros.
Hoje, vou falar de GODLESS.
Esta série foi lançada por volta de 1997, pela iniciante editora Trama, de São Paulo, capital – que, mais tarde, se tornaria Talimã. Essa editora, em 1995, havia lançado, com grande sucesso, a revista de RPG Dragão Brasil, idealizada por, entre outros, um certo Marcelo Cassaro, um dos maiores roteiristas de HQ do Brasil. Quando Cassaro assumiu a função de editor da linha de HQs dessa editora, ele se cercou dos melhores artistas que conhecia, e começou a investir em quadrinhos produzidos no Brasil. Ainda que calcados nos conceitos da editora estadunidense Image Comics e nos mangás japoneses, os quadrinhos da Trama trouxeram um entusiasmo novo aos quadrinhistas brasileiros, que estavam chegando ao final do segundo milênio sem perspectivas de competir com as HQ estrangeiras – e olha que os mangás japoneses ainda nem tinham desembarcado aqui com a força que demonstraram no início do século XXI – e combalidos pelos planos econômicos fracassados dos anos anteriores (naqueles tempos, o Plano Real já começava a fazer efeito) e pelo desmonte progressivo dos incentivos à cultura brasileira.
Dessa editora, sob a batuta editorial de Cassaro, chegaram às bancas brasileiras muitas séries lançadas em formato de minissérie. As primeiras foram o já citado GODLESS, de William Shibuya e Márcio Alex Sunder, U.F.O. Team, de Marcelo Cassaro e Joe Prado, Capitão Ninja, dos Marcelos Cassaro e Caribé, e Blue Fighter, de Alexandre Nagado e Arthur Garcia. Mais tarde, vieram outras séries e one-shots (histórias de um numero só), como Street Fighter, por Cassaro e Erica Awano, Mortal Kombat, de Cassaro e Eduardo Francisco, Lua dos Dragões, de Cassaro e André Vazzios, o megasucesso Holy Avenger, de Cassaro e Awano, Dragonesa, de Cassaro e Evandro Gregório e Predakonn, do próprio Cassaro. Como deu pra ver, Cassaro escreveu os roteiros de quase todas as séries.
Outra coisa que se deve dizer: as primeiras séries da editora, as já citadas GODLESS, U.F.O. Team e Capitão Ninja, eram calcadas muito mais nos quadrinhos da Editora Image, por isso seu jeito era mais de comics estadunidenses; foi a partir de Blue Fighter que o mangá japonês começou a servir como parâmetro para as futuras publicações.
Também foi graças às revistas da Trama que os programas de computador entraram na ordem do dia dos quadrinhos brasileiros: agora, as imagens, depois de desenhadas a lápis e artefinalizadas a tinta, passaram a ser digitalizadas com scanner, colorizadas e balonizadas pelo computador, de acordo com os preceitos da Image, a editora norte-americana que mudou – para melhor e para pior – o jeito de fazer quadrinhos de heróis. Na década de 90, todos os artistas de HQ não-humorística queriam imitar o jeito de desenhar dos norte-americanos Todd McFarlane, Rob Liefeld e Jim Lee (este último é sul-coreano, mas fez carreira nos EUA).
Bão. É possível que GODLESS seja a pioneira. Só não sei dizer se ela veio antes, depois ou ao mesmo tempo que U.F.O. Team. Mas tudo bem.
Bem, como eu disse, GODLESS foi criada por William Shibuya (roteiro) e Márcio Alex Sunder (arte). Também participaram do gibi Rodrigo Kings, Edde Wagner, Rod Reis e Alexandre Jubran (arte-final e cores), Miriam Tomi (letras) Tati Bisson e Giuliano Laruccia (assistentes de arte). Nem todos participam das quatro edições da minissérie. Mas os nomes mais importantes dentro da série ainda são os de Shibuya e Sunder.
Bem. GODLESS foi, até onde sabemos, o único trabalho de HQ de Shibuya, hoje dedicando-se ao empresariado e à consultoria. Já a carreira de Sunder não se limitou a esta série: além de ter feito ilustrações para a revista Dragão Brasil, ele desenhou para os Estados Unidos. Em 1999, ele desenhou The Misfits, para a Chaos! Comics,e em 2004 desenhou Orion the Hunter, para a Blue Water. Atualmente, Sunder dedica-se à ilustração e à pintura.
Outra coisa que eu não disse é que, como muitas publicações da Trama, GODLESS também é baseado em um sistema de Role Playing Game (RPG). No caso, é Arkanun, um RPG de horror medieval criado por Marcelo Del Debbio em 1995, publicado pela editora Daemon e que já ganhou muitas edições até hoje. Apesar do descompasso em relação às épocas onde a história se passa – Arkanun se passa na Idade Média; GODLESS, em um futuro alternativo – os conceitos são parecidos: batalhas entre religiosos, anjos, demônios e dominantes; religião norteando as ações dos personagens; e por aí vai.
Como série calcada nos conceitos a Image Comics, GODLESS tem as virtudes e os vícios de séries da editora norte-americana, como Spawn, Wild C.A.T.S. e Youngblood. Virtudes: uma arte impactante, detalhada, um argumento bem-construído, cores fascinantes, impressão em papel de boa qualidade, formato americano (26 x 17 em média), personagens bem-construídos, psicológica e anatomicamente, homens musculosos e mulheres gostosas. Vícios: um roteiro mal-construído e cheio de deslizes, como erros de continuidade, a arte impactante que dá mais ênfase aos personagens que aos cenários, que praticamente desaparecem, as páginas totalmente ocupadas pelos desenhos, muito texto, às vezes desnecessário em diversos momentos, cenas de ação prejudicadas pelos ângulos mal-escolhidos, homens musculosos e mulheres gostosas. Só de olhar as capas vocês já podem entender o que eu digo.
Bom. A trama de GODLESS se passa em um futuro alternativo em que, após um cataclisma a nível mundial, o mundo está tentando se reconstruir. A população, sem esperanças no futuro, começou a confiar em líderes religiosos que, com o discurso de trazer a ordem e o conforto espiritual aos homens, começam a manipulá-los em proveito próprio. E, nesse contexto, a política e a religião voltam a se confundir, criando uma teocracia que tolhe a liberdade de pensamento, a cultura e a ciência. Esses líderes religiosos são conhecidos como doutrinantes. E estes, para aumentar seu poder, contam com o auxílio dos avatares, seres poderosos, tidos como a manifestação dos anjos e dos demônios na Terra.
Contra os doutrinantes e os avatares, existem duas forças: a dos tecnocratas, que acreditam na ciência, que foi banida por ser considerada a responsável pelo cataclisma; e os renegados, que lutam para manterem vivos os símbolos culturais da literatura, da música, do cinema e das artes em geral.
É nesse contexto que se desenvolve a aventura e as lutas do anjo Mitzrael e do demônio Acheron.
A história começa quando um grupo de renegados inicia a invasão de uma das sedes dos doutrinantes, a dos neobudistas, em busca de um livro sagrado. O ataque é processado por uma guerreira renegada chamada Crisallys, profundamente religiosa, corajosa porém paciente (e, como não podia deixar de ser, linda e gostosa). Após fugir da perseguição dos guardas do palácio, Crisallys se refugia no esgoto, onde é aprisionada por outro grupo de renegados, os condenados. Após uma cena de ação difícil de entender, onde Crisallys consegue se libertar (com as roupas quase totalmente rasgadas), ela encontra, aprisionado, um ser alado, um possível avatar.
Enquanto isso, no templo neobudista, um homem, chamado Sato Yukiwa, após uma cerimônia profana, que envolveu o sacrifício de uma mulher, consegue grande poder. Sato é um dos doutrinantes que usa poderes de avatares para ampliar o seu.
Enquanto isso, o anjo encontrado por Crisallys é analisado em laboratório, e se descobre que ele possui grande poder – pode ser mais que um avatar.
Oh, eu ia esquecendo: Crisallys não está só. Seus aliados dentro da série são: o também renegado Bradbury Paragon, e os tecnocratas Phil e Saga. Sãoesses últimos que estudam o anjo antes da invasão da base tecnocrata por soldados dos doutrinantes. Mas eles conseguem esconder o anjo em um compartimento secreto.
O tal anjo está atormentado, pois aparentemente não possui memória nenhuma do que aconteceu antes do momento em que foi achado – e nem consciência de seus poderes. Desse modo, inicialmente, ele confia apenas em Crisallys, que chega a lhe emprestar uma arma de fogo para se defender. Mais tarde é revelado que ele sofreu lavagem cerebral. E só quando outro personagem, o demônio Acheron, entra em cena, sabemos que o nome desse anjo é Mitzrael.
Acheron, que também se encontrava aprisionado, consegue se libertar de sua prisão graças a uma falha na segurança. Ao contrário de Mitzrael, Acheron não sofreu lavagem cerebral – ele tem memória viva de tudo o que passou até chegar ao nosso mundo. E, livre, encontra o atormentado Mitzrael no topo de um prédio. Acheron, que possui uma pendenga antiga com Mitzrael, induz a luta, na qual o anjo só não leva a pior porque Crisallys intervém. E é ela que, após encontrar algumas pistas comprometedoras das ações dos doutrinantes, consegue convencer Mitzrael e Acheron a fazer um pacto de união para descobrir toda a verdade.
A proposta da série também é fazer um questionamento sobre tudo o que se sabe sobre anjos e demônios. Em GODLESS, os demônios não são os grandes vilões que nós estamos acostumados a ver na iconografia cristã, e os anjos podem não ser necessariamente modelos de virtude. Acheron, apesar da aparência demoníaca, demonstra ser um personagem de grande nobreza e educação. Como o céu e o inferno acabaram abalados igualmente pela falta de fé dos homens, é natural que ambos, Mitzrael e Acheron, concordem em uma aliança e acabem se ajudando mutuamente na batalha final contra as forças de Sato Yukiwa.
E essa batalha final ocorre em um satélite, mantido pela ordem neobudista, onde são guardados muitos segredos sobre o uso dos avatares. E um desses avatares, chamado Warbreed, é usado por Sato como arma. Quando tudo parece perdido para os heróis, Acheron consegue mudar o jogo; e, logo que Mitzrael recuperar parte de suas memórias, ele demonstrará um poder extraordinário – e conseguirá mudar tudo o que ele pensava sobre o bem e o mal.
GODLESS é uma daquelas histórias que você não conseguirá entender de primeira, uma vez que os detalhes sobre o mundo e os personagens são apresentados aos poucos na trama. Sofre um pouco com o roteiro mal-ajambrado e cheio de buracos, erros de continuidade e deslizes - como por exemplo, Crisallys, no primeiro capítulo, usar como arma uma espada e, nos seguintes, essa espada desaparecer, e a garota usar armas de fogo no lugar. O melhor da série ainda é a arte, constituída de desenhos grandes, detalhados, páginas cheias, sequências de página inteira e até duas páginas, com ilustrações-pôsteres. Outro problema são os personagens mal-aproveitados – qual a importância, por exemplo, de Paragon, de Phil e de Saga para o restante da trama? Eles perdem terreno para Crisallys, Mitzrael, Acheron, Sato e Warbreed. E mesmo a possível atração romântica entre Mitzrael e Crisallys não ficou bem-resolvida. Sem falar que quase não há momentos de humor na trama, que parece não ter sido planejada de uma só vez – daí os eventuais problemas de continuidade.
Ainda assim, GODLESS é o marco da renovação dos quadrinhos brasileiros. E os gibis ainda tem brindes: em todos os números, as páginas centrais formam belos pôsteres, quase todos com a imagem da capa; no primeiro e no segundo números, Sunder mostra ao leitor o processo de confecção de algumas páginas da série; no segundo número, uma história sem créditos assinada por um tal de Renato; e, no terceiro número, além de um pôster de Roger Cruz (o único que não é imagem de capa), outra história curta, assinada por J. M. Trevisan (roteiro) e Evandro Gregório (arte). Essas histórias curtas explicam alguns conceitos da série, como a dominação religiosa e o poder dos avatares.
Para achar as quatro edições de GODLESS, só peregrinando em sebos, físicos ou da internet. Com sorte, dá para achar também a edição encadernada reunindo as quatro partes da série.
O universo de GODLESS foi promissor, mas não teve continuidade. Pelo menos, reconstruir a história das HQ brasileiras no final do século XX vale a pena, e não ficará completa se ao olharmos as publicações da Trama, sobretudo GODLESS.
Em breve, a próxima série da Trama a ser resenhada será Blue Fighter – essa também consegui comprar completinha. Só anunciando desde já.
Para encerrar, um desenho simpático dos personagens Mitzrael, Crisallys e Acheron. Esqueci de olhar o gibi antes de escrever o nome dela. E que os céus me perdoem por não ter um bom domínio de anatomia, para reproduzir os personagens com mais fidelidade. Buá!
“Perdoai, Senhor, eles não souberam o que fizeram. E isso inclui a mim”.
Até mais!
Um comentário:
interecante
Postar um comentário