O mês de julho, como já havia dito anteriormente, começou mal para os fãs de histórias em quadrinhos clássicas, com a notícia que a Pixel Media, selo do grupo Ediouro, suspendeu a publicação dos gibis da Harvey Comics – Gasparzinho, Riquinho e Brasinha. Até tempo indeterminado, estes gibis não chegarão às bancas.
Mas tudo bem: felizmente, tenho um plano B para este caso – só este mês.
Hoje falarei de um lançamento anterior ao lançamento dos gibis da Harvey pela Pixel Media: o álbum do Gasparzinho, que fora lançado pela editora Devir em 2010.
Antes de a Pixel ter promovido o retorno do Gasparzinho às bancas, o material disponível do personagem era este álbum, edição nacional de um álbum publicado nos EUA pela editora Dark Horse, pelo qual também saía uma coleção histórica com algumas das primeiras histórias da Luluzinha – que também estava sendo lançada pela Devir antes de a Pixel ressuscitar a personagem nas bancas.
GASPARZINHO, A TRAJETÓRIA CORRIGIDA
Antes de falar um pouco mais do álbum, vou recontar a história do personagem, de acordo com a pesquisa de Jerry Beck.
A trajetória do Gasparzinho (Casper the Friendly Ghost) começou em 1940, com uma idéia do assistente de animação e escritor Seymour (Sy) Reitt, que idealizou um fantasma diferente do que havia até então – um fantasma camarada. Chamou um colega seu, Joe Oriolo, para dar forma ao personagem. Ambos trabalhavam nos estúdios de animação Fleischer, braço de animação da Paramount Studios, célebre estúdio responsável pelas animações de Betty Boop, Popeye e Superman. Os dois planejavam produzir o personagem na forma de um livro infantil – não sei dizer agora se esse livro chegou a ser publicado. Entretanto, Reitt e Oriolo foram convocados para lutar na Segunda Guerra Mundial, adiando seus planos. Quando retornaram da Guerra, descobriram que o Fleischer Studios foi fechado, mas a Paramount montou um novo braço de animação, a Famous Studios, que lançou as primeiras adaptações em desenho animado de Luluzinha e personagens licenciados, como a boneca Raggedy Ann. A dupla vendeu os direitos do personagem que haviam criado para a Famous Studios por 200 dólares, e lançou, em 1945, uma adaptação da história de Gasparzinho para desenho animado – chamada The Friendly Ghost – para sua série de animações, a Noveltoons, que, como todo desenho animado da era pré-televisão, era exibido nos cinemas antes dos filmes principais.
Diferente de Jerry Siegel e Joe Shuster, os criadores do Superman, que venderam os direitos do personagem por um valor similar, Reitt e Oriolo não ficaram na penúria depois de firmar um negócio considerado desvantajoso. Sy Reitt tocou sua vida como autor de livros infantis, e Oriolo, depois de conhecer o quadrinhista Otto Messmer, que naquele período era o responsável pelo personagem Gato Félix, se apoderou desse personagem. Foi Oriolo que criou, dentro das histórias de Felix, o menino-cientista Pointdexter, sobrinho do inimigo do gato.
O segundo curta-metragem de Gasparzinho (There’s Good Boos Tonight) só saiu em 1948, dentro da série Noveltoons. Foi no mesmo ano que, para aproveitar alguns argumentos de Luluzinha que haviam sobrado (o estúdio perdera os direitos sobre a personagem de Marjorie Buell), a Famous Studios criou a menina Little Audrey (Tininha), que, junto com o Gasparzinho, se tornou a grande estrela do Famous Studios. Outros personagens que se celebrizaram no estúdios foram Baby Huey (Huguinho, o bebê gigante) e Herman & Katnip (uma clássica história de gato e rato, similar a Tom & Jerry, então produzida pela concorrente MGM).
No ano seguinte, saiu o terceiro Noveltoon de Gasparzinho, e, ainda nesse mesmo ano, a editora St. John, dirigida por Archer St, John, lançou o gibi do personagem. A série da St. John, caracterizada por desenhos sofríveis e roteiros fracos e forçados, teve cinco números publicados.
Em 1950, Gasparzinho ganhou sua própria série animada. E fez sucesso. Mas foi em 1952 que a editora Harvey Comics, fundada por Alfred Harvey e seus irmãos em 1942, ganhou a licença para lançar um novo gibi de Gasparzinho e dos outros personagens da Famous Studios. Antes de se consagrar com os gibis infantis, a Harvey Comics tinha uma linha de HQs de super-heróis, personagens licenciados (como Joe Sopapo e Blondie) e gibis de terror. Com a cruzada anti-quadrinhos iniciada em 1952, e os gibis de terror de muitas editoras hostilizados pelo público, os irmãos Harvey perceberam que os quadrinhos infantis seriam o seu futuro.
E, com o gibi do Gasparzinho, cuja produção era comandada pelo editor Matt Murphy, os Harveys conheceram o sucesso. As histórias eram bem elaboradas, bem desenhadas, ainda mais porque alguns dos desenhistas eram egressos do Famous Studios, destacando-se, entre eles, Steve Muffatti e Warren Kremer. Em verdade, algumas das histórias do período eram adaptações semi-diretas dos desenhos animados. Com o tempo, o estilo de desenho de Kremer tornou-se o padrão dos desenhistas da editora. E, com o sucesso de Gasparzinho, Tininha e dos outros personagens da Famous Studios nos quadrinhos, os outros personagens foram aparecendo: Little Dot (Brotoeja), Richie Rich (Riquinho), Little Lotta (Bolota), Hot Stuff (Brasinha) e muitos outros, entre personagens originais e spin-offs.
Foi quando perceberam que haviam explorado à exaustão o tema “Gasparzinho à procura de um amigo” que os criadores da Harvey, capitaneados pelo editor Sid Jacobson (que substituiu Matt Murphy em 1954) resolveram enriquecer o universo do personagem, criando coadjuvantes que roubariam a cena: o encrenqueiro priminho do fantasminha camarada, Spooky (Lelo), o pônei-fantasma Nightmare (Luarino), a bruxinha Wendy (Luísa) e o encrenqueiro Ghostly Trio (Trio Assombro), os tios maldosos do fantasminha. O Gasparzinho também ganharia um novo perfil, menos infantil e mais aventureiro, já que amigos era o que não lhe faltava naqueles dias. Os coadjuvantes dos quadrinhos, além de ganharem aventuras-solo, iriam também para os desenhos animados. E foi em 1959 que Gasparzinho ganhou uma série própria para a televisão.
Por volta dos anos 1970, o personagem decaiu, tanto nos desenhos animados quanto nos quadrinhos – já era evidente a queda de qualidade das animações e o desgaste nos quadrinhos. Nos anos 70, a Hanna Barbera conseguiu os direitos para produzir uma série com o personagem, não muito bem sucedida. A mesma Hanna-Barbera produziria, com algum sucesso, uma adaptação para desenho animado do Riquinho. Gasparzinho ganhou uma sobrevida em 1995, quando saiu a primeira adaptação cinematográfica do personagem, pela Warner Bros – que comprou a empresa que havia comprado a Hanna-Barbera (e que, desse modo, se apoderou do acervo do estúdio), e que também produziu uma nova série animada, mais escrachada que os desenhos da Paramount. É claro, pois a equipe que produziu essa série era praticamente a mesma que produziu os cults Tiny Toon e Animaniacs – por isso, de um fantasminha amigável, Gasparzinho passaria a ser um pré-adolescente atrapalhado e reclamão, e fatalmente o Trio Assombro ganharia o maior destaque. No cinema, Gasparzinho ganharia mais duas continuações, e uma série nova, em computação gráfica.
Quanto aos quadrinhos, o material da Harvey Comics seria adquirido pela empresa Classic Media – que também compra o material da Luluzinha. É a Classic Media quem agora distribui o material para republicações em todo o mundo, apesar de algumas situações hoje serem evidentemente datadas, correspondendo pouco à ideologia de nossos dias.
O GASPARZINHO QUE VEMOS NO ÁLBUM
Lendo o álbum da Devir, os leitores podem notar algumas características do personagem que acabaram se perdendo com o tempo.
A aparência de Gasparzinho mudou desde os primeiros desenhos e histórias. De um fantasminha um tanto inchado, com a cabeça quase unida ao corpo, só mais tarde é que ele ganharia a célebre cabeça grande e bulbosa como uma lâmpada, aproximando-o ao perfil típico de uma criança.
Quando o personagem foi desenvolvido nos desenhos animados, o seu perfil era o de uma pessoa deslocada, diferente dos outros. O perfil de um fantasma não exatamente correspondia ao da alma de uma pessoa morta – algo que só foi definido com o filme de 1995. Um fantasma era uma entidade sobrenatural, como um duende, uma fada, uma bruxa, dotado de vida própria. E fantasma, na concepção infantil, era muito mais um “cobertor vivo” do que um espírito, mas tinha por principal meta na vida (ou pós-vida) assombrar os vivos, causar prejuízos a eles, fazer maldade por diversão. Um bicho-papão.
Era desse estereótipo que Gasparzinho queria fugir: ao invés de assustar as pessoas por diversão, como os outros fantasmas, Gasparzinho quer provar ao mundo que existe pelo menos um fantasma que não quer assustar ninguém, que quer ser camarada, fazer amigos. E, por isso, é hostilizado pelos outros fantasmas (era bullying antes da popularização do termo). Na sua jornada para conquistar amigos, Gasparzinho precisa lidar com as frustrações: a graça dos desenhos e quadrinhos estava na forma como as pessoas fugiam do fantasma. Toda vez que Gasparzinho se aproxima e amavelmente pergunta: “Olá, quer ser o meu amigo?”, a “vítima” em potencial se assusta, sai gritando e foge, das formas mais engraçadas que se podia imaginar: levando a casa junto na fuga, abandonando os pelos ou roupas, se enfiando no chapéu, fechando um guarda-sol em torno de si...
Mas Gasparzinho consegue o que quer na maior parte das vezes: geralmente, é um bichinho ou criança que se encontra em perigo, ou que foi afastada das brincadeiras pelos meninos maiores. Gasparzinho conquista-lhes a amizade e a ajuda a se livrar de seus algozes. Os vilões que ameaçam os amigos de Gasparzinho – bandidos mal-intencionados, lobos que querem jantar os animaizinhos, gente que quer prejudicá-los visando uma herança... – simplesmente fogem quando veem o fantasminha, pura e simplesmente, e desistem de seu intento. E Gasparzinho acaba conquistando mais amigos depois disso.
O enredo é quase sempre o mesmo: Gasparzinho é hostilizado pelos outros fantasmas, Gasparzinho sai à procura de um amigo, Gasparzinho assusta todo mundo a quem aborda, Gasparzinho encontra um ser em apuros e fica amigo dele, o amigo é ameaçado por vilões, Gasparzinho se livra do vilão. A situação varia, mas a receita era basicamente a mesma.
Havia outras características que foram usadas pouquíssimas vezes e depois se perderam. Por exemplo, Gasparzinho chegou a ter uma mãe! E também uma amiguinha fantasma, chamada Clara. E seus sentimentos iniciais pela bruxinha Luísa eram diferentes das histórias posteriores – eram mais próximas do amor romântico do que da relação fraternal. Ah: em algumas vezes, Gasparzinho, frustrado com suas tentativas de amizade não terem dado certo, tenta o suicídio, mesmo esquecendo que já está “morto”.
Mas o que importava mesmo, nas aventuras do personagem, é a característica principal: Gasparzinho quer ser aceito por todos, mesmo sendo diferente dos seus iguais. Os outros fantasmas querem que ele seja assustador e mau, e Gasparzinho quer ser camarada e conquistar as pessoas pela amizade. Portanto, a maior lição que podemos tirar das aventuras de Gasparzinho é que vale mais a pena ser aceito pelo que se é do que pelo que se deve ser. Ser diferente pode fazer a diferença. E essa característica seria aproveitada para todos os outros personagens publicados pela Harvey. Vide Riquinho, que mostra que a amizade pode mais valiosa que o dinheiro; Tininha, sempre arranjando uma solução engenhosa para tudo; Huguinho, que apesar da estupidez sempre consegue se safar do perigo; e assim por diante.
A arte das histórias seguia, basicamente, uma linha parecida com a do desenho animado. Em vários momentos, é possível notar que os desenhos tinham bastante movimento, com as famosas distorções, estiques, aumentos e diminuições nas proporções anatômicas dos personagens, típicas dos desenhos animados, criando dinamismo. Algo que, infelizmente, foi se perdendo com o tempo, com desenhistas menos eficientes – o que vimos, até agora, nos gibis publicados pela Pixel Media, histórias posteriores à “fase áurea” do personagem. Ah: enquanto os coadjuvantes, nos desenhos animados, geralmente eram humanos, nos quadrinhos geralmente eram animais antropomorfizados (com porte e trejeitos de ser humano, como os personagens de Walt Disney). Nas adaptações dos desenhos animados, geralmente é assim: os humanos são trocados por animaizinhos.
AS HISTÓRIAS DO ÁLBUM
Bem. Como já dito, o álbum da Devir (tradução de Marquito Maia) reúne várias das primeiras histórias do personagem, cobrindo o período 1949 – 1954. Só as três primeiras histórias são coloridas, enquanto as demais são em preto-e-branco. O editor Leslie Cabarga justifica tal decisão por causa do trabalho complicado de restauração das chapas de impressão originais, que criavam defeitos inesperados na cor em diversos quadros. Todas as histórias possuem data original de publicação, mas não os autores da cada história.
O álbum começa com uma introdução de Jerry Beck, contando, com mais detalhes, a história narrada acima. A seguir, a primeira história do personagem, que saiu no primeiro número da série da St. John. Nessa história, aparece todo o receituário básico dos desenhos animados.
Depois de um interlúdio de Leslie Cabarga, que explica o processo de restauro das histórias, aí o álbum apresenta as histórias publicadas pela Harvey Comics. A primeira história pela Harvey saiu no gibi Little Audrey # 25, de 1952; aí as histórias variam entre as várias revistas da Harvey, mas quase todas saíram no título próprio do personagem. Curiosidade: o primeiro gibi do personagem pela Harvey costuma ser listado como o número 6, numa continuidade da numeração da St. John.
Das 40 histórias, podemos destacar algumas, já que a maior parte parece repetição umas das outras, com a mesma receita, e algumas tem roteiros um tanto fracos e ingênuos. Podemos destacar: A Casa Desassombrada (a terceira do álbum), a última colorida; Um Dia na Praia (a quinta), onde aparece a mãe de Gasparzinho; O Vencedor, uma história de uma página, onde Gasparzinho usa de um recurso inusitado para ganhar o prêmio de uma corrida de cavalos para ajudar um orfanato; as adaptações de desenhos animados para HQ: O Esquadrão do Susto, Travessuras ou Gostosuras (primeira aparição da fantasminha Clara, depois esquecida), Bancando a Ama-Seca, A Dica do Dique, Era uma Vez... (um dos muitos flertes de Gasparzinho com o universo dos versos infantis em língua inglesa), Caça ao Tesouro, Um Cãozinho de Estimação, Perfume de Gambá e O Espírito de Natal; Vida no Campo, a primeira aparição de Lelo (aprendendo a lição da pior maneira); Um Ano Novo Arrepiante! e O Chapéu de Mola, histórias solo com Lelo; Uma Aula de Arrepiar, onde Gasparzinho contracena com Lelo e Clara; O Pônei Travesso, a primeira aparição de Luarino; Guerra e Paz, uma guerra entre fantasmas e bruxas, que serve como prólogo para a última história do álbum, Luísa, a Boa Bruxinha, a primeira aparição de Luísa. O álbum também contém páginas de abertura, propagandas originais, pequenas páginas explicativas do universo do personagem e uma pequena galeria de capas, ilustrações e fotografias dos desenhos animados. Um pequeno apanhado histórico do personagem.
O álbum ainda pode ser encontrado com alguma facilidade nas gibiterias e/ou livrarias que revendem títulos da Devir. Vale a pena dar uma olhada.
Ao longo desta postagem, vocês puderam ver alguns dos cartuns que eu fiz e publiquei aqui, onde já usei a figura do personagem para fins humorísticos. Mas, para encerrar, resolvi produzir uma historinha inédita. Aproveitando uma clássica piada de “qual é o nome do filme”, fiz esta historinha de duas páginas – faz tempo que não produzia histórias longas, só tiras e ilustrações. O resultado, pra mim, não ficou lá essas coisas... buá! E para vocês? O que acharam?
Bão, por hoje é isso, turma.
Até mais!
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